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CASA DA MINHA INFÂNCIA: FAZENDA GRACIOSA - Autor: Joceval A. Bitencourt
junho 28, 2018Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
O tempo passa, mas não o perdemos por inteiro,
selecionamos os melhores momentos e o retemos na algibeira de nossas
lembranças. Ao longo da vida, todo mundo deve ter escolhido um lugar o qual
identifica como o canto onde foi feliz. Esse é o meu canto: Fazenda Graciosa. Vendo
essa foto, tirada recentemente, (se a memória não me falha), poderia dizer que
nada mudou, ainda é a mesma casa onde minha alma de criança brincava e era
feliz. Seus proprietários, dois queridos
tios: Edite e Zeca.
Edite, mais conhecida como Dite, mulher forte,
dinâmica, respeitada e admirada por todos, uma matriarca de coração generoso, a
quem, por prudência, sempre obedecíamos...
cuidadora de um monte de filhos, zelava por todos que batessem à sua porta em
busca de cuidados. Sua casa era uma referência de acolhimento. Todos a ela
recorriam quando precisavam de uma parteira, de uma “dentista”, de uma “ortopedista”.
Era uma “médica”, sem ter cursado a academia. Num canto do mundo, onde os
médicos, “Doutores de Diploma”, quase nunca existiam, quem cuidava do povo eram
pessoas como Dite, que, dotadas de um conhecimento prático, conquistado na
Universidade da Vida, acolhiam os carentes e enfermos que buscavam os seus
cuidados. Em sua vida de experiências, conseguiu deter um profundo conhecimento
das coisas da natureza. Antes de a Fitoterapia ser uma ciência, Dite já dominava
os seus segredos.
No fundo de sua casa, em um grande descampado, ela construiu a sua farmácia
natural. Para cada doença, existia uma erva para combatê-la. Sem nenhum estudo
formal, dotada unicamente do conhecimento legado pela experiência que a
necessidade foi lhe impondo durante a vida, era capaz de identificar o
princípio ativo de cada erva de sua farmácia e, mais que isso, associar aquele
princípio ativo a uma determinada patologia. Era exatamente essa sua habilidade
que a destacava na comunidade, o que a tornou uma referência no domínio do
saber das plantas. Como bem dizem os gregos, “a
experiência produz arte, a inexperiência produz o acaso”. Afirmava, com propriedade, que o
princípio ativo da Arnica servia para tratar dores musculares; Baba de Babosa,
excelente para combater caspa, piolho, aliviar as dores das queimaduras e muitas outras queixas; Camomila, tônico digestivo; Carqueja, regulador da taxa de
açúcar no sangue; Dente de Leão, agente diurético; Erva-cidreira, melhor remédio não há para barriga inchada; Malva,
no combate a problemas de pele; Mastruz, excelente cicatrizador; Boldo, para quando
a comida não cai bem; Alfavaca, ideal para baixar a febre; Limão e Alho, separados, servem para um monte de doenças,
além do uso na culinária e, quando juntos, tonam-se poderosos para combater a
gripe... e por aí vai... a experiência da vida respondendo às necessidades do corpo e da mente. Fizeram da
matriarca daquela casa uma Doutora sobre os assuntos da saúde. Conhecimento que
fazia questão de usar em benefício dos outros. Não apenas usava, era generosa,
ensinava, compartilhada os seus saberes. Assim, cada um, do seu canto, poderia
usar a natureza em seu próprio benefício e ser, ao mesmo tempo, um
multiplicador desse conhecimento milenar, tão útil ao povo pobre, desassistidos
pela rede de saúde pública.
Zeca, o esposo da matriarca, um homem com múltiplas
habilidades. Um valente, com alma de criança. Dotado de uma competência
extraordinária para amansar bois, cavalos, burros bravos... os moradores da
região o procuravam para que ele domasse seus animais de serviço. Ao final da
doma de cada animal, era uma verdadeira festa. Todos os presentes, com aplausos
e gritos, comemoravam mais uma conquista do valente domador. Esse trabalho era
de fundamental importância para o homem do campo. Os animais, depois de domados
e domesticados, eram usados na lida das fazendas. Na ausência de tecnologia no
campo, era com a contribuição deles que se arava a terra para o plantio, moía-se
a cana, a mandioca, se fazia a farinha e seus derivados, conduziam-se as
mercadorias para serem vendidas na feira do sábado. Além disso, com os animais
as crianças iam para a escola, a família ia para a missa aos domingos, enfim,
eram também o meio de locomoção.
Tio Zeca trazia em si o valente homem do
campo, mas ainda carregava uma alma de criança. Uma das mais belas almas que eu
conheci, dotado de um espírito leve, sempre a alegrar aqueles que estavam em
torno dele. Nunca o vi triste. Apesar do árduo trabalho no campo, ao lado de
seu carro de boi, puxado pelos seus dois fiéis escudeiros – Mimoso e Brioso, que tanto contribuíram no sustento
de sua família –, usava seu pouco tempo livre para inventar brincadeiras que
agradassem as crianças. Ainda me lembro dele, numa pequena oficina, a inventar,
com seus arames trançados, quebra-cabeças para a garotada... Ouviam-se, de
longe, suas belas gargalhadas, ao perceber as dificuldades em que se encontrava
a criançada, tentando resolver as armadilhas, em forma de brinquedos por ele
inventados. Não demorava muito, vendo a tristeza da criança, por não conseguir solucionar o enigma proposto, ia
ao seu socorro e lhe ensinava como se libertar daquele labirinto. Era, de fato,
um engenheiro da brincadeira. Todos eram felizes ao seu lado.
Naquela
casa de fazenda não tinha luxo, tudo era muito simples. A única riqueza que excedia
naquele canto era a generosidade de seus moradores. Mas nada faltava. A necessidade
nunca fez visita naquele pequeno pedaço de chão. Sabiam cuidar da natureza. E
esta, em sua generosa retribuição, tonava-se um mercado aberto, atendendo a
todos daquela família. Tudo
o que se precisava estava ao alcance das mãos. Todos
que ali chegavam eram acolhidos na fartura. Bastava a necessidade aparecer, já
se sabia em qual das prateleiras estava aquilo de que se carecia. A carne,
encontrava-se no pasto e, se fosse de porco, encontrava-se no chiqueiro, no
quintal; a galinha, no galinheiro, os ovos, em quantidade, eram colhidos todos
os dias; a farinha, com os seus derivados, a casa de farinha fornecia; batatas, aipim, milho, frutas, legumes, tudo ali
pertinho, bastava ir e colher.
Uma casa completamente desprovida dessas engenhocas
que fazem o mundo funcionar, a partir de uma tomada conectada à parede. O homem
do campo é, acima de tudo, um homem sábio. Ao seu modo, faz a ordem do real
funcionar segundo as suas necessidades. Não é a natureza que o determina. Ele,
como um bom leitor da natureza, a subordina às suas demandas. Sem estabelecer
nenhum conflito, numa relação de parceria, convoca a natureza a lhe servir,
torna-a sua parceira de vida. Poder-se-ia dizer que a energia elétrica não
fazia falta naquele lugar. Adaptava-se à ordem das coisas, à ordem da
necessidade. O ferro, para passar roupa, era movido a brasa. Cheio de brasa,
mantinha-se aquecido. Quando a brasa perdia a sua temperatura, bastava colocar
o ferro na direção do vento, ou então recorrer a um bom assoprador, e lá estava
o ferro na temperatura ideal para dar continuidade ao trabalho; o filtro, era
um grande pote de terracota, que sempre ficava num canto da parede da cozinha.
A água, sempre limpa, quase mineral, depois de devidamente coada, era guardada
no pote, aonde todos recorriam para matar a sua sede; como geladeira não havia,
usava-se a técnica de defumação para preservar as carnes. Sobre o fogão de
lenha colocava-se uma espécie de varal, no qual se dependuravam as carnes e
seus derivados. Não faltavam os embutidos, a carne de boi ou de porco, a
costelinha, o toucinho, as vísceras do boi. Submetidos à temperatura do fogão,
mais a fumaça por ele produzida, as carnes e seus derivados eram preservados
por um bom tempo.
À noite, toda a casa era iluminada por diversos candeeiros,
mais conhecidos como lamparinas. Era um recipiente de alumínio, fechado, com
querosene no seu interior, sendo que na parte superior se encontrava o bico, no qual era introduzido um cordão
grosso, chamado de pavio, mantendo-se parte dele para a parte externa do bico. Colocava-se
fogo na parte do pavio que ficava fora do bico, obtendo-se uma chama de luz que
iluminava a casa, por quanto tempo durasse o querosene. Se a chama se apagasse,
bastava repor o querosene e todo o processo se reiniciava. Quando um morador se
deslocava de um ambiente para outro da casa, bastava pegar um candeeiro acesso
para guiar seus passos. O fogão de lenha, no qual era produzida toda a
alimentação da família, era, de verdade, uma máquina com múltiplas funcionalidades.
Na parte superior, uma chapa de ferro, com várias bocas circulares, acompanhando
os tamanhos das panelas; no canto do fogão, no
seu interior, mantinha-se um pote, isso fazia com que sempre houvesse água quente
à disposição dos moradores; em uma das laterais
do fogão encontrava-se o forno, no qual se preparavam os assados, os deliciosos
bolos, os sequilhos e tantas outras iguarias. Se não bastasse tudo isso,
lembro-me muito bem de que, nas noites frias, depois do jantar, todos se
reuniam em torno do fogão, e ali, quentinhos, ficavam proseando até os olhos
fecharem suas janelas.
As boas memórias da roça sempre vêm acompanhadas das
lembranças afetivas de um fogão de lenha. As palavras de Rubem Braga nos
convidam a compartilhar o fogão de lenha que povoou parte das memórias do
escritor: “O
céu estava enfarruscado. O vento soprava nuvens cinzentas desgrenhadas. Nem lua
nem estrelas. Bem dizia minha mãe que em dia de chuva elas se escondem, por
medo ficar molhadas. A gente se lembrou de Prometeu: Foi ele quem roubou dos
deuses o fogo – por dó dos mortais em noites iguais àquela. Se não fosse por
ele, o fogo não estaria crepitando no fogão de lenha. O fogo fazia toda a
diferença. Lá fora estava frio, escuro e triste. Na cozinha estava quentinho,
vermelho e aconchegante. No fogo fervia a sopa: o cheiro era bom, misturado ao
cheiro da fumaça...”.
Já
do lado de fora da casa, no grande terreiro, na escuridão da noite, tudo era
iluminado pelas estrelas. Estas só se apagavam ao nascer do sol. Sentíamos
alegria por não haver luz elétrica naquele pedaço de mundo. Não existia, em
nenhum outro lugar, um céu mais lindo do que aquele que contemplávamos da
varanda daquela casa de fazenda. Às vezes sentávamos no terreiro, admirando os
astros e tentando identificar a sua ordem no Cosmo. Os mais “sabidos” lançavam
teorias cosmológicas para justificar e dar sentido àquele universo iluminado
que se descortinava todas as noites aos nossos olhos. Mas a maioria, quase
todos, para dizer a verdade, olhavam para os astros guiados pelas lendas, e por
meio das informações que lhes eram transmitidas pelo padre, seja nas missas de
domingo, seja na catequese. O mundo era visto e interpretado sob o olhar da
Bíblia. Nesse livro, encontrávamos respostas para todas as nossas perguntas.
Ele nos bastava. Olhávamos para a beleza do céu, como mais uma generosidade de
Deus para com os homens. Toda aquela beleza já era a presença de Deus. Bastava
olhar com o coração, para ver em cada estrela a presença do Criador. Ficávamos
até com medo de colocar isso em dúvida. O mesmo Deus que nos deu aquela beleza
toda poderia nos tirar do mundo, caso não fôssemos capazes de corresponder, por
intermédio de nossas boas ações, a tamanha bondade e generosidade divina. O
céu, ao mesmo tempo, nos causava alegria e medo. Alegria, pela beleza que ele
nos oferecia; medo, porque sabíamos que lá em cima morava um senhor muito
atento, vigiando nossos passos aqui na terra. Acreditávamos que a qualquer
momento ele poderia se manifestar. Ninguém, de sã consciência, queria errar. Todos tinham medo de Deus. Tinham medo
de suas escatológicas punições. Assim, de modo romântico e obediente, vestido
de crenças e superstições, direcionávamos nosso olhar contemplativo àquele lindo
manto negro, salpicado de pontos luminosos. Naquelas bandas, Copérnico ou
Galileu ainda não tinham passado. A Lua nunca foi um satélite natural da terra,
sequer sabíamos que existiam diversas luas. Não, nada disso, a Lua não passava
da morada de São Jorge. E este, para nos lembrar, mostra-se garboso, montado em
seu cavalo, combatendo a serpente pecadora. A história de que o homem desceu à Lua
não passava de uma grande blasfêmia. Certo estava Deus em punir esses homens
arrogantes que acham que podem passear na casa de São Jorge. Nesses momentos,
não faltava aquele mais carola que imediatamente recorria à Bíblia para buscar
exemplo dessa arrogância, quando Deus se fez presente e pôs um limite na vaidade
humana.
Um
dia, os homens quiseram construir uma torre cujo cume tocasse os céus. Deus,
percebendo a pretensão dos humanos, fez com que cada homem falasse uma língua
diferente, e como eles não mais conseguiram se entender, o projeto foi
abortado. A Torre de Babel fracassou no seu objetivo e os homens se espalharam
pelo mundo, juntados segundo a língua que cada uma falava. Não estava na hora
de Deus voltar a colocar um limite nessa arrogante pretensão do homem de querer
substituí-lo, tornando-se, em lugar do Criador, o Senhor do universo? O céu foi
feito para que os homens contemplassem a presença e a grandiosidade de Deus no
universo, não para que o homem pudesse conquistá-lo ou dominá-lo. Compreendíamos
o mundo por meio das ciências dos sentidos. Só era verdadeiro aquilo que nossos
olhos viam, nossos ouvidos ouviam, nosso tato tocava, nosso olfato cheirava e
nosso paladar identificava o sabor. Foram esses os meios que Deus nos ofereceu
para que, por meio deles, conhecêssemos e déssemos sentido ao mundo. As
estrelas não eram grandes e luminosas esferas de plasmas. Não, eram as luzes
dos olhos de Deus. Sim, Deus tem muitos olhos, iluminando nossas noites
escuras. Se alguém fosse explicar que Alnitak, Alnilan e Mintaka, estrelas bem
alinhadas, fazem parte da constelação de Órion, estava formada a confusão: só
um “lunático” poderia pensar tal sandice. O que nossos olhos contemplavam, de
verdade, eram as três Marias: Maria, mãe de Jesus; Maria Madalena e a terceira,
Maria de Betânia, irmã de Lázaro. Não faltavam os românicos que, acompanhados
de suas amadas, faziam do céu morada de suas fantasias amorosas. Batizavam as
estrelas com os seus nomes. Sim, elas lhes pertenciam, eram deles. Nelas faziam
habitar e eternizar o seu amor. Todas as noites, os enamorados olhavam para o
céu e podiam contemplá-lo, juntinhos, entre as estrelas, derramando o seu amor,
em forma de luz, para todo o Universo. Assim são os amantes, com os pés no chão
são capazes de tocar nas estrelas. Assim era o nosso céu, sem
nenhuma ciência, mas cheio de poesia e de romantismo, como descreve a
letra-canção: “O céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu”.
Naquele grande terreiro, em frente a casa, sombreado
por um bambuzal, que o tempo já levou, brincávamos até o anoitecer, quando o
corpo, já sem forças, implorava para adormecer. Era um terreiro quase sagrado, onde
eram celebradas as festas religiosas e profanas. Nele se encontravam os
vizinhos da fazenda para realizar as comemorações, obedecendo ao calendário
litúrgico da Igreja Católica. Tinha início em janeiro, com a Festa dos Santos
Reis, culminando com a grande Festa do Natal, período em que se armava um belo
presépio, um momento encantador para todos que, em romaria, iam visitá-lo. Nessa
festa, além de se celebrar o nascimento do Filho de Deus, comemorava-se o aniversário
da primogênita da família, o que tornava a festa ainda mais grandiosa. A casa
ficava toda enfeitada com fitas e bandeirolas. A dona da casa caprichava nos
doces, licores, milhos cozidos, amendoins, leitões assados etc. Naquele lugar
todo especial, os corpos bailavam, os devotos, com seus seus ritos sagrados,
faziam suas oferendas às entidades de suas religiões. Naquele chão não tinha
descriminação religiosa, respeitavam-se todas as crenças, todas as tradições.
Era um verdadeiro território ecumênico.
Assim era aquela casa, assim era aquele terreiro...
lembro-me muito bem de que, apesar da simplicidade, todos comentavam sobre a
fartura, sempre presente naquela fazenda. Não importava a quantidade de gente
nas festas, sempre, ao final, o “milagre da multiplicação dos pães” se
realizava, e era servido um banquete em que todos fartamente se alimentavam.
Saindo da casa, à esquerda do terreiro, descendo uma
picada, chegávamos ao curral. Acordávamos cedo, já íamos em sua direção, com um
caneco de alumínio na mão, dentro dele farinha e açúcar, para tomarmos o primeiro
leite produzido pelas vacas. Esse era o nosso primeiro alimento, uma forma de desjejum.
Depois, retornávamos para a casa, onde, numa grande mesa, todos se sentavam para
comer uma deliciosa galinha caipira, acompanhada com aipim, que acabara de ser
colhido da terra, banana cozida, batata, ovo, cuscuz, beiju, tapioca...
Próximo ao curral, encontrava-se a casa de farinha, onde
era produzida parte dos alimentos para a família, e o
excedente era vendido para ajudar no orçamento da casa. Ali chegávamos à noite
e amanhecíamos o dia, raspando mandioca, que, depois de ser triturada pela
máquina – uma engenhoca, feita de madeira e que funcionava por tração humana ou
por um animal –, e de passar pela prensa, transformava-se em diversos
derivados, com os quais se produziam a farinha, deliciosos tipos de beijus,
puba, goma, tapioca... Naquele canto, mulheres, homens e adolescentes – estes,
brincavam mais que ajudavam – sentavam em círculo e, enquanto conversavam ou
cantavam, iam raspando a mandioca. O trabalho era tão lúdico que o cantar do
galo anunciava o amanhecer, mas ninguém percebia que os primeiros raios da
manhã já salpicavam o chão daquela rústica e bela casa de farinha.
Ao lado da casa de farinha, descendo uma ladeirinha, alcançávamos
uma bela barragem. Como éramos felizes nesse canto! Éramos um bando de
crianças, de corpos livres, sem medo dos riscos, lançando-se naquelas águas
turvas. Ali ficávamos repetindo saltos, disputando, um com o outro, quem dava o
mergulho mais profundo, quem saltava do lugar mais alto, quem permanecia mais
tempo debaixo d’água, quem nadava a uma maior distância... Até alguém aparecer
avisando que era chegada a hora do almoço ou do jantar. Então, ainda com os
corpos molhados, tremendo de frio, subíamos a ladeirinha de volta para casa.
Depois do jantar, reuníamo-nos em frente à casa, sentávamos
nos bancos e ficávamos a ouvir “causos” da roça, narrados pelos adultos, que relembravam
casos que lhes foram contados por outros e assim nos transmitiam, com tanta
certeza que parecia ter sido eles próprios, testemunhas oculares da ocorrência
de tais “causos”: de mulheres que se casam com padre, e que foram condenadas,
por toda a eternidade, a vagarem pelas ruas da cidade, depois que as luzes se
apagam, como “mula sem cabeça”; de lobisomem,
o homem que tem uma forma humana e de lobos – conta a lenda que quando a mulher
tem sete filhos, se o oitavo for homem, será um lobisomem, cuja transformação
ocorre sempre à meia-noite; de bicho papão, um monstro que aterroriza as
crianças, principalmente as desobedientes; de pessoas, sempre conhecidas de
alguém, que, depois de terem “batido na mãe”, foram condenadas a viver, por toda a eternidade, pagando
uma pena, acompanhada de muito sofrimento, podendo ser a loucura, uma chaga
qualquer da vida, ou viver no limbo da existência, para expiar o pecado
cometido.
Entre tantas lendas, uma, ensinada na igreja, pelo
padre, e disseminada entre os fiéis, tinha uma natureza explicitamente
política, servindo muito bem para demonstrar como o Estado e a Igreja se uniram,
num determinado momento político do Brasil, para combater um “inimigo” comum:
os comunistas. Espalhava-se a notícia de que, ao entardecer, as mães deveriam
recolher seus filhos, não mais deixá-los sair à rua, porque os comunistas
estavam chegando e, como era de conhecimento de todos, eles tinham o hábito de
comer criancinha. Tal lenda assustava as crianças, que não queriam se
transformar em comida de comunista, e os pais, que não queriam seus filhos
sendo devorados por essa espécie de gente perigosa. Ali ficávamos, ouvindo
aqueles “causos”, trincando os dentes de tanto medo. Ninguém tinha coragem de
sair sozinho, abandonar o grupo e ir dormir. Vai lá saber se algum desses
horripilantes personagens não iria lhe fazer uma visita, durante a noite. Por
segurança, era melhor aguardar que a sessão de medo fosse encerrada e todos, ao
mesmo tempo, guiados pela luz do candeeiro, fossem para o quarto, até porque,
por pura brincadeira, era costume, já na escuridão do quarto, um ficar metendo
medo no outro, indicando que parecia haver algo estranho presente no quarto,
algo muito parecido com os narrados nos “causos”. Assim, já cansados dos
excessos do dia, junto com o pavor das histórias da noite, adormecíamos, desejando
que o amanhecer não demorasse a chegar, para que a felicidade recomeçasse o seu
novo dia.
Quando as férias escolares acabavam, ou mesmo um final
de semana chegava ao fim, uma tristeza abatia-se sobre todos. Queríamos que nunca
fôssemos expulsos daquele Paraíso! Todavia, como bem o sabemos, para suportar as
dores que a vida nos oferece, inventamos que ela será breve, que logo, logo, tudo
passará e voltaremos a ser felizes. Assim,
apesar das lágrimas da partida, bem não saíamos daquele canto de felicidade, já
nos encontrávamos programando nosso retorno. Não demorava muito, e já estávamos
de volta à casa onde éramos felizes de verdade.
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