TRIBUTO A UM AMIGO

dezembro 18, 2022Prof. Dr. Joceval Bitencourt

 

“O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que elas acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis” (F. Pessoa).

TRIBUTO A UM AMIGO. Aos meus treze anos, morava em Feira de Santana, estudava num dos melhores colégios da cidade, não pagava, era bolsista. Não é fácil, pobre estudar entre ricos, tudo parece fora do seu alcance, até as amizades. Não tendo nada a ganhar em sua companhia, os garotos ricos buscam evitá-lo. As garotas, por sua vez, correm dele como o Diabo corre da cruz. Diminuiria bastante o seu prestígio, juntos aos garotos ricos, serem vistas na companhia de um garoto pobre. Naquele lugar, ser pobre era uma doença infectocontagiosa, uma espécie de lepra, da qual ninguém quer se aproximar. Quando se tratava de convivências obrigatórias, aquelas que se realizam nos trabalhos coletivos, na qual a sala se divide em equipes para desenvolver uma determinada tarefa de uma disciplina, a sua vida não se tornava mais fácil, não, ao contrário, quase sempre as coisas se complicavam, sua exclusão social só aumentava. Em colégio de ricos, os trabalhos escolares são muito caros, quase proibitivos para os pobres. Mesmo em equipe, cada membro do grupo tem que pagar a parte que lhe cabe nas despesas. Na hora da formação das equipes, eu nunca era escolhido. Parece que todos já sabiam que, na hora da divisão das despesas, não podiam contar comigo. Eu era o último a ser escolhido. Ao final, vendo-me sozinho, sem fazer parte de nenhuma equipe, sempre aparecia uma alma caridosa e me resgatava do pleno abandono. Eu, envergonhado, aceitava. É neste momento que aparece um jovem, com a mesma idade que eu, que, vendo-me excluído, resgatava-me, incluindo-me entre os indiferentes a mim. Chamava-se Salomão, não me recordo o seu sobrenome. Tornou-se o meu salvador. Encontrando alguém para me salvar, ancorei-me nele, confiando em sua amizade. Ele era fruto de uma família bem sucedida. Seu pai exercia um alto posto na Receita Federal, tinha sido transferido de São Paulo para assumir essa função. Não era uma família grande, era ele, uma irmã, o pai e a mãe. A mãe dele, muito generosa, demonstrava não ter preconceito contra a minha pobreza, sempre me acolheu com alegria. Não poucas vezes, fazendo tarefas escolares com o seu filho, me demorava, de propósito, na esperança de que, quando a hora do jantar chegasse, eu, ainda estando por ali, fosse convidado a permanecer e fazer a refeição com a família. Não demorou muito, minha estratégia foi descoberta. Sabendo da minha esperteza, a mãe do meu amigo poderia me mandar voltar para casa mais cedo, mas não, não era isso que ela fazia, pelo contrário, passou a me convidar a permanecer para as refeições. Não bastasse isso, ao final da refeição, quando chegava a hora de eu voltar para casa, sabendo que eu iria fazer o percurso de volta a pé, ela pagava o meu transporte. Bem, voltemos ao colégio. Lembro-me que um dia, fui escolhido para fazer parte de uma equipe que deveria apresentar um trabalho sobre a Inconfidência Mineira, tínhamos que construir uma forca na qual Tiradentes seria enforcado. De minha parte, sem problema, tudo seria resolvido facilmente com material reciclado ou, no máximo, se se quisesse um pouco mais de luxo, bastaria duas páginas de isopor, alguns pedaços de madeira, um boneco de plástico, facilmente encontrado no lixo, acrescentaria à ele um pouco de cabelo e barba, feito com algodão, tingido de preto, com três pedaços de madeira, coladas com tenaz, seria feito a forca, um taco de corda, entrelaçado ao pescoço do boneco, já devidamente vestido, pronto, com êxito, sem muitos custos, teríamos dado conta do inconfidente republicano. Para minha tristeza, essa sugestão não foi bem acolhida pelo grupo. Aquilo era coisa de pobre, disseram eles. Queriam algo mais sofisticado, afinal de contas eles eram ricos e tal fato deveria ser evidenciado, inclusive na apresentação dos trabalhos. Depois de algumas reuniões, chegaram a um consenso: a maquete seria feita por um carpinteiro profissional. Decisão que me deixou em pânico. Não tinha como contribuir financeiramente. Já me via fora da equipe. Nesses momentos, buscando-me proteger dessa, e de futuras humilhações, começava a fantasiar a hipóteses de abandonar aquele colégio. Aquele não era o meu lugar. Na pirâmide social, eu estava onde não deveria estar, encontrava-me no Vértice, quando o meu real lugar era a base. Este era um pensamento só meu, não poderia compartilhá-lo com ninguém. Se a minha mãe fosse capaz de decifrar os meus pensamentos, com certeza eu seria levado ao pelourinho. Só na cabeça de um desmiolado, sem nenhuma noção da realidade, poderia passar a ideia de abandonar o melhor colégio da cidade, onde todos desejam um dia estudar, para se matricular em um colégio público, com certeza, no período da noite, já que durante o dia teria que trabalhar! Antecipava a voz de minha mãe dizendo-me: siga em frente, onde já se viu ter vergonha, pobre não pode se dar a esse luxo... Sigamos, então. Feito a divisão, coube o valor de cinquenta reais - provavelmente este seria o valor nos dias de hoje -, para cada um dos membros da equipe. Não existia qualquer possibilidade de eu pagar a minha parte. Coube ao meu amigo a função de tesoureiro da equipe. Generoso que era, tentou me ajudar. Ao invés de dividir o valor do trabalho por cinco, que era a totalidade dos membros da equipe, dividiu por quatro, dessa forma eu poderia participar do grupo, sem precisar pagar a minha parte. Tentar ludibriar seus colegas, não foi muito honesto da parte dele, mas não o culpo, sua intenção era boa, só queria encontrar uma saída para ajudar o seu amigo pobre. A certeza de que estava fazendo uma boa ação, aliviava o peso de sua consciência, não sentia remoço dá transgressão ética que estava cometendo. Estava agindo com a ética de Robin Hood: roubando dos ricos para dar aos pobres. De minha parte, não vendo outra alternativa para sobreviver na equipe e não ser reprovado na disciplina, por pura necessidade, fiz-me cumplice da ilicitude, silenciando-me. Para minha tristeza, e maior vergonha ainda, a trapaça foi descoberta. Os trapaceiros desmascarados. Depois de uma reunião entre eles, da qual, para preservar um pouco de dignidade que ainda me restava, não participei, tomaram uma decisão: eu deveria pagar a minha parte, caso contrário, seria excluído da equipe. Simples assim: quem pode participar, participa, quem não pode, cai fora. Em nenhum momento a minha pobreza sensibilizou àquelas jovens almas. Minha pobreza não era de responsabilidade deles. Liam o mundo segundo às suas próprias conveniências. Não seriam eles que iriam fazer correções no destino que Deus traçou para cada um dos seus filhos. Não tendo a quem recorrer, já antecipava a minha reprovação na disciplina. Salomão, que teria sido voto vencido na reunião, compadecendo-se de mim, mais uma vez, veio ao meu socorro. Sem que eu soubesse, levou ao conhecimento de seus pais o drama pelo qual eu estava passando. O pai dele, tão generoso quanto o filho, de imediato assumiu a minha dívida, não me deixando ser excluído da equipe. A sua ajuda veio acompanhada de uma recomendação: que nenhum membro da equipe tomasse conhecimento do ocorrido. Tudo deveria parecer normal, cada qual pagando a cota que lhe coube na divisão. Assim, além de pagarem a minha dívida, evitaram que o triste fato se espalhasse, no primeiro momento, entre os membros da equipe, em seguida, entre todos os alunos da turma, protegendo-me do triste olhar de piedade que, com certeza, viriam em minha direção. Mesmo muito envergonhado, por pura necessidade, continuei a frequentar a casa desse meu amigo. Apesar do ocorrido, a família dele continuou me tratando com muito carinho, indicando que aprovavam a amizade entre o seu filho e eu. No Natal, me davam presentes e ainda mandavam presentes para os meus irmãos. Eram pessoas, de fato, generosas. O engraçado de tudo isso é que esse meu amigo nunca conheceu onde eu morava, sempre que a possibilidade surgia, eu inventava desculpas para que tal fato não ocorresse. Não queria que o meu amigo rico, que morava em uma bela casa, em um condomínio de luxo, colocasse ao alcance dos seus olhos, a pobre casa onde eu habitava. Não demorou muito, nos separamos, comecei a trabalhar, troquei de colégio, fui para a escola pública. Salomão permaneceu entre os seus iguais, nunca mais nos encontramos. Algumas décadas já se foram, mas nunca esqueci a boa ação daquele garoto, há época, ainda uma criança. Fico a me perguntar, onde estará ele hoje? Tem família? Quantos filhos? A vida lhe foi generosa? Espero que sim, ele merecia. Sei que tudo não passa de delírios, mas, não poucas vezes, já imaginei encontrando-me com ele, ao acaso, reconhecendo-o, tendo a chance de agradecer-lhe por ter sido um dia tão generoso comigo. Aquele belo gesto, levou-me, ao longo da vida, a tomá-lo como referência, orientando-me a agir com os outros da mesma forma que um dia aquele garoto agiu comigo.

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