Artigos Joceval

O COICE DO ASNO

dezembro 07, 2022Prof. Dr. Joceval Bitencourt

 



Um amigo, vou identificá-lo por Diógenes, com formação em filosofia, me narrou algo ocorrido com ele que o teria deixado muito triste. Sempre gostei de ouvir suas histórias. Ele, é o que poderíamos chamar de um bom contador de histórias. É verdade que, às vezes, mente um pouco, mas, acho eu, esse é só um recurso literário do qual ele faz uso visando tornar as suas narrativas mais interessantes, quem sabe, um pouco mais teatral. Participava ele de uma entidade que lida com confecções de documentos, resoluções, coisas do gênero. Um dia, em uma reunião formal da entidade, foi apresentado um documento que, depois de lido, seria submetido à votação da plenária. Lido o documento, foi aprovador por unanimidade. Ele, apesar de ter voltado favorável à aprovação do documento, indicou algumas críticas à forma como o tal documento teria sido elaborado. Diante de sua crítica, achou-se por bem que o documento voltasse em uma próxima sessão para ser reavaliado. Tal situação criou um certo desconforto, principalmente daqueles que queriam à aprovação imediata do documento. Não demorou muito, em uma nova sessão, o documento voltou à pauta. Em sessão, o jovem relator reapresenta o documento, antecedida de algumas observações. Uma delas teria deixado esse meu amigo muito triste. Disse o jovem relator: “Hoje, antes chegar à esta sessão, recebi a seguinte recomendação: ‘não leve em conta as provocações de Diógenes!’”. Ele sentiu o impacto. Apesar de ter ficado perplexo, evitou deixar transparecer, não queria que os presentes percebessem o seu desconforto. Teve vontade de saber quem orientou o jovem relator a lançar, em sua direção, uma flecha tão venenosa. Entretanto, evitando ser a causa de um mal-estar na sessão, silenciou sua curiosidade. Sentiu, como se tivessem dito: “não ligue para o que ele diz, ignore-o, apesar da discordância dele, ninguém o levará em conta, ao final, todas as mãos estarão levantadas em nossa direção”; ou: “deixe ele falar, nada do que ele diz, nos interessa”. Diógenes percebeu, naquele momento, que aquele não era mais o seu lugar, ninguém lhe ouviria, ninguém estava interessando em seu canto. Estava sendo só tolerado no grupo, mas não considerado parte dele. Chegara a hora de alçar voo, levar o seu canto para uma outra Ilha. Tinha certeza de que, às suas costas, estava sendo motivo de chacotas. Deu de ombros para essa possibilidade, sabia que ele não seria o primeiro, tão pouco o último, a ser vítima de pilhérias. Sempre foi assim. Sócrates, dando o exemplo do ocorrido com Tales, nos lembra que todos que se põe a filosofar, torna-se motivo de chacota, de zombarias: “Tales, quando observava os astros; porque olhava para o céu, caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Tárcia zombou dele, com dizer-lhe que ele procurava conhecer o que passava no céu, mas não via o que estava junto aos seus pés”. Marx, que nem sempre teve os filósofos em boa conta, não perde a oportunidade de fazer chacota com os fabricadores de conceitos. Em uma carta, dirigida a Laura, sua filha, ele zomba dos filósofos, indicando a inabilidade desses contempladores de estrelas para com o mundo prático da vida: “[...] um barqueiro recebe um filósofo que deseja fazer a travessia entre as margens do rio”. Começa o diálogo entre eles: “Filósofo: barqueiro, você sabe História? Barqueiro: não! Filósofo: então perdeu a metade de sua vida. Continua o Filósofo: estudou matemática? Barqueiro: não. Então perdeu mais da metade de sua vida. Essas palavras apenas haviam acabado de sair da boca do filósofo e o vento virou o barco e ambos, barqueiro e filósofo, viram-se lançados à água. Então, o barqueiro perguntou ao filósofo: você sabe nadar? O filósofo responde: não. O barqueiro conclui: então você perdeu a vida inteira”. E por aí vai, sempre alguém a zombar dos filósofos... Ouvindo o meu amigo, sendo solidário a ele, vi a minha alma entristecer. Não gostaria de estar no lugar dele. Bem, essa história me foi contada num bar, depois da terceira saideira. Fechada a conta, nos despedimos, cada um seguiu seu caminho. Mas, apesar de o tempo ter passado, com certeza, ainda tocado pela tristeza do meu amigo, aquela história não me abandonou, sempre voltava a me incomodar. Uma tarde, sentado na varanda da minha casa, tomando um whisky, contemplando o entardecer, esse assunto voltou a me visitar. Sem nada para fazer naquele momento, deixei-me levar pelo desconforto do acontecido. Pensei comigo mesmo: tempo feio esse que estamos vivendo, não há mais lugar para os filósofos. Empobreceram a tal ponto o pensamento que, não pensar, tem mais importância, mais valor, reconhecimento e aceitação pública, do que o seu contrário. Pensar tornou-se uma excrecência moral que deve ser evitada por todos os homens de “bem”. Que triste, já não se tem ouvidos para ouvir o que diz Descartes: “Os brutos animais que apenas possuem o corpo para conservar ocupam-se continuamente na procura de alimentos; mas os homens, cuja a parte principal é o espírito, deveriam empregar os seus principais cuidados na procura da sabedoria, que é o seu verdadeiro alimento” (Carta prefácio). A embarcação deve seguir o seu curso, a tripulação, com seus ouvidos devidamente tapados com cera, deve seguir a orientação de Ulisses, ele conhece a verdade, a ele caberá a responsabilidade de indicar o melhor caminho... Enquanto assim delirava, não me dando conta que a noite já apagara a luz do dia, me veio à mente algo que teria acontecido com Sócrates. Por analogia, acabei encontrando similitude entre o ocorrido com o meu amigo Diógenes e com Sócrates. Certa vez, Sócrates encontrava-se no mercado, na cidade de Atenas, na companhia de alguns discípulos, filosofando, prática que se dedicava com muito prazer. Falava da “importância da democracia”, “que ser um ‘bom’ cidadão é fazer um bom uso da razão em benefício da cidade”, “que, entre todos os pecados, a ignorância, é o pior deles” “de como é fundamental, para a saúde do bem público, que o governante seja capaz de ouvir o povo antes de elaborar as leis da cidade...”. Bem, falava isso e outras coisas mais... Era um moralista. Um devoto das leis. Diante da possibilidade de transgredir às leis de Atenas, e salvar-se, escolheu tomar o cálice da morte. Enquanto falava essas coisas, além dos seus discípulos, que estavam sempre por perto, outras pessoas foram se aproximando, inclusive alguns que participavam da coisa pública, queriam saber sobre o que tagarelava aquele “feio” filósofo... Não demorou muito, o que Sócrates falava começou a causar um certo desconforto em alguns dos presentes. Logo se ouviu, de um: “não ouçam este homem, nós sabemos o que é melhor para a cidade, não ele”, de outro canto, um outro falou: “Não tens visto, por onde ele anda, é motivo de chacotas!!!”, mais um: “deveria procurar um emprego, ao invés de ficar perambulando pelas ruas, lançando injuria contra a cidade e os deuses que adoramos”; “ele é perigoso, vive corrompendo os nossos jovens...”. Não demorou muito, as agressões, já não mais com palavras, tornaram-se físicas. Um, mais exaltado, se aproximou e deu um tapa na cabeça de Sócrates, um outro chegou e o empurrou, quase levando-o ao chão, logo, um mais ensandecido, desprovido de qualquer pudor, deu-lhe um chute no traseiro... Seus discípulos, vendo a violência aumentar, foram ao seu socorro, tirando-o daquele perigoso lugar. Já à salvo, Sócrates ouvi a recomendação dos seus discípulos que se encontravam revoltados com as agressões sofridas por seu mestre: - “Sócrates, não é jutos você sofrer essas agressões. Você não as merece. Você tem que levar esses agressores ao tribunal, eles devem ser punidos pelo crime que acabaram de cometer contra você”. Em silêncio, Sócrates ouvia os seus discípulos. Depois de ouvi-los, ele disse: “Caros amigos, respondam-me: “se eu recebesse coices de um asno levá-lo-ia por acaso aos tribunais?” Discípulos: - “Não, claro que não”. Sócrates: - “então amigos, estamos tratando do mesmo caso”. Lembrando-me do ocorrido com Sócrates, não mais fiquei triste com o ocorrido com o meu amigo Diógenes, mas, ao contrário, acabei ficando triste com o conselheiro do jovem relator que o orientou a não levar em conta o que diz o filósofo.

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