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Por que ler crime e castigo, hoje?

abril 08, 2022Prof. Dr. Joceval Bitencourt

Por que ler Crime e Castigo, hoje? Porque é um clássico da literatura universal. É uma boa resposta, mas muito vaga, não diz muita coisa. Então vamos mudar a direção da pergunta: por que ler os clássicos hoje? Essa, de fato, é uma boa pergunta. Como alguém, antes de mim, já deu uma resposta bem melhor que eu poderia dar, recorro a ele. Italo Calvino, em seu livro: Por que ler os clássicos hoje, nos oferece quatorze motivos para responder a essa pergunta. Começa definindo o que é um clássico e, em seguida, justifica porque devemos lê-los: 1 – Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: “Estou relendo...” e nunca “ Estou lendo...”; 2 – Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.; 3 – Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual; 4 – Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira; 5 – Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura; 6 – Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer; 7 – Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes); 8 – Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe; 9 – Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato ais se revelam novos, inesperados, inéditos; 10 – Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs; 11 – O “seu” clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele; 12 – Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia; 13 – É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo; 14 – É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.

Diante de tudo que foi dito por Calvino, não temos como não reconhecer que Crime e Castigo é um clássico, e, por uma extensão de valor estético/literário, é clássico tudo o que Dostoievski escreveu. Mas, quem esse autor? O que ele escreveu? 

Nasceu em Moscou em 30 de outubro de 1821. Filho de classe média: pai médico, militar de carreira, mãe, filha de um comerciante. O sonho de seu pai era que ele seguisse a carreira militar. Desde cedo, enquanto as crianças de sua idade, brincavam, ele fazia das leituras a sua brincadeira predileta. Sem ainda ter um gosto literário definido, lia de tudo que chagava às suas mãos, da mais alta literatura Russa, passando pela bíblia, Shakespeare, até a literatura popular, de nível literário duvidoso. Aos dezesseis anos segue para São Petersburgo, dando início a sua carreira militar. Em obediência ao que determinava o seu pai, seguiu uma profissão que a sua alma não desejava. Não tinhas nascido para as armas, sua vocação era com as palavras, com elas ele tinha intimidade, sabia como fazê-las erguer seus castelos de delírios. Era isso que ele desejava, para isso ele veio ao mundo. Com a morte do pai, assassinado por lavradores, conquistou a liberdade de ser senhor de suas próprias escolhas. Sem abandonar a carreira militar, passou a se dedicar às duas grandes paixões: a literatura e o jogo de azar. Essa segunda paixão será responsável pelas grandes tragédias em suas caminhadas. Em 1846, aos 25 anos, publica a sua primeira obra: Gente Pobre. O sucesso é total. O mundo editorial abre-lhe às portas. Não demora muito, as primeiras tragédias começam a lhe fazer visitas. Em 23 de abril de 1848, por ter participado de um movimento político, voltado para as ideias socialistas, contrário ao sistema político vigente, é preso, enclausurado na Fortaleza de São Pedro e São Paulo, considerada a prisão política mais temida da Rússia. Julgado por suas escolhas políticas, é condenado a perder todos os títulos e direitos de propriedades, bem como ao fuzilamento. Ao final, depois de vários recursos, Nicolau I o livra da morte, impondo-lhe uma pena de quatros anos em regime de trabalhos forçados. Sobre esse período, diz o nosso autor: “Vivíamos todos juntos em uma mesma caserna. Estávamos amontoados como os arenques num barril. Dormíamos nas tarimbas, sem lenções, sendo permitido um só travesseiro. Internavam-me volta e meia num hospital. O desarranjo dos nervos causou-me a epilepsia. Contudo não perdi o meu tempo em geral, conheci o povo Russo tão bem como poucas pessoas talvez o conheça”. Depois de dez anos no exílio, em 1859, retorna para São Petersburgo, já homem feito, sem carregar em sua bagagem os sonhos da juventude, exceto o de continuar nos caminhos da literatura, retoma sua vocação de escritor. Escreve, Memória da casa dos mortos, Humilhados e ofendidos, Diário do subsolo... Não tinha nenhum bem. Tudo que herdara, lhe fora tirado quando de sua condenação. Vivia só com os proventos de sua obra, que era muito pouco, sequer davam para manter a sua família. Encontrava-se no estado de miséria extrema. Aliado à sua miséria, o pouco que ganha, gastava no jogo de azar, vício adquirido ainda na juventude. Com o casamento em crise, abandona a sua esposa e passa a conviver com uma jovem, dezoito anos mais jovem que ele. Com a jovem amada, segue para a Alemanha, lá se entrega, em entrega absoluta, aos jogos. Perdeu-se completamente. Segundo ele, passava dias jogando, sem sequer se alimentar. Não demorou muito, abandona a jovem, retorna para a Rússia com a intenção de reconquistar a sua esposa. Em 1864, sua esposa morre de tuberculose. Esse ano não será um ano bom para o futuro autor de Crime e Castigo. Em seguida a morte de sua esposa, morre o seu irmão, considerado por ele como o seu melhor amigo, suporte a quem sempre recorria nos seus momentos de crise financeiras, que eram frequentes. Abatido por essas tragédias, escreve: “Eis que fiquei de repente sozinho e minha vida rachou de vez, tudo ao meu redor ficou frio e deserto”. Deste período, sentindo-se completamente sozinho, abandonado por todos, sem credibilidades entre seus pares, completamente endividado, morando de favor, retoma a literatura para, literalmente, pagar as suas dívidas. Passou a escrever quase que por encomenda. Como não tinha como sobreviver, já que nada tinha, recorria aos editores em busca de empréstimos, este condicionava a liberação desses empréstimos a uma obra a ser entregue em um determinado prazo. Assim, para não fechar essa última porta que se abria, entregava-se desesperadamente a escrever para entregar suas obras, previamente empenhadas - e pagas -, aos editores. Literalmente, escrevia para sobreviver, para pagar as suas dívidas, sejam adquiridas para manter o seu sustento e de sua família, seja para cobrir dívida conquistadas nos jogos de azar. Nessas circunstâncias, escrever deixou de ser um prazer, tornou-se um grande sacrifício que, a cada dia, definhava tanto o seu corpo quanto a sua alma. Escreve a uma amiga: “...se existe alguém condenado a trabalhos forçados, sou eu”. [...]Fiquei recluso na Sibéria por 4 anos, mas lá o trabalho e a vida eram mais suportáveis do que este meu labor de hoje... [...] fiquei sentado e trabalhei, literalmente, dia e noite. [...] minha saúde anda tão mal que você nem pode imaginar. Por causa do catarro das vias respiratórias, formou-se um enfisema, coisa incurável (apneia, falta de ar), os meus dias estão contados”. Desse período, de muita dor e sofrimento, nasce os seus clássicos: Crime e Castigo e Irmão Karamazov. Também escreveu: O jogador, O idiota, Vencido pelo cínico patriotismo da sociedade burguesa, Os demônios, O adolescente, Diário do escritor, entre outros... Morre em 28 de janeiro de 1881, em extrema pobreza, sem reservas financeiras para sequer cobrir as despesas com o seu próprio velório. Na miséria viveu, na miséria morreu. De suas dores, fez a sua obra. 


O sofrimento sempre acompanha uma inteligência elevada e um coração profundo. Os homens verdadeiramente grandes experimentam uma grande tristeza, acometido de uma melancolia súbita

Assim, Dostoiévski começa o seu livro que, ao longo do tempo, tornou-se um clássico da literatura universal: 

No início de julho, numa época extremamente quente, um jovem saiu, à tardinha, do cubículo que tinha alugado na viela S, e devagar, como que indeciso, foi em direção à ponte K. Ele se esquivou, felizmente, de encontrar a locadora na escada. [...] A dona dos quartos, que lhe locara esse cubículo com almoço e faxina, morava no andar de baixo... [...] Devia muito dinheiro à locadora e receava encontrá-la.

Não demora muito, o seu machado alcançará as têmporas da velha avarenta... 

Um dia qualquer, sem hora marcada no calendário do tempo, o jovem Raskólnikov, longe dos estudos, administrando a miséria que a vida lhe impões, morando num quartinho insalubre, cansado de encontrar a senhora Aliona Ivanóva, mulher mesquinha, rabugenta, agiota, a quem, em seus momentos de dificuldades financeiras, o que era bem frequente, penhorava os seus poucos bens que ainda lhe restava, começa a tramar, em seus delírios, como se livrar velha, cuja presença adoecia a sua alma. Entre seus devaneios justificadores para um futuro crime, e o crime propriamente dito, o tempo foi breve. Um dia, à machadada, a matou. Ao longo do livro, o personagem irá conviver os dramas psicológicos causados pelo crime cometido. Sem ser movido pelo arrependimento, passa a conviver com as suas dores, com as suas crises existenciais, fazendo de cada dia de sua vida, o seu próprio pelourinho. Ao matar aquela velha avarenta e, mais tarde, para silenciar uma possível testemunha, cometendo o mesmo crime com a irmã da primeira vítima: Lizavieta, estava, no limite, condenando a si próprio à morte. Estava vivo, mas um morto vivo. Ao matar aquelas duas senhoras, foi a si mesmo que matou.

“Foi a mim que matei, não a velhota! No fim das contas eu matei simultaneamente a mim mesmo, para sempre!...”

Fazendo do leitor o seu cumplice, Raskólnikov consuma o “nosso” crime...

“- Por que vieste, meu queridinho, assim tão de repente?... O que é isso? -perguntou ela, olhando para o penhor. - Uma cigarreira de prata, como lhe disse da última vez. A velha estendeu a mão. - E por que estás tão pálido? E as mãos tremem! Tomaste banho gelado, hein, queridinho? - Estou com febre – respondeu ele, de modo entrecortado. – Qualquer um ficaria pálida sem ter o que comer – acrescentou a seguir. Custava-lhe articular as palavras; as forças iam abandoná-lo outra vez. Porém sua resposta parecia verossímil; a velha tomou o penhor. - O que é isso? – perguntou ela, tornando a examinar Raskólnikov e pesando o penhor na palma da mão. - Uma coisa... uma cigarreira... de prata... olhe. - Não parece que seja de prata... Eta, que nó fizeste. Tentando desatar a fita, ela se voltou para a janela, ficando mais perto da luz (todas as suas janelas estavam fechadas, apesar do abafo), depois o deixou por alguns segundos e virou-lhe as costas. O jovem desabotoou o casaco e retirou o machado do laço, porém não chegou a sacá-lo, segurando, com a mão direita, debaixo da roupa. Suas mãos estavam muito fracas; ele mesmo sentia como, a cada instante, elas ficavam mais formigantes e rígidas. Temia que o machado lhe caísse das mãos... De repente, tive uma vantagem.

- Mas que diabo de nó ele fez! – exclamou a velha, irritada, e moveu-se em direção dele. Não havia mais um segundo a perder. Ele tirou o machado, ergueu-o com ambas as mãos e, mal entendendo o que fazia, golpeou com o cabo de madeira a cabeça da velha, quase sem esforço, quase maquinalmente. Não tinha força nesse momento, mas, desferido o primeiro golpe, surgiu-lhe a força. A velha estava, como sempre, de cabeça nua. Ralos e levemente grisalhos, seus cabelos claros estavam, de modo usual, fortemente ungidos com óleo, reunidos numa trancinha igual a um rabo de ratazana e presos com um estilhaço de pente de chifre que sobressaía na sua nunca. O golpe atingiu justamente seu sincipúcio, devido à pequena altura dela. A velha soltou um grito, porém muito fraco, e de repente desabou toda no chão, levando as mãos à cabeça. Uma das suas mãos ainda segurava o “penhor”. Com todas as forças, Raskólnikov lhe golpeou duas vezes o sincipúcio, de novo com o cabo do seu machado. O sangue jorrou como um copo emborcado, e o corpo dela caiu de costas. Ele recuou, deixando o corpo cair, e logo se inclinou sobre o rosto da velha: ela já estava morta. Seus olhos estavam arregalados, como se fossem saltar das órbitas, a testa e todo o rosto, franzidos e deformados por uma convulsão. Ele pôs o machado ao lado da morta e logo enfiou a mão no seu bolso, procurando não se sujar com o sangue vertido, naquele mesmo bolso direito do qual ele tirara, da última vez, as chaves. Estava completamente lúcido, não tinha mais perdas de consciência nem tonturas, embora as mãos continuassem a tremer...”
 

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