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O ABADE E O PORTEIRO - Autor: Joceval A. Bitencourt

junho 15, 2018Prof. Dr. Joceval Bitrencourt



Carlos Drumond de Andrade, em um dos seus poemas, intitulado: Especulações em torno da palavra homem, pergunta: O que é o homem? Como se faz um homem? Porque morre o homem? O que faz um homem? Incomodas perguntas. Alguém saberá respondê-las? Quase certo que não.  São respostas que estão além do homem, pertencem aos deuses.  Talvez encontrássemos uma resposta tangenciando nossa pergunta: o que faz do homem ser um homem? O que ele come; o que lê; como se comporta; sua força; sua virilidade; sua paciência; sua mansidão; seu espírito de senhor ou de escravo; como age diante de seu próximo? Parece que o homem é feito de tudo isso, entretanto, nada disso é suficiente para se dizer o que é  o homem. O homem é um ser indefinível. Sua extensão ultrapassa os limites de qualquer armadura conceitual.  Cada homem constitui-se uma unidade, uma mônada particular, identificando-se e diferenciando-se de todos os outros.
         
Hoje vou falar de um homem, igual a todos os outros, e, ao mesmo tempo, diferente de todos os homens que conheci. Estou falando de Dom Timóteo Amoroso Anastácio. Pomposo no nome, simples na alma.  Sempre o vi como um homem comum. Fazia questão de se mostrar assim, em uma simplicidade quase franciscana, apesar de ser uma autoridade monástica: Abade do Mosteiro de São Bento da Bahia, primeiro mosteiro beneditino em terra das Américas. Simples até no vestir-se. Excetuando nos deveres de ofício, quase nunca fazia uso do seu hábito monástico, talvez com a intenção de não se diferenciar, fazendo-se igual e mais próximo, do homem comum. Em minha quase juventude, as circunstâncias existenciais me levaram a conviver com Dom Timóteo. De 1977 a 1988, fui funcionário do Mosteiro de São Bento da Bahia. No primeiro momento, como recepcionista, num segundo momento, como responsável pela sua biblioteca. Como recepcionista, eu sempre o incomodava, às vezes nos momentos mais impróprios, para anunciar que alguém o aguardava na portaria. Em nenhum momento ele me perguntava quem o aguardava, se era o governador, um refugiado político, buscando guarida, uma autoridade eclesiástica, uma sacerdotisa do candomblé da Bahia, uma alma aflita em busca de um aconselhamento para melhor suportar o peso de sua cruz, ou mesmo um pobre mendigo a esmolar, prontamente se dirigia à portaria e, com um sorriso discreto no canto dos lábios, típico dos mineiros, acolhia paternalmente a quem o procurava. Assim o vejo, caminhando nos longos corredores, vindo em direção ao seu irmão que buscava o seu acolhimento. Nunca deixou de passar por mim sem fazer um aceno: com as duas mãos semi levantadas, lançava-me um breve sorriso, como se estivesse a dizer: tudo bem, meu filho!!! Como me via, quase sempre, lendo, já que, para a minha alegria, sobrava-me bastante tempo para o ócio da leitura, ao retornar dos seus atendimentos, carinhosamente aproximava-se e me perguntava: o que você está lendo? Tal atitude não era para me repreender por estar lendo durante o horário de trabalho, mas para dizer: que bom que escolheu o livro, continue lendo, está em boa companhia. Às vezes tecia alguns comentários sobre o livro que eu estava lendo, outras vezes, indicava livros que eu deveria acrescentar às minhas leituras. Nunca errava em suas sugestões, eram as melhores. Não foram poucas as vezes em que eu ficava torcendo para ele se aproximar e orientar minhas leituras. No mundo da leitura, eu era um iniciante, sentia-me como um cavalo indomado, sem rédeas, solto num pasto descampado, não tinha uma direção, não sabia qual o melhor caminho a tomar... Quando ele se aproximava, me fazia uma sugestão literária, sentia-me seguro em segui-la, tinha certeza que estava indo no caminho certo. Concluídas suas observações e sugestões, seguia o seu curso, em passos curtos, como quem medita enquanto anda, ia lentamente desaparecendo naquele infinito corredor, em direção à sua cela. Enquanto observava os passos do monge, visitava em minha memória os versos do poema de R. M. Rilke, que ele gostava de citar: tudo que se apressa, será logo passado; somente o que fica, só ele nos inicia. A roda do tempo foi girando, girando, em uma dessas voltas, deixei de ser recepcionista, tornei-me cuidador da biblioteca do Mosteiro. Enigmas da vida. Sem que a gente tenha pleno domínio de sua tradução, vai nos conduzindo por estradas nunca antes imaginadas, sem nenhuma certeza que, ao final dela, seremos contemplados com  a conquista do Bem. No meu caso, o Bem encontrava-se logo ali, bastava seguir um longo corredor, no final do mesmo, do lado esquerdo, subir quatro lances de escada, quando, de repente, o portal do Bem se apresentava. Este foi o sentimento que tive quando me tornei responsável por aquela biblioteca. Algo me dizia que eu não me arrependeria se entrasse naquele portal.Tinha quase certeza que no labirinto daquelas estantes,forjaria o meu espírito. Um mundo novo se abriria para mim. Passaria a conviver diariamente entre homens que eu tanto admirava. Andava sem norte, perdido em minhas sombras, a biblioteca abriu-me as portas da alma, indicou-me o sol que iluminaria a minha caminhada nesta vida. Faz muito tempo que eu  partir daquela biblioteca, mas, para minha profunda alegria, aquela biblioteca nunca deixou de habitar a minha alma, nunca deixou de participar dos meus melhores delírios. Olhando para o passado e para o presente, posso dizer que, não sendo eu muita coisa, tudo o que sou, devo àquele portal que um dia se abriu para mim. Já não mais como porteiro, volto a encontrar Dom Timóteo, entre os sábios, entre os livros. Eu, já iniciado nos primeiros passos da filosofia, tocando pelo thauma[1] , espanto, admiração, perplexidade, e muita curiosidade, causas originárias do filosofar, colocava-me à espreita, em silêncio, para não atrapalhar  sua pesquisa, e tentava registrar em minha  memória  cada passo que Dom Timóteo dava, cada estante que ele se aproximava, cada livro que ele folheava, para que eu  pudesse, depois de sua saída, percorrer os mesmos caminhos por ele percorridos, buscando identificar as fontes nas quais aquele sábio monge  alimentava o seu espírito. Achava que assim, percorrendo os caminhos por ele percorridos, adquiriria a sabedoria por ele adquirida. Descobria eu, mais tarde, que essa intenção  estava condenada ao insucesso, era só o entusiasmo de um garoto, em sua imaturidade intelectual, exercendo a mais profunda admiração por aquele homem que, entre os livros, bailava como se tivesse numa festa. Mesmo sabendo que tal intenção estava condenada ao fracasso, já alimentava minha curiosidade juvenil saber sobre qual livro Dom Timóteo estava meditando. Vale lembrar que suas visitas à biblioteca eram sempre momentos de estudos, pesquisas, visando um texto que ele estava escrevendo para o mundo secular, ou para a elaboração de sua homilia dominical. Já não precisava de minha ajuda para localizar um livro. Aquela grande biblioteca, contendo mais de oitenta mil volumes, distribuídos entre diversas estantes, ele a conhecia muito bem, passeava por ela como se estivesse em sua própria cela, era capaz de, com os olhos vendados, alcançar a obra desejada. Por muitas vezes, atento, com meu olhar curioso, o flagrava lendo: As confissões ou A Trindade, de Santo Agostinho, A consolação pela filosofia,  de Boécio, tratados de hagiografia, um dos muitos livros da Suma Teológica, de São Tomás de Aquino, um livro de Hans Kung,  A monodologia, de Laibniz, A Critica da razão prática, de Kant, Santa Tereza D’Ávila, Catarina de Labouré; não poucas vezes o vi consultando  dicionários e gramáticas, de grego ou latim. Aqui evito as literaturas, a lista seria extensa demais. Entretanto, não posso deixar de citar J.R.R. Tolkien, com sua trilogia (Senhor dos Anéis), por quem nosso ávido leitor tinha um carinho especial.
        
Sobre o seu gosto e cuidado pela literatura, vem à minha  memória uma cena que me deu muito prazer em testemunhar. Em 1983, quando a Nova Fronteira lançou a primeira edição, em língua portuguesa, do livro, O Nome da Rosa, de Umberto Eco, obra que teve em Dom Timóteo, um dos seus primeiros leitores, lembro-me que certo dia, na extrema-unção da tarde, quando tudo era silêncio naquela biblioteca de aspecto quase medieval, ouvi passos, semiergo o olhar e vejo Dom Timóteo se aproximando, tendo às mãos o livro: O Nome da Rosa. Pergunta-me: você que gosta de ler, já leu esse livro? Ao que respondo: - Não senhor. Então ele diz: - Leia-o, é muito bom. Mas não parou aí, continuou falando: - O livro é bom, mas a edição carece de certos cuidados. E, para minha surpresa, pegou o telefone e ligou para falar diretamente com o próprio Editor da Nova Fronteira, responsável pelo lançamento dessa obra no Brasil (ao que parece, o Editor lhe era bem conhecido, teria sido um noviço do Mosteiro), recomenda diversas correções, principalmente nos textos em latim contidos na obra. Observações que foram imediatamente acolhidas pelo Editor que lhe agradeceu a colaboração, garantindo-lhe que a segunda edição da obra contemplaria todas as correções sugeridas. Ele, agradece, desliga o telefone, me olha, com um olhar de quem diz: que bom, os próximos leitores dessa obra terão mais sorte que nós, seus primeiros leitores...   Às vezes ficava a me perguntar, com quem se parece Dom Timóteo? Com um santo? Não, muito pecador para ser santo; com um pecador? Não, muito santo para ser um pecador. Buscava então um lugar na história  onde pudesse localizá-lo. Em qual momento histórico ele mais se enquadraria. No nosso? Não, muito pobre para a sua grandeza. Acho que ele se encaixaria muito bem entre os humanistas, filhos do Renascimento, estes sim, seriam seus iguais:Leonardo da Vinci, Erasmo de Roterdã, Martin Lutero, Giordano Bruno, Miguel de Cervantes, Thomas Hobbes, Maquiavel, Nicolau de Causa, Thomas Morus, entre tantos outros. Estes tinham em comum eleger o homem como centro, como a referência antropocêntrica através da qual o mundo, e todas as coisas podem e devem ser pensadas. Além dessas características, também eram reconhecidos como homens dotados de uma vasta cultura, se interessavam, ao mesmo tempo, por quase todos os campos do conhecimento, seja no campo da arte, da ciência, da religião, da pintura, da magia, alquimia, da filosofia, etc. Nesta mesma senda, percorria o espírito de Dom Timóteo, um homem que, dotado de um ecumenismo cultural, aberto a todas as formas de saber, lançava-se ao conhecimento como um faminto se lança a um prato de comida. Em sua alma não havia índex, censura ou preconceito, estava sempre aberto às novas possibilidades do conhecimento humano. Assim era Dom Timóteo Amoroso Anastácio, um livre pensador, um humanista do nosso tempo.

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