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UM AMOR PLATÔNICO - Autor: Joceval A. Bitencourt
julho 18, 2018Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
UM AMOR
PLATÔNICO
Existem pessoas que têm uma esplêndida
habilidade com a imaginação. Narram histórias que você não é capaz de
identificar se são fatos ou lendas, verdade ou ficção. Quando não são
verdadeiras, pelo livre voo dos delírios, completamente desgarradas dos fatos,
tornam-se ainda mais encantadoras. Temos que reconhecer, todo escritor é um bom
mentiroso. Sem mentiras não há literatura, tampouco poesia. “Dizem que eu finjo ou minto, tudo que
escrevo. Não. Eu simplesmente sinto, com a imaginação. Não uso o coração” –
Fernando Pessoa. Eu, que não tenho essa habilidade, tornei-me dependente de
ouvir histórias alheias. Perco a noção do tempo, quando me encontro a ouvi-las,
contadas por habilidosos mentirosos... algumas vão embora ao amanhecer, outras,
mesmo desbotadas pela memória do tempo, permanecem em nossas lembranças, se
desgarrando, de tal forma do seu dono, que, de tanto conviver com elas, parecem
nos pertencer. Acreditando nisso, saímos por aí, espalhando essas mentiras pelo
mundo...
Eu tinha um amigo, chegamos a estudar juntos
na Faculdade de Filosofia. Filho da Cidade de Cachoeira, Recôncavo da Bahia,
ele era mestre no bom exercício da inventividade. Sua imaginação era tão
fértil, que tinha o poder de me narrar um filme, melhor do que o filme
verdadeiramente era. Eu brincava com ele dizendo: cara, da próxima vez, nem vou
assistir ao filme, vou te contratar para que você o narre para mim. Ele, em
resposta, dava um leve riso, como se estivesse confirmando que, parte do filme
ele viu, outra parte, isso era resultado de sua imaginação. Muitos poderão
dizer que esse meu amigo nunca existiu, não passa de um personagem que eu criei
com o objetivo de transferir para ele pecados por mim cometidos. Não, não é
verdade. Tenho duas amigas, uma delas se aposentou como professora de
Filosofia; a outra, também filósofa, seguiu os caminhos da administração,
tornou-se, por mais de 25 anos, dona de um agradável restaurante de comida
italiana. Elas podem testemunhar que esse contador de história existiu de
verdade. Ainda me lembro a criatividade com que esse amigo me narrava a
história do livro que ele estava escrevendo. O livro se chamava: O
dragão dorme comigo esta noite. Acompanhei todo o processo de criação do
livro, que nunca foi escrito, só existia na imaginação de seu criador. Era uma
bela história. O mundo merecia ter conhecido essa obra.
Não faz muito tempo, escrevi um breve
texto, intitulado Entre fatos e lendas, que também foi esse amigo
quem me narrou. Assim, hoje vou narrar uma nova história, contada por ele. Mas,
de antemão, vou avisando, não posso garantir a veracidade dessa história. Quem
sabe, tudo não passa de mais um dos seus devaneios literários?
Ele ainda era uma criança, tinha entre 10
e 11 anos, morava numa cidade do interior da Bahia, da qual não me lembro o
nome, só sei dizer que era uma cidade pequena, onde todos os moradores se
conheciam e se encontravam nas missas dominicais, realizadas na Igreja Matriz de
Santo Antônio. Tinha tudo que tem qualquer cidade do interior. Tinha dois
doidinhos, queridos e cuidados por todos; tinha a fofoqueira, que passava o dia
de braços cruzados sobre o peitoral da janela, cuidando da vida alheia, tinha o
avarento, que, segundo a lenda, de tanto economizar, teria morrido rico. Havia
um colégio estadual, um municipal, o Foro, a Igreja e a Prefeitura, demarcando
o centro da cidade; um pouco mais acima, um largo, onde funcionavam as lojas
comerciais, tendo ao centro o Mercado Municipal, um verdadeiro centro de
abastecimento para a comunidade. Ali, aos sábados, dia de feira, a cidade
abastecia suas despensas. Não me recordo bem, mas parece que ele teria me
dito que seu pai trabalhou por muitos anos nesse Mercado. Naquela cidade,
ninguém tinha segredos, pois, mais cedo ou mais tarde, mesmo que o Padre não
revelasse, a cidade inteira tomava conhecimento dos segredos mais íntimos dos
seus habitantes. Claro que os fatos que se espalhavam pela cidade eram,
geralmente, sobre os moradores ricos. Segredos dos pobres, aí ninguém se
interessava.
Como faltava sala de aula no Colégio
Municipal, esse meu amigo estudava em uma casa a qual funcionava como uma extensão do
seu Colégio. Vida comum como a dos outros garotos. Estudar, brincar, chegar em
casa todo sujo, receber um carão ou um puxão de orelha da mãe, já que não teria
tomado cuidado com a farda. O universo seguia o seu curso, conforme a calma e
lenta contagem do tempo daquele pequeno canto do mundo.
Ele ainda se lembrava de sua professora.
Uma única professora, responsável por todas as disciplinas. Não lembrava o seu
nome, somente dos seus aspectos físicos. Uma senhora feia, mas simpática, com
um corpo avantajado, mancava um pouco, tinha uma perna mais curta que a outra,
motivo pelo qual usava uma bengala para melhor se equilibrar, já tinha a idade
avançada. Bem, isso é relativo, quando se tem 10 anos de idade, qualquer pessoa
com o dobro dessa idade, já se parece muito velho. Tudo corria normalmente
naquela escola. Para surpresa de todos, ficaram sabendo que a professora iria
se aposentar, já estava cansada de trabalhar. Quem iria substituí-la? Gerou uma
grande expectativa na sala, bem comum a uma turma que espera a chegada de uma
nova professora. Aqui, segundo ele, uma outra história vem ao encontro dessa
que ele estava narrando. Como ele disse há pouco, na cidade, as notícias
corriam rápido, os segredos, mesmo os mais íntimos, se espalhavam pelo ar. Na
cidade, era de conhecimento de todos que uma moça estava para chegar, vindo de
outra cidade, para se casar com um senhor, conhecido e querido por todos, que
trabalhava numa loja de tecidos. De verdade, esse senhor já era noivo da tal
moça, só que esse fato ainda não era conhecido de todos. Não demorou muito,
correu a notícia que a tal moça já se encontrava na cidade e que em breve as
bodas se consumariam.
A professora se aposentou, e por conta
disso a turma ficou uma semana sem aula. Estavam à procura de uma nova
professora para aquela turma. Numa segunda-feira, todos retornaram às aulas. A
sala era um burburinho só. Especulavam: quem seria a nova professora? Era feia,
bonita, gorda, nova, velha...? A diretora entra na sala e avisa: tenham calma,
a nova professora já está chegando. Recomenda que a recebam de forma carinhosa,
que seria muito bom se a professora, no seu primeiro dia de aula, tivesse uma
boa impressão da turma. Não demorou muito, algo de extraordinário aconteceu
para ele: a nova professora apareceu à porta. Fez-se um silêncio na sala.
Enquanto a sala encontrava-se em um silêncio tumular, seu coração batia tão
forte que ele teve medo de que, naquele silêncio, a turma percebesse o seu
coração descontrolado. Colocou a mão sobre o peito, como se quisesse conter as
batidas. Aquela mulher, que apareceu à porta, dizendo-se ser a nova professora,
não era desse mundo. Ele só teria visto algo semelhante no altar da Igreja de
Santo Antônio, que ele frequentava aos domingos. Não era humana, era divina.
Encantou-se imediatamente por sua nova professora. Foi uma paixão arrebatadora.
Segundo ele, a diferença de idade não era tanta, ele tinha, entre dez e onze
anos, ela tinha entre 28 e 30 anos. Se ela o amasse tanto quanto ele a amava,
poderia esperá-lo mais um pouco e seriam felizes para sempre. Naquela sala, mas
do que estudar, ele construía seu projeto de vida ao lado de sua amada. Era um
rapaz sério, não queria algo superficial, ao contrário, queria namorar, ficar
noivo, casar, ter vários filhos, ficar velhinhos e, de mãos dadas, sentados num
banco da praça, contemplar as noites de luar. O que ele ainda não sabia era que
a sua amada já se encontrava comprometida com outro. A professora, era a tal
moça que chegara à cidade para se casar com o empregado da loja de tecidos.
Quando tomou conhecimento dessa notícia, o mundo ruiu aos seus pés. Tinha que
disputar a sua amada com outro homem. Ele tinha uma elevada autoestima. Se
achava bonito, atraente. Achava que seus cachinhos loiros encantava as
mulheres. Quando era criança adorava ouvir uma música tocando no rádio que,
entre seus versos, dizia: “Cabelo loiro, vai lá em casa passear, vai, vai,
cabelo loiro, vai cabar de me matar”. Ele tinha absoluta certeza de que essa
música era um recado que a moça do rádio mandava para ele. Seguro disso, mesmo
na sua timidez, achava que as mulheres saberiam reconhecer o seu poder de
sedução. Aquela professora, linda e inteligente, jamais o trocaria por um
velho. Sim, para ele, o noivo de sua professora já era um ancião, apesar de
ainda não ter chegado aos quarenta anos. Travou-se ali, no silêncio de sua
paixão platônica, uma luta mortal entre dois amantes. O vencedor, ganharia o
coração daquela linda mulher. Batalha inglória para o seu rival. Já se sentia
vitorioso. Sua amada encontrava-se todos os dias naquela sala, por sua causa.
Tudo que ali ocorria, de uma forma ou de outra, dizia respeito a ele. Sua
imaginação, ainda completamente vestida de inocência, seguia seus passos, seu
olhar, seu sorriso, seus pequenos movimentos, como o piscar dos olhos, tudo
nela era uma mensagem que ela lhe enviava. Ele, correspondendo aos sinais de
sua amada, também lhe enviava sinais. Entre os amantes secretos não havia
palavras, se comunicavam com a linguagem do corpo. Ele não tinha nenhuma
dúvida: estavam namorando. Um dia, para sua surpresa, a mão dela tocou em seus
cabelos e desceu levemente sobre a sua face. Gesto comum, que, com frequência,
uma professora faz com seus alunos. Nada disso. Podia ser um gesto comum, com
os outros alunos, não com ele. O toque dos seus dedos sobre a sua face, era a
confirmação do seu amor. Era, de fato, a amada fazendo um carinho em seu amado.
O toque da amada o deixou em estado catatônico, de tal forma que ele morreu de
medo que ela percebesse. A presença daquela “deusa” estava a atrapalhar os seus
estudos. Diante dela, suas ideias ficavam embaralhadas. Era a mulher mais
bonita que existia em sua pequena cidade. Não era nem baixa, nem alta, cabelos
curtos e negros, como as asas da graúna, rosto arredondado, como o de Nossa
Senhora, pele clara e sedosa. Sobre os outros atributos físicos a imaginação
dele ainda não alcançava. Mulher mais linda no universo, não havia.
Era uma sexta-feira,
dia treze, de um mês qualquer. O dia amanheceu anunciando trovoadas, as nuvens
apagaram a luz do céu, fazia frio, um dia que não deveria ter amanhecido. Sua
mãe, vendo a natureza triste, lhe recomendou agasalhar-se e tomar cuidado,
porque aquele não seria um bom dia. Coisas de mãe, sem saber a causa, acertou
no efeito. Verdade, aquele seria um dos dias mais tristes de sua inocente vida.
Até no colégio, sem que ninguém soubesse sobre o seu amor – já que ele não
teria coragem para confessar para outra pessoa –, reinava um ar de tristeza,
como se todos, naquela sala, estivessem solidários com a dor que logo se
abateria sobre sua pobre alma indefesa. Não demorou muito, veio a notícia
fatídica: sua amada convida todos os alunos para o seu casamento, a ser
realizado em menos de quinze dias. O mundo dele desabou, seu corpo gelou, um
frio lhe subiu pela espinha, sua taquicardia aumentou. Morrendo de raiva, ali
ficou, parado, trêmulo, não acreditando que teria perdido o seu primeiro amor
para aquele homem, cuja idade já se avançara no tempo.
Por um breve tempo, mais do que de si mesmo, teve pena de sua amada. Ela
acabara de perder o homem que veio ao mundo com uma única missão: fazê-la
feliz. Na sala, logo uma algazarra festiva se formou, todos comemoravam o
futuro casamento da professora. Menos ele, que permaneceu, por toda aula, como
se não estivesse mais ali, melhor, como se não estivesse mais neste mundo. Pela
primeira vez, aos dez anos de idade, ele viu a sua vida perder o sentido. Teve
vontade de morrer. Seu mundo desencantou-se, se descoloriu. A professora, ao
longo da aula, foi percebendo que algo de errado estava acontecendo com ele.
Seu olhar estava parado, como um lago sem movimento, a luz dos seus olhos se
apagaram. Aproximando-se dele, ela perguntou: - tudo bem, meu filho? Filho!!!
Não acreditou que ela lhe teria chamado de filho. Ele era o seu homem, não o
seu filho. Timidamente, quase envergonhado, ele respondeu, com palavras que
resistiam sair de seus lábios: tudo bem professora. Ela comentou: - estou
achando você tristinho!!! Sim, nisso ela
acertara, ele estava muito triste. Mas ele era um homem, não deixaria ela
perceber que a sua alma estava em prantos. Voltou a responder à sua
professora: está tudo bem, professora. Ela fez um
breve carinho em sua face e se afastou. Essa foi a última vez que a mão de sua
amada tocou em seu corpo. Aquele último toque sobre seu corpo teve o efeito de
um beijo de despedida. Sem saída, reconhecendo-se derrotado, recolheu-se, foi
cuidar das feridas que o seu primeiro amor causou à sua alma. Logo ela se
casou. Não demorou muito, ele se mudou, foi morar numa outra cidade do
interior, em seguida passou a morar em Salvador. O tempo tem o divino poder de
curar todas as feriadas, inclusive as de amor. Mas as lembranças carregam por
toda vida o primeiro amor, mesmo que ele tenha sido só um amor platônico.
Calmo, tranquilo, sem incomodar, ele ergue uma morada na alma e nos acompanha
por toda a vida. Sem darmos conta, nossas futuras escolhas amorosas seguem, em
certa medida, marcadas pelo olhar de nossa primeira escolha. Ninguém se livra
de seu primeiro amor. Fica tatuado na alma. Escrevendo sobre esse assunto, me
veio à memória uma passagem em que Descartes declara, em uma de suas
correspondências, a experiência que teve com um amor de sua infância: “quando
eu era criança, me apaixonei por uma garota da minha idade que era
ligeiramente estrábica; em consequência, sempre que olhava para os seus olhos,
a impressão daquela visão no meu cérebro ficou tão ligada ao que despertava a
paixão do amor que, muito tempo depois, sempre que via uma mulher estrábica
sentia-me inclinado a me apaixonar mais por ela do que por outras, simplesmente
por causa daquele defeito”. Bem, vamos voltar à narrativa de meu amigo. Ele deu
seguimento à sua vida. Trabalhos, estudos, Universidade, amores, ilusões,
desilusões, tudo que rege a vida ordinária de qualquer mortal sem grande
importância na vida. Muitos anos se passaram. Eis que um dia ele recebeu um
convite. Uma querida tia iria comemorar bodas de ouro de seu casamento. Foi
intimado a comparecer à festa, não tinha como declinar de tal convocação. As
bodas seriam comemoradas em sua cidade natal. Ele já tinha voltado à sua cidade
onde nascera, não muitas vezes. Mas dessa vez era diferente. Era uma grande
festa. Muita gente da cidade lá estaria. Oportunidade para rever antigos amigos
e parentes que o tempo separou. Ele não teve dúvida, foi ao encontro da festa.
Tudo foi realizado na fazenda do casal. Naquele canto, tudo era festa e
alegria. A sede fora pintada, nas cores azul e branco, estava como se fosse
nova. Em frente à sede, um grande terreiro, todo enfeitado de bandeirolas
coloridas, no qual, depois da cerimônia religiosa, seria realizado um grande
baile, com muitas comidas, músicas e danças. Ao lado direito da sede, foi erguido
um grande galpão, onde seria celebrada a missa
de renovação dos votos nupciais do casal. Como tinha alguma habilidade na arte
de fotografar, foi escolhido para registar os belos momentos da festa. Enquanto
todos estavam concentrados nos ritos da missa, ele, no exercício de seu
trabalho, andava por todos os lados, clicando olhares, caras e bocas dos
convidados. Ao lado direito do altar, encontrava-se um grupo de jovens, faziam
parte do coral da Igreja Matriz da Cidade. Foram à festa abrilhantar a cerimônia
religiosa com seus cantos. Fotografou tudo e todos. Mas algo aconteceu durante
a celebração da missa – segundo ele, coisa de Deus. Por várias vezes ele
fotografou o coral e, em uma das vezes, seu olhar se dirigiu a uma das garotas.
Algo teria chamado a sua atenção naquela garota. Aquele rosto não lhe era
estranho. Era como se ele já a conhecesse, mas não conseguia se lembrar, nem de onde, nem como. Ele não
deixou de notar que, mesmo por um breve momento, o olhar da garota também teria
ido ao encontro do seu. Não sabia por que, ao ver aquela garota, novamente lhe
veio a imagem de Nossa Senhora. Não seria por que ela estava vestida com uma
túnica toda azul – farda do coral –, cor do manto da Santa? Bem, ele não soube
explicar. Suas ideias estavam embaralhadas, entre o presente e o passado, mas
ele não sabia, nem tinha como fazer conexões lógicas entre fatos ocorridos
nesses dois tempos. Fim da cerimônia religiosa, era hora de começar a festa
profana, a melhor parte. Todos se dirigiram para o terreiro e, aos primeiros
acordes, começaram a dançar. Ele, que também estava trabalhando, não podia se
entregar à festa, tinha que continuar registrando os melhores momentos daquelas bodas. Entretanto, ao ver a menina do
coral, esqueceu o seu compromisso, não resistiu e a chamou para dançar. Seus
corpos, melhor, suas almas se tocaram pela primeira vez. Algo estanho estava
acontecendo. O leve toque daquela mão sobre a sua nuca não lhe pareceu estanho. Parecia que seu corpo acusava ter
re-conhecido aquele toque. Não se falaram, apenas os corpos se comunicaram.
Ao final da primeira música se afastaram um pouco, mas mantiveram suas mãos
entrelaçadas, como se estivessem esperando a próxima dança. Dançaram mais duas
músicas. Alguém a chamou. Educadamente, ela pediu desculpa e se retirou. Ele
continuou a fotografar a festa. Não demorou muito, uma de suas primas o chamou, queria lhe passar um recado: “a garota do coral
mandou lhe dizer que gostou de você”. Ele, por sua vez, mandou um recado para
ela: “diz a ela que eu também gostei dela”. Assim, entre as doze da manhã até
às dezoito horas eles namoraram, melhor, atualizando a linguagem: eles ficaram.
Segundo ele, aquele encontro parecia um encontro de almas. Acabara de conhecer
a garota, mas já parecia amá-la desde a sua infância. Quando o sol estava se
recolhendo, a turma do coral anunciou a hora da partida. Ela tentou ficar, mas
não foi possível, sua mãe não iria gostar de saber que ela teria se desgarrado
do grupo e ficado sozinha na festa. Ele ainda iria permanecer mais um dia na
cidade. A festa foi até altas horas da madrugada. No dia seguinte, ainda com um
pouco de ressaca, ele foi para a cidade, queria voltar a encontrar a menina do
coral. E a encontrou. Passaram a manhã e parte da tarde juntos. Ele estava
muito feliz por ter ficado com aquela garota. Era chegada a hora da partida. Vontade ele teve de permanecer para
sempre naquela cidade. Despediu-se da garota, com a certeza absoluta de que já
a conhecia, mesmo que fosse em uma encarnação passada, apesar de ele não acreditar nessas coisas de reencarnação.
Mas, sabe lá, nessas horas, acreditamos até no que não acreditamos.
Voltou para a casa
de sua tia, tinha que arrumar a sua bagagem para partir. Ao chegar em casa,
encontrou suas primas sentadas em torno de uma grande mesa, na cozinha.
Comentavam sobre os acontecimentos da festa no dia anterior. Ao vê-lo chegar,
ele se tornou o centro das atenções. Foi parabenizado por todos, por ter
namorado uma das meninas mais bonitas da festa. Então, ali, naquela cozinha, um
quebra cabeça se fechou. As conexões foram estabelecidas entre o passado e o
presente. Tudo que parecia sem sentido, num turbilhão de sensações
desordenadas, encontrou a sua ordem lógica, o enigma foi decifrado. Foi
lhe revelado que aquela garota com a qual ele teria namorado na festa – e no
dia seguinte, só que isso suas primas não sabiam –, era a primeira filha da professora,
aquela que teria vindo à cidade, para se casar com o senhor que trabalhava na
loja de tecidos. Seu corpo tremeu por inteiro, suas faces ficaram rubras,
sentiu-se um pouco tonto, sentou-se. Teve que tomar cuidado para que seu corpo
não revelasse o seu segredo. Ninguém poderia saber o efeito que aquela
revelação causou sobre a sua vida. Um segredo que era só seu. Ele acabara de
descobrir que a garota que ele namorou, enquanto permaneceu em sua cidade
natal, era a primeira filha da mulher que ele amou, na tenra inocência dos seus dez
anos de idade. Naquele momento, o mundo parou, sentiu-se reconciliado com as
suas lembranças. Já mais calmo, em paz consigo mesmo, com os olhos fechados,
respirou fundo, sentiu que sua alma lhe sorria. Todas as portas fechadas, a
mala arrumada, hora de voltar para casa, levando em sua bagagem um presente que
o passado lhe teria roubado.
E o que aconteceu
depois desse dia? Perguntei ao meu amigo. Ele olhou o relógio, falou que já estava tarde, que
morava longe e ainda tinha que pegar dois ônibus para voltar para casa. Outro
dia daria continuidade à sua história. Percebendo que ele estava inventando
desculpas para não concluir aquela história, não insisti. O tempo passou, a
vida nos separou, ele não cumpriu a sua promessa. Hoje, já não sei por onde ele
anda, mas tenho plena certeza de que algo a
mais aconteceu. Terceiros vieram me falar... Não dei muita importância às
novas narrativas... Essa é uma história que só teria sentido se fosse concluída
por ele... Algo me diz que vale a pena esperar a sua volta. Até porque
...
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