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ANATOMIA DE UM CRIME - Texto: Joceval Bitencourt

setembro 29, 2018Prof. Dr. Joceval Bitrencourt







ANATOMIA DE UM CRIME
Tudo começou no dia em que entrei numa livraria, com uma única intenção: roubar um livro. Às doze horas e trinta minutos, entrei na livraria, só tinha um vendedor tomando conta. No silêncio daquela hora morta, vendo-me sozinho, fora do alcance do olhar do outro, com a frieza de um matador de aluguel, executei o meu plano: roubei um livro. Era dois de maio de 1985, dia do meu aniversário. O livro roubado foi um presente que me dei. Fazia um calor de desidratar a alma, e a livraria oferecia uma sombra acolhedora. Hora do almoço. Quase ninguém visita livrarias nesse horário. Somente eu, visitando as estantes, e um funcionário cuidando dos seus afazeres. Poderia parecer sorte ter encontrado condições tão favoráveis à execução de meu plano. Não foi sorte. Sorte é coisa de amador. Tudo tinha sido minuciosamente planejado. A escolha daquele horário fazia parte da estratégia da ação que estava prestes a se consumar. O ambiente era propício para que a contravenção fosse cometida. Não posso negar que, apesar do medo, depois de realizado aquele ato delituoso, fui visitado por uma sensação de prazer desconhecido à minha alma. Todo o meu corpo festejava aquele feito. Aquilo, de certa forma, era mais que um roubo, era um grande ritual simbólico, no qual eu celebrava minha primeira transgressão existencial. Acabava de me libertar de meus fantasmas morais. A data, dois de maio, dia de meu aniversário, foi escolhida ao acaso, mas caía muito bem. Era um dia de alegria e eu merecia aquele presente. Se o crime hoje é revelado, é porque, pelo Código Penal brasileiro, esse delito já se encontra prescrito.
Não sei bem se o roubo de um livro pode ser considerado um crime. Só mesmo quem não tem o que fazer lança seus holofotes sobre um ato tão banal. Assim é o cronista. Fala de coisas desprovidas de qualquer importância. Onde ninguém consegue ver nada, ele é capaz de vislumbrar e dar valor ao que não existe. Considera-se um alquimista das palavras, tem a pretensão de transformar pedra em diamante. Logo, não é justo ser punido com cadeia por ter roubado um livro. Lembrei-me de que, em 1655, o Padre Antônio Vieira escrevera O Sermão do Bom Ladrão, proferido, naquele mesmo ano, na Igreja da Misericórdia, na cidade de Lisboa, diante de D. João IV, seus juízes e conselheiros, em cujo texto o escritor português demostra a injustiça de se prender alguém que rouba para matar a fome do corpo – ou do espírito, como era o meu caso –, quando os grandes ladrões, que roubam o povo, estão soltos. Enfim, minha transgressão, desejo de roubar um livro, estava plenamente acolhida e justificada nas palavras do bom Vieira: “O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera; os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento distingue muito bem São Basílio Magno. Não só são ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com mancha, já com forças roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo: os outros se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam”.
Todo ladrão de livro deveria ser perdoado. Quem rouba livro está investindo em cultura. O Estado, em vez de penalizar o infrator, deveria ter uma verba, no orçamento do Ministério de Cultura, com a seguinte especificidade: ressarcir à livraria o valor do livro ou dos livros que lhe foram roubados. Livro não deveria ser vendido. O governo deveria disponibilizar os livros, assim como disponibiliza vacinas para combater as doenças do corpo. Quando o cidadão se encontra com o seu corpo enfermo, procura um hospital público para tratar-se, tudo por conta do Estado. Por que, então, não pagar um livro que o cidadão roubou para cuidar de sua alma enferma? Acho perfeitamente justo. Sei que essa minha noção de justiça não é acolhida pela maioria das pessoas. Podem dizer: - “Essa sua ética é seletiva. Ela lhe é conveniente. Você a usa para minimizar e justificar a transgressão que acabou de cometer”. Não tiro a razão de quem pensa assim. Todo bom ladrão encontra uma justificativa legal para a sua ação ilegal. Eu buscava uma para a minha.
Tive colegas muito mais corajosos que eu. Sentia-me seduzido pelo crime, mas a minha formação religiosa me imobilizava – fui criado obedecendo cegamente aos preceitos da doutrina cristã –, tornando-se um impedimento para que meus desejos mais imorais ou transgressores da ordem social alcançassem o mundo. Na Igreja de Santo Antônio, lugar que religiosamente eu frequentava quando criança, principalmente aos domingos, doutrinavam-me sobre as ideias do certo ou errado, do bem e do mal. Nas homilias dominicais aprendia como renunciar a este mundo, onde reinava o pecado, e voltar o meu espírito para as coisas do alto. Saía daquela Igreja, cheio de medo, cheio de pavor do mundo. Queria ser feliz nesta vida, no entanto, com os preceitos religiosos, aprendia diariamente que jamais seria, que a verdadeira felicidade me aguardava quando eu não estivesse mais neste mundo. Era uma verdadeira perversão. De certa forma, um crime cometido contra as crianças. Não sabia, nem tinha como saber, que o padre estava mentindo. Eles sempre mentem. Lembro-me de que, aos 12 anos, tive meu primeiro encontro com a ideia da morte. Vi-me diante de minha própria finitude. Eu era um ser que já condenado a deixar de ser. Mais que isso, era uma morte anunciada, já tinha até data marcada, para que esse fatídico acontecimento se consumasse. Quase todos os domingos o padre nos assustava, dizendo que deveríamos nos preparar, porque o fim dos tempos estava se aproximando e que todos nós seriamos convocado a prestar conta a Deus pelos nossos atos. Todas as nossas faltas estavam anotadas num grande livro. Quando chegasse a nossa hora, o grande julgador pegaria o livro e faria a contabilidade de nossas faltas. Ao final dessa avaliação indicaria qual a direção que deveríamos tomar: se o Céu ou se o Inferno. Não conto as noites em que adormecia revisando as minhas faltas, querendo saber se alguma delas tinha uma gravidade suficiente para já estar assentada no livro das faltas eternas. Imaginava-me um ser alado, com asas poderosas, capaz de ir ao Céu e, escondido de Deus – fingia não ter aprendido na catequese que Deus é onipotente, onisciente, onipresente –, apagar as minhas faltas naquele livro do juízo final. De tanto medo do Inferno, vivia reprimido. Viver tornou-se um grande perigo. A todo momento tinha que conter os desejos do meu corpo. Tornei-me um repressor de minha imaginação, a qual muito frequentemente visitava os corpos das meninas. Vivia, então, um grande dilema: meu corpo desejava o mundo, minha alma queria ganhar o Céu. Tornou-se um tormento administrar a escolha entre esses dois caminhos. Era uma criança, mas já portava uma alma escravizada pela moral cristã. O fim do mundo já estava muito próximo.
Falava para mim mesmo: - “Poxa, as pessoas mais velhas deram mais sorte que eu. Vão morrer, é fato, mas já viveram bastante, e eu, que acabei de chegar a este mundo, já estou de partida!!!”. Não achava isso muito justo. Mas não iria discutir isso com aquele que é, em si mesmo, a própria justiça. Restava-me obedecer. Eu, na minha santa inocência, vivia fazendo contas para saber quantos anos eu ainda teria de vida. A angústia passou a habitar a minha alma. Não queria que o tempo passasse. Cada dia que se ia, mais perto eu me encontrava da morte. Pedia para o tempo parar. Não queria morrer. Passei a ter raiva do grande gestor do universo.
Se não bastasse esse pesado fardo que a moral doentia da religião me impunha aos doze anos de idade, impedindo-me de ser feliz, instalando-me no mundo da dor, do sofrimento, do medo, eu carregava em minha memória a história que um amigo meu – tínhamos a mesma idade – me contou, e que teria se passado com ele. Um dia ele teria chegado em casa com algo que não lhe pertencia, tentou esconder de sua mãe. Sua mãe, de posse de um tição, tirado do fogo, mandou que ele abrisse a boca e disse-lhe: - “Ou você me fala a verdade sobre isso que você tenta me esconder, ou eu vou colocar esse tição dentro de sua boca”. Ao falar isso, aproximou o tição da boca do filho, para mostrar que estava falando sério. Meu amigo sentiu a temperatura daquela brasa em chamas tocando em sua alma. Diante de tal crueldade, nunca se nega um crime. Ante a tortura, os fortes tornam-se fracos. Assume-se um crime, mesmo que dele nunca se tenha participado. Foi o que fez o meu amigo. Livrou-se do tição em chamas, mas não de uma surra que deixou seu corpo em marcas. Esse mundo agressivo apagava-me. O que aconteceu com esse meu amigo poderia muito bem acontecer comigo. Morria de medo de ser torturado.
Lembrava-me de uma vizinha que, quando um dos seus filhos transgredia alguma norma imposta por ela, aos gritos ela o ameaçava. Nós, de nossa casa, podíamos ouvi-la dizer: - “Olha, você tome jeito nessa sua vida, não brinque comigo, se eu te fiz, eu te desmancho”. Essa assustadora frase me acompanhou por toda a minha vida. Eu, do meu lado, ficava morrendo de medo de que a minha mãe, de tanto ouvir essa máxima, também resolvesse adotar a pedagogia do desmanche. Era uma criança cercada de medos por todos os lados. Sempre que me encontrava na iminência de cometer uma transgressão qualquer, ouvia uma voz que me alertava: - “Cuidado, você poderá ser desmanchado”. Quando escutava essa voz, ficava me perguntando: quem está falando, é a minha vizinha ou a minha mãe?
Roubar um livro, de certa forma, era um grito de liberdade, era a conquista de minha carta de alforria. Estava me livrando, ao mesmo tempo, da perseguição da moral cristã, da torturadora de meu amigo e, finalmente, da pedagogia do desmanche de minha vizinha. Tinha que mostrar para mim mesmo que eu estava livre. Poderia roubar o meu livro em paz. Em certa medida, roubar um livro foi o meio que eu encontrei para rir de Deus, mostrando-lhe que ele já não me assustava, já não podia me alcançar, que eu poderia virar-lhe as costas e seguir em frente. Naquele ato de rebeldia, cumpriria meu rito de passagem, conquistaria, definitivamente, o direito de ser senhor de mim, de tomar em minhas próprias mãos o meu destino. Chamava isso de liberdade. Portanto, não era pouca coisa, era um acerto de contas com o meu passado. No limite, era eu, enfrentando-me.
Habitava o mundo da Universidade. Território livre para todas as transgressões. Ali, estudantes de todos os lados, buscando ainda construir a sua identidade. Era o lugar ideal para cada jovem fazer a sua troca de pele, abandonar a velha ordem que lhe fora imposta e, na rebeldia que sua formação lhe direcionava, construir uma nova visão do mundo, na qual se sentisse mais confortável. Saía de um mundo onde tudo estava previamente determinado, como se tivesse que cumprir, rigorosamente, um roteiro moral que lhe indicava o caminho certo a seguir nesta vida, e entrava num outro mundo, onde o principal roteiro era não ter roteiro, ou melhor, poderia desconstruir o velho roteiro, a ele destinado, e sair pelo mundo. Como diz Caetano Veloso, no verso de Alegria, Alegria, o jovem universitário poderia seguir “caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento”, como se estivesse inagurando a sua nova chegada ao mundo, erguendo, no topo de sua morada, a bandeira da liberdade. Se isso valia para quase todos alunos da Universidade, valia muito mais ainda para os alunos do curso de Filosofia, que, por natureza, sempre teve como meta a desconstrução dos castelos onde habitam as verdades absolutas. Os filósofos sempre se identificaram com os movimentos iconoclastas. Naquele novo mundo encontrei gente de todas as configurações morais. Era um verdadeiro território de experiências lícitas e ilícitas. Aprendia-se de tudo. Quando se era muito esforçado, ainda sobrava tempo para aprender um pouco de filosofia.
Eu, muito curioso que era, queria aprender tudo, ao mesmo tempo. Aquele universo de novas ideias me encantava. Estava conhecendo, pela primeira vez, o mundo da liberdade, onde eu era senhor de mim mesmo. Buscava atravessar o Inferno de Dante, aproveitando todos os afetos que aumentassem a minha potência de ser que aquele novo mundo me oferecia.
Apesar dessa imensa abertura para o conhecimento do mundo, todos os caminhos me levavam a uma única direção: a Filosofia. Percebia isso claramente em minhas escolhas de amizade. Sempre me aproximava dos colegas que, não importa a forma, estavam perto dos livros. Dentre eles, conheci um que, por meio de sua prática, acabou por despertar em mim o desejo de cometer o meu primeiro delito. Depois, no processo de aprendizagem, busquei outros mestres, mas não posso deixar de reconhecer a grande dívida que eu tenho para com esse meu primeiro professor de ilicitudes.
Esse colega também fazia filosofia, apesar de não ter muita intimidade com ela. Sempre estava acompanhado de bons livros, o que causava inveja a todos, inclusive a mim. A companhia daqueles livros lhe imprimia uma aparência de intelectual, um verdadeiro frequentador dos jardins de Academus. Ele pertencia à classe média alta, logo, tinha dinheiro para comprar livros. O que lhe faltava mesmo era a habilidade para lê-los e interpretá-los. Uma vez, indo para a faculdade, num dia chuvoso, o livro que levava caiu numa poça de lama, ficando bastante sujo. Depois dos cuidados recebidos, ficou em condições de uso. Quando eu o encontrei, ele me perguntou: - “Quer comprar este livro?” Vontade não me faltou, mas dinheiro eu não tinha. Eu era um estudante pobre. Qual o estudante de filosofia que não gostaria de ter, como seu, as Obras completas de Aristóteles, em volume único, papel bíblia, com mais de mil e seiscentas páginas, da Editora Aguilar? É o sonho de consumo de qualquer estagiário da fábrica dos conceitos. Sentia-me como uma criança pobre que morre de inveja ao ver seu amigo desfilando com a bicicleta de seus sonhos. Falei que, apesar da vontade de ter o livro, não tinha condições de comprá-lo. Não sei se por pena ou querendo se livrar daquele livro sujo de lama, falou-me: - “Vou lhe propor um negócio: você me compra um par de tênis e eu lhe dou o livro. O que acha”? Nunca fui um grande negociante, mas, naquele momento, achei que estava diante de um negócio vantajoso para mim. Não poderia perder aquela oportunidade. Era um grande feito: um aluno de filosofia já possuir as Obras completas de Aristóteles. Diante de tal possibilidade, senti-me orgulhoso. Eu iria ter aquilo que, até, grande parte dos professores não tinha. Mas, apesar da vontade, não havia como manter o meu ego em alta. Se eu não dispunha de dinheiro para comprar o livro, também não o teria para comprar um par de tênis. Era uma conclusão óbvia. Então o meu colega me apresentou a solução do impasse: - “Se você não tem dinheiro para comprar o tênis à vista, pode comprá-lo em prestações”. Fiquei feliz com essa alternativa. Animei-me. Comprei o par de tênis em doze prestações. O livro foi para as mãos do encadernador de livros da Biblioteca - onde eu trabalhava. Era um artista na técnica de encadernar livros. Cuidou do livro como se estivesse cuidando de uma obra de arte. Retirou todas as sujeiras, com a guilhotina, cortou uma camada bem fina em torno do livro, finalizou os seus cuidados, vestindo-o com uma linda capa de couro. Não sei se esse meu colega ainda tem o par de tênis que lhe comprei, acho que não, mas eu, de minha parte, ainda gozo do prazer da companhia dessa Obra tão importante para a cultura ocidental. Dizem que os filósofos não sabem muito bem lidar com as coisas do mundo, são seres que vivem com a cabeça na lua. Não é bem assim. Pelo menos nesse negócio mostrei ser um bom negociador: saí lucrando. Ao longo da vida, estive diante de outros negócios, como compra de carros, compra de utensílios, compra de apartamentos etc. Mas, de sã consciência, tenho que reconhecer, de todos os negócios que eu fiz nesta vida, nenhum me foi mais lucrativo do que aquele em que troquei um par de tênis por um livro. Anos depois dessa transação, todas as vezes em que preciso dessa obra, ela, generosamente, coloca-se aos meus serviços.
Ninguém desconfiava daquele jovem estudante de filosofia. Tínhamos certeza de que os bons livros que lhe faziam companhia eram frutos da boa mesada - que deveria receber de seu pai. Ledo engano. Eram todos adquiridos à margem da lei. Sem saber, tornei-me receptador de uma Obra roubada. Um dia, estando com ele em uma livraria, num horário de pouco movimento, mandou que eu escolhesse um livro. Obedeci. Ele, ao meu lado, selecionou vários livros. Feitas as escolhas, dirigimo-nos ao único vendedor que, naquele momento, encontrava-se na loja. O vendedor pegou os livros, somou os valores e, para a minha surpresa, não nos cobrou. Estávamos autorizados a sair da livraria sem fazer o devido pagamento dos livros adquiridos. Levei um susto. Não sabia muito bem o que estava acontecendo. Ao seu lado, o meu colega me deu pressa para deixar aquele ambiente. Ali não era lugar para tirar dúvidas. Achando que iria ganhar um livro de presente, acabei de participar de um roubo. Sem querer, tornei-me um ladrão, ou pelo menos cúmplice de um. Naquele momento, me dei conta de que já era autor de um outro delito. Já não era um réu primário, já tinha um crime assentado em minha folha corrida. Ao comprar, nas mãos daquele meu colega, as Obras de Aristóteles, estava, de fato, cometendo meu primeiro crime. Eu, sem saber, era um receptador, comprando um livro roubado. Saí daquela livraria, envergonhado e triste. Em solidariedade ao meu amigo, acabei de tornar-me um transgressor da lei. Sem que eu percebesse, estava nascendo ali, naquele momento de muita tensão e medo, o desejo de também eu ter um crime pra chamar de meu. Não apenas participar de um crime alheio, mas ser, eu mesmo, o protagonista, o mentor de um crime que fosse todo meu – naquele momento, eu era um coadjuvante, o crime não era meu. Eu era uma “mula”, uma espécie de carregador do produto do roubo. Bem, muito nervoso, exigi uma explicação para o que acabara de acontecer, já que eu não estava entendendo nada. Então, já fora do local do crime, ele passou a me explicar o seu modus operandi: o pai dele era dono de um restaurante bem conhecido em Salvador. No final de semana ele ajudava o seu pai, dando plantão no restaurante, e assim justificava a sua mesada. Frequentador de livraria como era, selecionava, em cada livraria, um vendedor e o convidava a frequentar o restaurante de seu pai. A visita deveria ser feita no dia em que ele estivesse de plantão. Tudo era bem organizado. Não poderia ir, num mesmo final de semana, mais de um vendedor, de livrarias distintas. Tinha que ser um vendedor de cada vez. Não poderia chamar a atenção de seu pai. Cada vendedor poderia levar, no máximo, mais duas pessoas, além dele próprio. Concluída a noite de farra, a conta não era cobrada no momento, transformava-se numa espécie de crédito, que seria negociado num outro dia, em uma visita, previamente agendada, com aquele vendedor que teve sua farra dispensada de pagamento. Agora ficou claro por que aquele vendedor o dispensou do pagamento dos livros que o meu colega levou daquela livraria, inclusive o que eu ganhei de presente. Num mesmo dia, cometi um crime e tomei conhecimento de que, antes deste, já havia cometido outro crime: quando comprei aquela Obra de Aristóteles. No mundo do crime, já tinha uma folha corrida considerável. Distanciei-me desse meu colega, ele não era uma boa companhia. Mas, não vou negar, depois de ter participado, mesmo que indiretamente, de meu primeiro delito, uma ideia passou a me perseguir: o desejo de roubar o meu primeiro livro. De tanto manter comigo essa ideia, ela tornou-se bastante sedutora ao meu espírito. Será que eu conseguiria colocá-la em prática? Não faz muito tempo, voltei a encontrar esse meu colega. Disse-me que não tinha vocação para a filosofia, por isso a teria abandonado e optado pela carreira do Direito. Achei que foi uma escolha sábia. O Direito lhe caía bem.
Comecei a investigar crimes dessa mesma natureza. Não queria conhecer outros delitos, com certeza mais complexos, sem que antes tivesse pleno domínio deste, sobre o qual já tinha duas experiências. Geralmente, nesse processo de investigação, o primeiro campo a ser examinado é a nossa própria memória. Será que já não teria conhecido um outro ladrão de livros, diferente desse meu colega, que usasse outra técnica de roubo? Sim, só me interessaria se a técnica fosse diferente; afinal de contas, eu estava num processos de estudos, deveria ampliar meus conhecimentos a respeito de novas técnicas de ação criminosa. Não demorei muito, localizei numa das esquinas de minha memória uma outra experiência, de alguém que eu teria conhecido, mas que, até aquele momento, nunca tinha dado muita importância. Agora, identificado como autor de um crime que eu gostaria de cometer, resgatei-o do baú das lembranças, lancei sobre ele a intencionalidade do meu desejo e passei a estudar cuidadosamente o seu modus operandi.
Devo lembrar que a pessoa a quem me refiro pode ainda encontrar-se em pleno exercício dessa atividade. Logo, por questão de segurança, não o identificarei, passarei a chamá-lo pelo nome de uma cidade: Xangai. Um grande profissional na arte de roubar livros. Era dono de uma técnica apurada. Nunca foi pego. Causava inveja aos amadores vê-lo em ação. Usava um livro para roubar livros. Eis a sua técnica: ele pegava o dicionário de Aurélio, mais conhecido como o “aurelhão”, devido ao seu grande tamanho, e, de posse de uma régua e um estilete, começava a trabalhar. Riscava na primeira folha a forma geométrica do livro e, depois, usando o estilete, cortava todas as páginas, na mesma dimensão da primeira página, que servia de modelo. Ao final do trabalho, tinha um espaço, no interior daquele dicionário, que dava para colocar dois ou três livros, a depender da quantidade de páginas de cada um. Geralmente procurava as livrarias nos horários de pouco movimento. Às doze horas era o melhor horário, pois, além de as livrarias estarem quase vazias, só havia um, no máximo dois funcionários, os outros encontravam-se no horário de almoço. Entrava na loja, portando seu dicionário, previamente trabalhado, embaixo do braço. Dirigia-se ao vendedor, puxava um assunto qualquer, só para passar o tempo. Era o momento propício para o vendedor perceber que ele entrara na livraria trazendo um dicionário, logo, aquela máquina de roubar livro não pertencia à livraria. Ao perceber que o vendedor já se encontrava familiarizado com o seu livro, se retirava e se dirigia às estantes. Por ali ficava folheando os livros, mas o que estava fazendo, de fato, era escolhendo aqueles que seriam subtraídos. Livros escolhidos, certificava-se de que não estava sendo observado e, com a rapidez de um bote de cobra, fora do alcance da visão humana, perceptível somente através de uma gravação em slow motion, recolhia o objeto de seu desejo e o guardava dentro do dicionário. Deixava o dicionário sobre a mesa e continuava representando a cena do comprador de livros. Depois de um certo tempo, demostrando não ter encontrado o que procurava, pegava seu dicionário, já recheado de livros, e batia em retirada, não sem antes despedir-se do vendedor, demostrando uma certa proximidade, quase amizade, com ele. Fazia parte da técnica. Devia se mostrar amigo dos vendedores da livraria. Os amigos nunca são suspeitos. Se fosse reconhecido como um amigo da casa, teria mais liberdade para agir. Como era um sujeito muito simpático, facilmente conquistava a todos. Dele ninguém desconfiava. Toda a sua ação era regida com a frieza de um legista que disseca um corpo, cuja alma não mais o habita. O bom ladrão deve se mostrar firme e seguro na sua ação. O nervosismo pode colocar em risco toda a ação. Era um profissional, tinha bastante experiência no assunto. Nervosismo é coisa para amador. Lembro-me de que um dia, sem que ele percebesse, eu o vi em ação. Fiquei admirado com tamanha habilidade. Tive inveja, desejei ser ele. Perguntei-me: - “Será que um dia conseguiria roubar um livro com a mesma eficiência”? Acho que não. Não teria tamanha coragem, era um covarde, um fraco. Consumado o roubo, Xangai seguia seu curso tranquilamente, como se tivesse acabado de participar de uma cerimônia religiosa. Era uma ação desacompanhada de qualquer reflexão sobre o certo ou o errado. O único fundamento ético que acompanhava aquela ação era cumprir bem o que se propôs a fazer. Consumar o roubo, sem que nenhum olhar o alcançasse, só comprovaria seu profissionalismo no trabalho executado. Se usasse sua experiência para ampliar seu campo de ação, com certeza seria bem-sucedido. Gostaria de saber que fim levou Xangai, o que ele faz hoje da vida. Teria se tornado um banqueiro? Um político? Um advogado? Não sei, mas com certeza deve ter levado por toda a vida a sua grande experiência do passado. Nunca mais foi visto no território da filosofia. Tomou outro rumo. Era um moço inteligente. Desde cedo treinava outra possibilidade de trabalho, sabia que não conseguiria viver com dignidade se dependesse do salário de professor de filosofia.
Bem mais tarde, lendo O Diário de um ladrão, de Jean Genet, no qual o autor descreve sua convivência com ladrões, assassinos, prostitutas, homossexuais, marginais de toda natureza, fazendo-se, durante toda a vida, um deles, descobrir que Genet recorria a essa mesma técnica, só que usando uma pasta de fundo falso, para roubar livros nas livrarias de Paris. Diz Ganet: “Nunca antes eu teria pensado que livros poderiam justificar um assalto. Não roubamos aqueles livros, mas foi isso que me deu a ideia de frequentar as livrarias. Inventei uma pasta de fundo falso e me tornei tão habilidoso nesses roubos que me dava ao luxo de sempre executá-los sob as vistas do livreiro”. Fico me perguntando: será que o Xangai, já naquela época, teria lido essa obra e teria tomado Genet como o seu mestre na arte de roubar livros? Isso nunca vou saber.
Já tinha domínio de três modi operandi, mas ainda não estava contente. Algo me faltava, mais de que como roubar um livro, uma mera transgressão das leis dos homens, subordinada ao Código Penal, estava na iminência de desobedecer a uma lei moral de Deus: não roubar. Tinha conhecimento de que o Sétimo Mandamento classifica o roubo como um pecado grave. Fui criado num território demarcado pela legislação cristã. Transgredir essa lei seria pior que transgredir a lei dos homens, e isso poderia me condenar à danação eterna. Tinha mais medo de Deus do que dos homens. Tal medo só tornou o meu ato mais distante do meu desejo. Pensei em me recolher à prisão dos valores cristãos, aos quais minha alma já servia. Não sei se Deus existe. Mas, nessas horas, por precaução, melhor não duvidar. Estando prestes a desistir da ideia, me veio a pergunta: “Será que, mesmo biblicamente, o roubo é sempre proibido?” Fui então em busca dos conhecimentos obtidos em minha catequese, guardados em uma das dobras mais antigas de minha memória, e vi que, mesmo na Bíblia, o roubo pode ser justificado, a depender das circunstâncias. Quando um homem é explorado por outro, é justo o explorado se reapropriar daquilo que o explorador lhe subtraiu. Como pobre, sentia-me exatamente assim, explorado. O Estado constrói os pobres e os ricos. Queria vingar-me do Estado, por ter me colocado entre os pobres. O livro não era um bem do Estado, era um bem social. Portanto, me pertencia. Mesmo que o Estado dissesse não. Não estava roubando, só estava me apropriando do que já era meu. Pensando nessas coisas, lembrei-me de que na Bíblia, em determinada circunstância, Deus orienta um povo a roubar. Era mais uma experiência que buscava. Agora queria conhecer o modus operandi de Deus. Voltei-me para a Bíblia. Vi que no Êxodo, Livro 11,1-2, na véspera de o povo de Israel deixar o Egito, Deus passa a Moisés suas últimas orientações. Dentre elas, recomenda que os israelitas cometam um roubo, tomando emprestado sem pagar. Claro que tal ato se justifica porque, segundo Deus, o povo de Israel foi explorado pelo povo do Egito, portanto, aquilo não era propriamente um roubo. Israel estava pegando de volta aquilo que lhe fora indevidamente tomado. Bem, a justificativa pode justificar o ato, mas não muda a sua natureza. Assim, em sua partida, Deus autoriza os israelitas a cometer uma forma de roubo: “E o Senhor disse a Moisés: Ainda uma praga trarei sobre Faraó, e sobre o Egito; depois vos deixará ir daqui; e, quando vos deixar ir totalmente, a toda a pressa vos lançará daqui. Fala agora aos ouvidos do povo, que cada homem peça ao seu vizinho, e cada mulher à sua vizinha, joias de prata e joias de ouro”. Aqui, parece que roubar não é pecado. Mais tarde, noutras ciscunstâncias, o mesmo Deus de Moisés, no Sétimo Mandamento, indicará que o roubo é um pecado. São ciscunstâncias diferentes. Então, a transgressão, no caso o roubo, em si mesmo, é desprovido de qualquer fundamento moral e o que determina a sua ilegalidade é a lei das circuntâncias. Senti-me aliviado. Eu também tinha os meus Faraós. Logo, meu ato era legal, estava me apropriando do que era meu. Estava roubando o que me fora roubado. Que alívio, acabara de receber o beneplácito de Deus para o meu delito. Agora poderia roubar em paz.
Todas as vezes em que eu entrava na livraria, por puro exercício, simulava o roubo. Quando era bem-sucedido, uma forte descarga de adrenalina conduzia todo o meu corpo a um estado de prazer. Se eu obtinha êxito na simulação, com certeza não fracassaria quando chegasse a hora de colocar o plano em prática. Nesses momentos de treinamentos, a culpa, a vergonha, a raiva, o constrangimento, nada disso me acompanhava. Era um ato destituído de qualquer fundamento moral. No limite, era um ato que estava acima do bem e do mal. Um ato livre e absolutamente gratuito. Torcia para que os sentimentos pelos quais era tomado no treinamento fossem os mesmos que estivessem presentes na hora da realização do roubo. Como um atleta que se impõe um limite e treina, exaustivamente, até alcançar o seu objetivo, eu, exercitava-me para ser bem sucedido no meu objetivo: roubar um livro. Nesses meus treinamentos, meu maior cuidado era com o olhar do outro. Nenhum ladrão é ladrão para si mesmo. É o olhar do outro que o identifica, o classifica e o determina como tal. Sem o olhar do outro, eu não seria um ladrão. Era preciso que o olhar do outro não me alcançasse.
Era um ato puramente gratuito, sem dignidade, sem culpas, sem moral. A escolha do objeto a ser subtraído já indicava a insignificância do ato. Tinha pouca importância o valor do objeto a ser subtraído. Ninguém arrisca tanto, para roubar algo de tão pouco valor. O que importava ali não era o valor do objeto, mas a pura fluidez da transgressão. O que contava não era o objeto a ser roubado, mas o roubo em si. O que eu desejava era sentir o prazer de cometer aquele ato ilegal. O gozo era o roubo em si, não o seu produto. Se não bastasse isso, não era a necessidade que me fazia cometer aquele ato. Eu trabalhava numa biblioteca, com mais de duzentos mil exemplares. Livro não me faltava. Se fosse de minha natureza roubar livros, havia um monte deles à minha disposição. Não, não era esse o caso. Era só uma questão de inveja. Tinha inveja de meus amigos. Eu era muito certinho. Invejava o comportamento transgressor que eles portavam. Tinha consciência de que, assim como eles, também habitava em mim um ladrão. Investigando como o ladrão deles atuava, buscava, de verdade, despertar o meu, que se encontrava adormecido. Queria, pelo menos uma vez na vida, fazer o que fazia meu colega de faculdade. Quase como um rito de passagem, aquele ato me autorizava a ser membro da confraria dos transgressores da lei, dos rebeldes sem causa. Lutava para conquistar esse passaporte.
Era dois de maio, dia do meu aniversário, quando entrei naquela livraria... Cumpri com precisão as etapas do roteiro, previamente preparado e ensaiado. Tudo não levou mais de trinta e cinco minutos. Consumado o roubo, fiquei mais uns dez minutos, gastando o tempo, depois me dirigi à saida, não sem antes me aproximar do vendedor e despedir-me dele, demonstrando uma certa intimidade. Tinha aprendido isso no estudo do Modus Operandi dos meus mestres. Confiamos nos amigos, eles não nos traem. Aquele vendedor, de tanto me ver por ali, já nutria por mim uma certa amizade. Saio da livraria. Meu objetivo foi conquistado. Fim. Tudo que não senti na execução do roubo me veio em excesso na saída daquela livraria. Já na rua, encontrei-me bastante nervoso, quase trêmulo, a taquicardia acentuada, o calor contribuía para uma sudorese em excesso. A configuração daquelas ruas por onde eu passava aproximava-se do Inferno. Se não bastasse esse desconforto pós-roubo, sentia-me acuado, como se todas as pessoas que passavam por mim fossem testemunhas oculares do crime que eu acabara de cometer. Seus olhares me identificavam e me revelavam: esse é um ladrão, acabou de roubar um livro: prenda-o. Precisava me esconder do olhar alheio. De julgadores bastavam os meus olhares, olhando-me. Procurei um bar mais próximo. Sentei-me. Contemplando o produto do roubo, fui relaxando, como se a passagem das páginas, num movimento quase mecânico, tivesse o poder de diminuir a tensão em que me encontrava. Dizia para mim mesmo: - “Calma, acabou, tudo terminou bem”. Já relaxado e tranquilo, achei que deveria comemorar o êxito daquele dia de trabalho. Tenho que reconhecer, comportei-me como um profissional. Tive orgulho de mim. Sim, mereço comemorar. Peço uma cerveja. Tomo o primeiro copo e continuo folheando e admirando o objeto de meu roubo. Vejo uma jovem, mais nova que eu, se aproximar. Olhou-me, com o olhar de quem queria companhia. Convidei-a para sentar-se. Ela aceitou. Como ainda não tinha idade para consumir álcool, pediu um suco. Vendo o livro em minhas mãos, perguntou-me: - “Você também gosta de horóscopo?” Meio sem entender a pergunta, mas sem querer me aprofundar, dei-lhe um breve sorriso, desses que nada querem dizer. Então ela falou: - “Estou perguntando porque estou vendo você ler um livro que parece falar sobre o signo de Câncer”. Percebi então que ela tinha interpretado o título do livro Trópico de Câncer, de Henry Miller –, como um livro que tratava dos signos zodiacais. Falou-me que o seu signo era Capricórnio, mas que gostava muito do povo do signo de Câncer. Então me deixei ficar ali por alguns minutos, ouvindo suas declinações sobre o mundo dos astros. Disse-me que Câncer é o quarto signo do Zodíaco, que as pessoas desse signo são românticas, próximas à família, fazem de tudo para serem bem aceitas nos lugares, só que elas têm um defeito: apresentam muita dificuldade no momento de aceitar as mudanças. Apesar da pouca idade, mostrou-se bem segura quanto ao conhecimento sobre os mistérios dos astros. Ouvir aquela garota decifrando os segredos da astrologia me fez relaxar. Perguntei se ela gostava de ler. Respondeu-me: - “Não muito, mas de vez em quando, leio sim”. Vendo que ela se interessou pelo livro, dei-o de presente. Achei que ela entendia mais de literatura do que eu. Ela ficou alegre com o presente. Eu paguei a conta, despedi-me da garota, segui o meu caminho...

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