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CAMINHO, CAMINHANDO-ME.

janeiro 05, 2022Prof. Dr. Joceval Bitencourt


Lá pelos anos de 1982, esteve na Bahia, Félix-Guattari, psicanalista e militante revolucionário francês que, junto com Deleuze, escreverem o livro: O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Veio ao Brasil com a missão de falar sobre a sua experiência como militante do Partido Socialista Francês. Partido este que, mais tarde, chegou ao poder na França. Aqui no Brasil, a classe operária, principalmente aquela mais politizada, originária da região do ABC/Paulista, tinha a pretensão de fundar um partido político que representasse os interesses da classe trabalhadora. Nada melhor do que conhecer, na prática, como os trabalhadores de outros países se organizavam politicamente. A palestra de Guattari, foi realizada na casa dos padres jesuítas, situada no Bairro da Federação, em São Lazaro, onde funcionou, por muito tempo, a revista CEAS – Centro de Estudos e Ação Social -, espaço aberto para as vozes, silenciadas pela repressão daqueles tempos, pudessem se pronunciar. Ali, a esquerda política da Bahia se reunia, inventavam suas utopias, escreviam seus textos, socializavam as suas ideias. Ao final da palestra, foi distribuído uma lista onde os presentes deveria assinar, demonstrando sua concordância com a fundação de um partido político que representasse e defendesse uma visão de mundo dos oprimidos, uma visão de mundo da classe trabalhadora. Eu era um jovem, estava cursando o meu primeiro ano do curso de filosofia. Flertava com o movimento estudantil, mas não tinha tempo livre para dedicação exclusiva. O trabalho, condição necessária para a minha sobrevivência, impedia que a minha participação não fosse além do compartilhamento das ideias em busca de um mundo mais justo e livre para todos. Ao meu modo, nos limites de minha condição existencial, eu também era um revolucionário, queria mudar o mundo. Claro, que participei de algumas passeatas, inalei muito gás lacrimogênio, cercado pela polícia, invadir prédios em busca de proteção, mas não passei disso, não fui para a clandestinidade, não me tornei um guerrilheiro do Araguaia, não... Sempre fui um revolucionário doméstico, sem armas, só no plano das ideias, solidário com os bons e justos ideários políticos. Fiquei encantado com o que aquele intelectual francês falava. Ele, quando jovem, solidário aos movimentos iniciados pelos estudantes, junto com Sartre, Camus, Foucault, Simone de Beauvoir, entre tantos outros intelectuais, orientados pelo Partido Comunista Francês, pediam reforma na educação, na ordem social e no sistema político. No primeiro momento, o Quartier Latin, depois, as ruas de Paris foram tomadas por grandes e históricas manifestações. Na terra da queda da Bastilha, “O livro vermelho”, de Mao Tse Tung, estava em alta. Até os dias de hoje, cinquenta anos depois, a França carrega em sua alma os clamores daquele tempo. O mundo, por sua vez, não deixou de ser alcançado pelas utopias daqueles jovens estudantes: “É proibido proibir”, “A imaginação no poder”, “O Estado é cada um de nós” “Abaixo a sociedade de consumo”, “Corram camaradas, o velho mundo está atrás de vocês”, “Abaixo do calçamento está a praia”... Essas novidades já embalavam os meus delírios, ainda sem direção definida. Também queria um mundo assim. Liberdade, acima de tudo, Liberdade. Me reconhecia naquele projeto político. Finalmente os excluídos se faziam representar politicamente. O poder estava ao nosso alcance, queríamos conquistá-lo. Era o amanhecer do PT. Ainda sem uma grande convicção política, assinei aquela lista, com a intenção de, mais tarde, assinar, de forma definitiva, a ficha de filiação ao Partido. Não demorou muito, mesmo sem grande militância, tornei-me um filiado do PT. De lá para cá, entre alegrias e tristezas, votei sempre no PT. Tornei-me um petista, sem nunca ter frequentado a igreja do partido. Um “militante”, não um devoto. Longo tempo se passou. Meu último voto no PT, para prefeito de Salvador, foi em Nelson Peregrino, contra ACM Neto. O tempo passou, ACM Neto ganhou a prefeitura. Do outro lado, dessa vez, com o meu voto, Rui Costa, indicado por Wagner, que também teve o meu voto, ganhou o governo do Estado da Bahia. Veio a eleição para a Presidente da República. Votei em Ciro Gomes, no primeiro turno, no segundo, votei em Addad, candidato do PT. Bolsonaro ganhou as eleições. A vitória desse senhor, não teve, jamais teria a contribuição de meu voto, mesmo que os soldados do PT, com sua visão bipolar do Mundo, digam o contrário. Voltemos à Bahia. Na capital, o PT nunca ganhou sozinho, sempre fez coligações espúrias (uma prática bem conhecida da direita), mais preocupado em conquistar o poder do que construir um projeto político sério, visando o bem da cidade, como a coligação que fez com o pária do João Henrique - em São Paulo, sob imposição de Lula, aliança entre Addad e o representante de tudo do que de pior existe - e já existiu - na política brasileira: MALUF. Nunca votei na oligarquia de ACM (velho ou novo). Suas ideias estavam, e estão até hoje, bem distante de minha forma de pensar e olhar o mundo. Não posso negar, na corda bamba da política, flertei, e contínuo flertando – sim, flerte, nada de fidelidade, nada de devoção batismal -, muito mais com as causas defendidas pela esquerda do que com aquelas que identificam o cenário ideológico da direita. Sem o meu voto, ACM Neto tornou-se Prefeito de Salvador. Dois governos, ACM Neto e Rui Costa, um de “direita”, o outro de “esquerda” (será!!!), resolveram, entre si, disputar para ver quem faria a maior quantidade de obras em Salvador. Empataram. A população, com índices de mais de 70%, aprova a boa administração de ambos. Andando pelas ruas da cidade, não posso negar, estou alegre em ter perdido o meu voto. Tem certas derrotas que se transformam em vitórias. O resultado do embate político entre a “direitas” e a “esquerda” na Bahia, são traduzidas em boas obras para a cidade. A Bahia agradece. Viva a diversidade política. Com o tempo, aprendi a suspeitar dos profetas, daqueles que foram indicados por “Deus” para salvar a cidade, sejam eles de “direita” ou de “esquerda”. São homens perigosos. Depois de eleitos, assumem o Estado como um bem particular, dividindo-o entre aliados, amigos, não poucas vezes, familiares. O Estado deixa de ser um bem público para tornar-se um bem particular. O Estado sou Eu, e dos meus aliados, claro. Viva o “Rei Sol”. Para manter-se no poder, em nome de uma tal “governabilidade”, renunciam aos valores com os quais conquistou o voto e a confiança dos eleitores. Por trinta moedas, vende a sua alma para o Diabo. Não importa o que façam, estão sempre certos. Nunca erram. Quando erram, acertam. Seus discípulos vão sempre fazer uso da técnica nefasta de inversão dos valores. O “bem”, o “mal”, o “justo”, o “injusto”, bailam na tábua dos valores, atendendo, não ao bem público, o bem comum, mas aos interesses particulares. Apesar de esse ser um grande erro, é uma prática de toda ação orientada pelas paixões, fora do alcance das rédeas da razão. Haverá sempre uma “boa ação” que serve para lançar sombras sobre todos os pecados cometidos: “Rouba, mas faz”. Todos, não importando as cores de sua bandeira partidária, recorrem à essa “ética” seletiva, para, através dela, justificar e defender suas transgressões morais. Assim, o pecado nunca se encontra onde eu estou, nunca se encontra na minha igreja, mas, ao contrário, é uma ação abominável, praticada pelos que habitam do outro lado da margem, onde encontra-se erguida a igreja da perdição, morada de Mefistófeles. Caminhando em procissão, cada um, em sua margem, carregando o seu andor, sobre ele, o seu mito, o seu salvador, tenta conquistar as ovelhas que pastam na margem oposta, prometendo-lhes terras, onde a grama e farta e mais verde, onde não falta água, onde o governo é probo e todos podem alcançar a justa e merecida felicidade ... Em direção à terra prometida, a manada de obreiros, guiando-se pela “bandeira do divino”, segue a sua caminhanda... “se arrastando feito cobra pelo chão”. “[...] todos os preconceitos [...] dependem de um único, a saber, que os homens pressupõem, em geral, que todas as coisas naturais agem, tal como eles próprios, em função de um fim, chegando até mesmo a dar como assentado que o próprio Deus dirige todas as coisas tendo em vista algum fim preciso, pois dizem que Deus fez todas as coisas em função do homem, e fez o homem, por sua vez, para que este lhe prestasse culto”. (Spinoza – Ética). Quando as conveniências partidárias passam a justificar a relativização dos valores, é porque “há algo de podre no reino da Dinamarca”. Perguntaram a Platão, qual seria o critério para se identificar o Bem mais perfeito, o Bem ideal, ele não teve dúvida em dizer que identificamos o Bem mais perfeito, por sua extensão. Quanto maior a sua extensão, mais próximo do ideal ele se encontra. O bem que visa a cidade, é mais extenso que o bem que visa o cidadão. Logo, o bem que visa a cidade, é o mais perfeito, em relação ao bem que visa o cidadão. O bem universal, é mais perfeito do que o bem particular... O fenômeno em si, não é “bom” nem “mal”, o seu valor será determinado tendo em conta como eles nos afetam. Se somos afetados positivamente, os afetos são amados, desejados, tornam-se causa das nossas alegrias, aumenta a nossa potência de agir, motivos pelos quais buscamos cuidar e preservá-los. Os afetos negativos, ao contrário, diminuem a nossa potência de agir, tornando-se causa das nossas tristezas, motivo pelo quais não os desejamos. O bom seria se fossemos afetados só pelos afetos que nos trazem alegrias, que ampliam o nosso ser. Com bem diz o poeta, Vinicius de Moraes: “É melhor ser alegre do que ser triste / Alegria é a melhor coisa que existe”. Mas, não é isso que ocorre. Quase sempre estamos indo em direção contrária. O problema se apresenta quando a regência dos nossos afetos fica sob o comando das nossas paixões, fora do alcance do reto uso da razão. Nesse momento, embaralhamos as cartas dos afetos, não temos controle sobre eles e, desordenadamente, somos conduzidos para o campo da des-razão, onde reina nossas crenças, nossas esperanças, nossas superstições, campo aberto para que o fanatismo, cego e perigoso, torne-se a força orientadora de toda a ação do homem que, renunciando a sua autonomia, renunciando o direito que conquistou no processo civilizatório, alienou a sua alma, tornando-se servil a um salvador qualquer. “O fanatismo é a única forma de força de vontade acessível aos fracos (Nietzsche). Sem culpa, porque consciência não temos, sem controle dos nossos próprios passos, já não sabemos caminhar, como trôpego, esperamos que alguém nos carregue, nos salve, nos conduza à terra prometida... “Ainda que importe a todos os homens conhecer a verdade, todavia pouquíssimos a conhecem, porque a maioria deles se crê incapaz de procurá-la por si mesmos, ou não quer se dar ao trabalho de fazê-lo. Assim, não admira que o mundo esteja repleto de opiniões vãs e ridículas, nada sendo mais capaz de lhes dar curso do que a ignorância. De fato, é ela a única fonte de falsas ideias que se tem da divindade, da alma, dos espíritos e de quase todos os erros que dela derivam. Ė um uso que prevaleceu, contentar-se com os prejulgamentos que se carregam desde o nascimento, e consultar pessoas pagas para sustentar as opiniões recebidas e, por conseguinte, interessadas a convencer o povo a respeito delas, sejam verdadeiras ou falsas [...] Se o povo pudesse compreender em qual abismo a ignorância o arremessa, sacudiria logo o jugo dessas almas venais, que, para seu interesse particular, o mantêm nessa ignorância”. “[...] O que há de certo é que a reta razão é a única luz que o homem deve seguir, e que o povo não é tão incapaz de usá-la quanto se busca fazê-lo acreditar” (Spinoza - Tratado dos três impostores). Conhecer os afetos, ter a sua posse, dominá-los, ao invés de por eles ser dominado, é um indicativo que nos encontramos diante de uma alma que apendeu a cuidar de si, de uma alma que não se deixou escravizar, não se bestializou, pondo-se a serviço de um senhor qualquer – de “direita” ou de “esquerda” -, deste ou de um outro mundo, uma alma que, livremente, escolheu, escolher-se. Escolhendo-me, tenho caminhado, sem a certeza do caminho. Tenho convivido com gente cheias de certezas. São seres superiores, com tantas certezas de suas verdades, que chegam a me assustar. Devotos, sustentados pela força e o poder de sua fé, seguem o som do berrante tocado pelo seu Messias, pelo seu Salvador... Evito sentar-me à mesa dessa gente, compartilhar do seu vinho... “Como posso falar com meus superiores sem titubear?” Eu, que não tenho nenhuma certeza, só dúvidas e suspeitas? Sou um caminhante solitário, que escolheu viver sem Messias, sem Deuses? Deixe-me caminhar, minhas caminhadas incertas... Caminho, caminhando-me.

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