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O DIA EM QUE LI SERVIDÃO HUMANA - Autor: Joceval A. Bitencourt
junho 28, 2018Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
Tinha eu vinte e poucos anos, acabara de passar no vestibular para filosofia, morava num apartamento, uma verdadeira república de jovens estudantes da Cidade de Riacho de Santana. Era eu, um estranho no ninho. Mas, não posso reclamar, todos foram muito generosos comigo, estava entre amigos. Como estudar, morando num apartamento de dois quartos, com quase dez moradores? Era beliche para todos os lados. Todos jovens, muitas festas, muitos jogos de cartas, que começavam no entardecer da sexta, terminavam no amanhecer da segunda... Era impossível buscar refúgio nos quartos, sempre tinha um casal namorando, território de acesso proibido. Lembro-me bem, aos domingos, todos pegavam a carona de um dos moradores, dono de um Chevette, cada qual pagando o valor de uma viagem de ônibus, que nos conduzia para o restaurante universitário da UFBA, onde almoçávamos. A pobreza nunca anda sozinha, carrega em sua algibeira, dores e sofrimentos. Ainda bem que, com o passar do tempo, nossas tragédias convertem-se em comédias... Mas, como fazer filosofia, se o curso requer um espaço tranquilo, silencioso, para que os conceitos possam tramar seus percursos.
Apesar de pouca idade – nó máximo vinte e dois anos -, minha existência, em todos os sentidos, encontrava-se sob minha inteira responsabilidade. Cursava filosofia pela manhã, à tarde, trabalhava, à noite, tentava dá conta das demandas do curso. O universo foi conspirando ao meu favor. Aluguei um apartamento. Fui morar sozinho. Um quarto e sala, no Largo 2 de Julho, Rua: Areal de Baixo, Ed. Joaquim Barros Varela, apartamento 302. Este canto, encantou-me, assentou-se definitivamente em minha alma. Um canto, todo meu. Não tinha nada, não tinha cama, geladeira, fogão, mesa, não tinha... melhor, dizer que nada tinha, é um certo exagero, tinha uma esteira, uma almofada, que servia como travesseiro, uma mesinha de escritório, desses que se usava para colocar a máquina de escrever – nesse tempo ainda existia -, e uma cadeira, que me fora doada. A ausência de tudo, era, ao mesmo tempo, a presença de tudo que eu precisava naquele momento: um lugar tranquilo para que eu pudesse estudar filosofia.
Todas as vezes que visito à minha memória, em busca de um momento no qual tenha me sentido feliz, encontro-o na primeira noite em que passei nesse canto encantado. Pela primeira vez na vida, eu era senhor de mim e tinha um canto para chamar de meu. Não tinha nada, mas nada me faltava: tinha meus livros e o silêncio. Bastava. Na primeira noite que passei naquele apartamento, sentindo-me sozinho, busquei companhia, encontrei-a: Servidão Humana, de W. Somerst Maugham. Detive-me na leitura dessa obra. Sem perceber, o dia já anunciava a sua chegada, mais de 200 páginas já tinham se passado. Naquele momento, verdadeiramente, fui feliz. Ao amanhecer, uma certeza se fez presente em minha alma: eu gostava dos livros, se me esforçasse muito, quem sabe, não poderia me tornar um estudante de filosofia. Tornei-me.
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