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DESCARTES SEM METAFÍSICA - Autor: Joceval A. Bitencourt

junho 28, 2018Prof. Dr. Joceval Bitrencourt

RESUMO


É certo que na tradição filosófica ocidental, Descartes foi catalogado como o criador de uma nova metafísica, a partir da qual se instaura o mundo moderno. Na árvore do conhecimento, a metafísica, segundo Descartes, se justifica como raiz. O que o presente atrigo pretende demonstrar é que essa é uma posição tardia de Descartes, que este, antes de se preocupar com a metafísica, volta-se para a ciência, para a qual o mundo se apresenta em sua pura extensão, deixando-se traduzir pela Matemática e pela Física, sem nenhuma assistência da metafísica.



                                                         ABSTRATC


In Fact in the Western philosophical tradition, Descartes was cataloged as the creator
of a new metaphysics, from which the modern world is established. In the tree of
knowledge, metaphysics, according to Descartes, is justified as root. This paper intends
to demonstrate that this is  the last  position of Descartes, before  he  worrying about
metaphysics, turns to science, whom which the world is in their sheer length, leaving
translate in mathematics and in physcics, without any assistance of metaphysics.
                  
                 Science        -           Metaphysics        -            Philosophical




“De  tout   cela   il   faut  maintenant   conclure,  non
point   certes   qu’on   ne   doive   étudier   que
l’arithmétique et la géométrie, mais seulement que
ceux qui cherchent le  droit chemin de la vérité ne
doivent s’occuper d’aucun objet à propos duquel
ils ne puissent obtenir une certitude égale   aux
démonstrations   de   l’arithmétique   et   de   la
géométrie”.(Descartes – Règles pour la direction
de l’esprit – Règre II



“Todavia, esses nove anos escoaram-se antes que eu tivesse tomado qualquer partido, com respeitos às dificuldades que costumam ser disputadas entre os doutos, ou começado a procurar os fundamentos de alguma Filosofia mais certa do que a vulgar”[1]. Descartes dá a público estas linhas em 1637, data da publicação do Discurso do Método, mas, refere-se a um período anterior, que corresponde aos anos de 1619-1628. Período em que se deu a tomada de decisão de abandonar os livros e o convívio com os homens cultos para viajar em busca de entender a comédia que se desenrola no grande teatro do mundo. “E, em todos os nove anos seguintes, não fiz outra coisa senão rolar pelo mundo, daqui para ali, procurando ser mais espectador do que ator em todas as comédias que nele se representam”[2]. Entre 1629 e 1633, Descartes escreve o Le Monde ouTraité de lalumière. Nestes anos, desde 1619, toda a preocupação especulativa de Descartes está voltada para as ciências. Seus interesses intelectuais estão direcionados para a matemática, a geometria analítica, a óptica, a física, os fenômenos atmosféricos, a biologia e a fabricação de lunetas. O que interessa a Descartes é compreender e dar conta da ordem do mundo físico, construir um novo sistema do mundo a partir de uma reflexão puramente científica, sem nenhuma especulação metafísica. “As preocupações metafísicas aparecem bastante tarde no pensamento de Descartes”[3]. Desta forma é possível afirmar, que há um bom indício de que a reflexão científica de Descartes é anterior a sua reflexão metafísica. Ele faz ciência, sem, em nenhum momento, buscar os seus fundamentos últimos.  Assim, nesta época, está ausente da reflexão de Descartes qualquer interesse filosófico pelas razões justificadoras da natureza de Deus e da Imortalidade da Alma. Reflexões desse tipo só aparecerão bem mais tarde, mais especificamente, no Discours de laméthode (1637), de forma ainda restrita, e nas Meditationes de Prima Philosophia (1640), de forma madura e plena. É para o período anterior, que pode ser identificado como “Descartes sem metafísica”, que estará voltada a reflexão deste texto.

Nesse enfrentamento entre a pura ordem da razão natural e as leis que regem o universo, sem nenhum embasamento metafísico, encontram-se os fundamentos da ciência cartesiana. Se esta busca, mais tarde, encontrar na metafísica, melhor em Deus, uma base segura e certa para sua sustentação, é assunto paraoutra reflexão, num outro momento. O que interessa neste texto é demonstrar de que forma, no primeiro momento de sua reflexão, Descartes constróisua ciência sem ter que recorrer a Deus para lhe fornecer os seus fundamentos metafísicos[4].     

Entre os séculos XV e XVII, período em que, sem muita precisão, inicia-se o nascimento do mundo moderno e o fim do mundo que o precede, processa-se uma verdadeira revolução na história da humanidade. Muitos são os movimentos transgressores ocorridos nesse período[5]. Talvez não seja de todo despropositado afirmar que perpassa por eles um espírito de reforma: querem emendar, melhorar, aliviar, mas retomando os fundamentos, voltando aos princípios, querem re-formar, re-fazer, re-fundar[6].

Há conquistas que iniciadas no século XIV se estendem até o século XVII. Idéias e atitudes que já anunciam o declínio da Idade Média, que alimentam o espírito humanista e que contribuem para o surgimento de um novo tempo: Dante (1265-1321), Petrarca (1304-1374) e Boccaccio (1313-1375), por exemplo, tornam o uso do “vulgar” tão respeitado quanto o latim e, assim, alargam o alcance de seus escritos. Textos gregos são retraduzidos ou traduzidos pela primeira vez (a totalidade dos Diálogos de Platão, por exemplo); a Reforma luterana marca a divisão do cristianismo ocidental; Copérnico (1473-1543), Galileu (1564-1642) e Kepler (1571-1630) renovam a astronomia. Acrescenta-se amatematização da natureza.

É neste burburinho cultural que se encontra Descartes, trabalhando silenciosamente[7], a ruminar o seu tempo, a buscar saídas para a reconstrução, melhor, a construção de um novo edifício do saber, que possa superar e, ao mesmo tempo, suportar as grandes questões emergidas da grande crise deste período. Caberá a Descartes, de certo modo, o papel de fechar as portas do passado e abrir as do futuro; caberá a ele a tarefa de traçar anova cartografia da razão, aquela que indicará  os caminhos a serem percorridos pela humanidade no final do século XVII.

Em busca de um ponto de partida através do quel possa instaurar as bases de sustentação de uma nova ordem do saber, Descartes colocará sob o tribunal da razão todo saber filosófico que o antecedeu, não reconhecendo, neste, nenhum valor a partir do qual se possa fundamentar o conhecimento certo e verdadeiro sobre qualquer coisa. É preciso começar do zero como se ninguém antes tivesse filosofado. Na Carta-Prefácio dos Princípios da Filosofia, Descartes faz uma avaliação crítica de todas as filosofias, bem como dos filósofos que o antecederam.  O resultado dessa avaliação é terrível e até cruel. Todos sucumbem à sua apreciação crítica: “Ora, desde sempre houve grandes homens que buscaram encontrar [...] as primeiras causas e os verdadeiros Princípios de que se pudessem deduzir as razões de tudo o que somos capazes de saber; e são particularmente aqueles que trabalharam nisso que foram chamados de Filósofos. Todavia, que eu saiba ninguém até o presente teve sucesso nesse intento”[8].  Considerando o pensamento grego e, neste, seus dois maiores representantes, Platão e Aristóteles, Descartes os destitui de qualquer relevância filosófica que possa ser, verdadeiramente, levada a sério, creditando-lhes incertezas e até mesmo certa falta de sinceridade no ato de filosofar: “Os primeiros e principais de que temosos escritos são Platão e Aristóteles, entre os quais não houve outra diferença senão que o primeiro, seguindo as pegadas de seu mestre Sócrates, ingenuamente confessou que nada procurava encontrar de certo, e contentou-se em  escrever coisas que lhe pareceram ser verossimilhantes, imaginando para tal feito alguns Princípios com os quais buscava explicar as outras coisas; ao passo que Aristóteles teve menos franqueza e, se bem que tivesse sido por vinte anos discípulo daquele e não tivesse  outros princípios senão os dele, mudou inteiramente a forma de enunciá-los e os propôs como verdadeiros e seguros, embora não haja nenhum sinal de que os tenha  alguma vez estimado como tais”[9]. Não menos crítico é Descartes ao se referir à escolástica medieval[10]: “... a maioria daqueles  que nestes últimos séculos quiseram ser filósofos seguiram cegamente Aristóteles, de forma que  freqüentemente corromperam o sentido de seus escritos, atribuindo-lhe diversas opiniões que ele não reconheceria  como suas se retornasse a este mundo (...)”[11]. Mesmo aqueles que, segundo Descartes, não seguiram a filosofia de Aristóteles, “dentre os quais estiveram vários dos melhores espíritos”, não obtiveram qualquer êxito no filosofar, pois não puderam se livrar da influência de Aristóteles, “já que [as opiniões deste] são as únicas ensinadas nas escolas”[12]. Portanto, de forma direta ou indireta, todos estão condenados à influência da filosofia de Aristóteles e, como conseqüência, não foram capazes de chegar “ao conhecimento dos verdadeiros princípios (...)”[13]. Depois de ter reconhecido como estéril todo o terreno filosófico que o antecedeu, Descartes anuncia que aquele que nunca filosofou, que não recebeu nenhuma influência da tradição filosófica, é o que está mais bem preparado para conhecer a verdadeira filosofia, ou seja, a nova filosofia que ele pretende anunciar ao mundo. “Donde é necessário concluir que aqueles que menos aprenderam de tudo quanto foi até aqui nomeado Filosofia são os mais capazes de aprender a verdadeira”[14]. Logo em seguida, Descartes apresenta onde se encontra a verdadeira filosofia, os verdadeiros princípios,  através dos quais é possível um conhecimento verdadeiro e certo sobre todas as coisa. “Depois de fazer entender bem essas coisas, gostaria de acrescentar aqui as razões que servem para provar que os verdadeiros Princípios pelos quais se pode chegar ao mais alto grau de sabedoria, no qual consiste o soberano bem da vida humana, são os que pus neste livro”, isto é, Os Princípios da Filosofia[15].

Feita a apreciação crítica de toda a filosofia que o antecedeu, Descartes volta-se para si mesmo, buscando avaliar criticamente o próprio processo de formação intelectual. O resultado da apreciação, tal qual foi o resultado da apreciação da tradição filosófica, não será muito positivo.  Descartes, também aqui, não encontra quase nada que possa ter valor representativo. Depois de reconhecer que foi “nutrido nas letras desde a infância”[16], que teve os melhores mestres de seu tempo[17], que estudou “numa das mais célebres escolas da Europa”[18], Descartes parece  encontrar-se  de posse, não de sólidos  conhecimentos, mas, ao contrário, cheio de dúvidas e incertezas: “me achava enleado em tantas dúvidas e erros, que me parecia não haver obtido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância”[19]. Todo o conhecimento adquirido era disperso, peças soltas que não possibilitavam uma unidade sistemática[20]. Tendo avaliado os conhecimentos oferecidos pela teologia[21], pela filosofia[22], pelas diversas ciências, pelos conhecimentos originários ou derivados da astrologia, da alquimia e mesmo da tradição[23], Descartes reconhece que, à parte a matemática[24], nenhum conhecimento adquirido em todo seu processo de formação constitui base segura e certa para fundar um conhecimento verdadeiro sobre qualquer coisa. Descartes toma então uma atitude drástica; resolve fechar o livro do passado, desconhecer todos os conhecimentos adquiridos e, contando apenas consigo mesmo, lançar-se em uma nova aventura de aprendizagem, na leitura do grande livro do mundo, esperando encontrar neste um conhecimentomais sólido e verdadeiro do que todo aquele que lhe foi ensinado em seus quase dez anos no colégio  laFlèche[25]:  “Foi por isso que, mal a idade me permitiu sair da sujeição dos meus preceptores, deixei completamente o estudo das letras. E resolvendo-me a não procurar mais outra ciência senão a que pudesse descobrir em mim próprio, ou então no grande livro do mundo, empreguei o resto  da minha juventude a viajar, a ver cortes e exércitos, a freqüentar pessoas de diversos humores e condições, a recolher diversas experiências, a experimentar-me a mim próprio nos encontros que a sorte me proporcionava e por toda parte a refletir sobre as coisas que se me apresentassem, de modo que delas pudesse tirar algum proveito”[26].

Entre os anos de 1616 e 1625, Descartes encontra-se cumprindo a promessa de conhecer e entender o grande livro do mundo. Nesse período, serve o exército de Maurício de Nassau; encontra-se com Beeckman; escreve um Compêndio de música; vai à Dinamarca e à Alemanha, se junta ao exército do duque da Baviera. De todas as experiências ao longo desses anos, uma delas tem particular interesse, pois é a partir dela que Descartes toma mais uma decisão importante em sua vida: construir os “mirabilisscientiae fundamenta”.

Trata-se do ocorrido no dia 10 de novembro de 1619 em que, na pequena vila de Ulm na Baviera, Descartes, aos 23 anos, depois de passar todo o dia agitado com seus pensamentos, à noite ao adormecer, tem três sonhos reveladores. Mesmo que a idéia de um método só se concretize, de forma definitiva e acabada, dezoito anos depois, no Discurso do Método, é em 10 de novembro de 1619 que se tem a data de seu nascimento. É a possibilidade da descoberta de um método, através do qual possa dar conta de todo e qualquer saber humano e unificá-lo, que tanto entusiasmou Descartes naquele dia. Poder-se-ia, portanto, com segurança, considerar tal data como o marco zero do racionalismo cartesiano, ponto de partida para estabelecer as regras, certas e seguras, para a nova racionalidade, marco inicial para o nascimento do mundo moderno[27]. Desccartes acaba de encontrar aquilo que buscava: um Método, capaz de dar sustentação às conquista da nova ciência.

“Mas não temerei dizer que penso ter tido muita felicidade de me haver encontrado, desde a juventude, em certos caminhos, que me conduziram a considerações e máximas, de que formei um método, pelo qual me parece que eu tenha meio de aumentar gradualmente meu conhecimento, e de alçá-lo, pouco a pouco, ao mais alto ponto, que a mediocridade do meu espírito e a curta duração da minha vida lhe permite atingir”[28].

A conquista do método[29], bem como o êxito de sua aplicação, acentua em Descartes a certeza de ter encontrado uma base sólida sobre a qual se assentará a nova ciência, o seu progresso e todo saber produzido pelos “homens puramente homens”.  É a razão natural, sem nenhuma assistência especial de Deus, que funda e garante toda a ordem de verdade do método e, como conseqüência, toda a ordem de verdade da ciência. Não sendo o método cartesiano uma técnica de classificação de verdades, afirma-se como o único caminho através do qual se processa a invenção da verdade e da ciência. Portanto, o método não é algo estranho que se encontra fora do próprio ato de produção do conhecimento, como um simples conjunto de regras reguladoras e classificadoras dos conhecimentos já obtidos; ao contrário, a natureza do método cartesiano constitui-se como condição e possibilidade do próprio ato de invenção e produção da verdade. 

O que torna o método cartesiano verdadeiramente revolucionário não é sua superação do método silogístico, considerado tão frágil que sequer pode lhe oferecer resistência, mas sua natureza matemática; sua capacidade de transformar todas as formas de saber e submetê-los a um único tratamento,cuja  natureza é puramente matemática. Isso só é possível, porque, tanto o método quanto o objeto ao qual ele se aplica têm a mesma natureza, ou seja, uma natureza matemática. A implicação matemática, tanto por parte do sujeito que conhece, como do objeto a ser conhecido, impõe um princípio único que irá regular todo o conhecimento humano. Mais ainda: impõe uma subordinação completa do objeto conhecido ao espírito que conhece.  Segundo Descartes, a sabedoria humana é única, não muda, não se altera; encontra-se, toda ela, subordinada à estrutura normativa do método, obedecendo à regularidade das leis matemáticas.  A natureza, por sua vez, obedece às mesmas leis. Portanto, todos os saberes, quando submetidos rigorosamente ao método, são iluminados pelo mesmo espírito. Todas as ciências não são nada mais do que a produção do espírito humano: “Como todas as ciências nada mais são senão a sabedoria humana, que sempre permanece uma e a mesma, seja qual for a diferença dos assuntos aos quais é aplicada, e que não lhe confere mais distinções (...) do que a luz do sol oferece à variedade das coisas que ilumina”[30].  A unidade do espírito, a qual implica na unidade da natureza, além de abandonar a diversidade metodológica do saber antigo, que, para cada objeto a ser conhecido, estabelecia uma ciência correspondente[31], aproxima Descartes da ciência da natureza de seu tempo. De fato, a idéia de que tanto o espírito quando a natureza tem a mesma linguagem, estão “escritos” em linguagem matemática, encontra-se presente, tanto em Copérnico como em Galileu[32], para quem: “A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos [isto é, o universo], que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em linguagem matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem elas nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto”[33]. Tanto para Descartes como para Galileu, já não existe nenhuma diferença entre as verdades da matemática e as verdades do mundo da natureza, ambos têm uma e a mesma estrutura, pois estão “escritos” em linguagem geométrica. Entretanto, entre Galileu e Descartes, mesmo tendo em contatal concordância, há uma grande diferença quanto ao centro gravitacional a determinar a ordem do saber: “enquanto Galileu fundamenta a unidade do método mecanicista na unidade de natureza da própria matéria (...), Descartes assenta  antes de mais nada a unidade do seu método na identidade do próprio espírito humano que, sendo sempre o mesmo, deve sempre raciocinar da mesma maneira”[34]. 

Tal diferença deriva certamente da diversidade de projeto e de perspectiva dos dois pensadores. Galileu não pretende construir um sistema totalizante como o que Descartes almeja[35]. Descartes unifica ciência e filosofia num único e mesmo saber, dotado de autonomia e independência racional[36]. Embora este último traço seja comum a ambos, a partir de Descartes,o homem torna-se o centro gravitacional em torno do qual gravita toda a ordem do saber. O método cartesiano afirma e confirma o homem, o sujeito, no silêncio mais profundo da sua singularidade, sem nenhuma assitência fora da ordem da razão, como o ser através do qual toda ordem do saber adquire o estatuto de verdade[37]. Assim sendo, a autonomia da razão é suficiente para dar conta da natureza; esta encontra-se subordinada ao sujeito pensante, ou, em termo cartesiano, ao cogito que determina toda  sua ordem de verdade. Donde, ter a verdade um estatuto puramente humano. Descartes ainda não precisa de Deus para garantir e fundamentar o estatuto da verdade, pois o  método, despido de qualquer metafísica, basta-lhe, é suficiente nesta empreitada.

A matematização da natureza, bem como a sua subordinação a uma ordem puramente racional, impõe, de forma definitiva, um limite entre o mundo antigo, que já sem forças para se representar e se afirmar, silencia e vê sua cosmologia desmoronar como um castelo de areia que se esvai à chegada da primeira onda, e o mundo novo, que de forma demolidora afirma-se, no vigor de sua juventude, como a nova referência paradigmática do pensamento humano.

Romper com a visão do mundo antigo, seja ela grega ou medieval, torna-se a obsessão de Descartes. Toda sua filosofia apresenta-se com um objetivo bastante claro: substituir a concepção de mundo derivada da física aristotélica, bem como a concepção de mundo divinamente orientada dos teólogos. Desse mundo, bem como das suas formas de interpretações, sobra muito pouco, ou não sobra nada: em oposição à teologia que se afirma como a senhora das ciências, Descartes apresenta a filosofia como único meio seguro e certo paraa obtenção do conhecimento verdadeiro. Se não bastasse esta perspectiva, que, por si só, é revolucionária, pois altera completamente o ponto referencial anterior, a partir do qual o mundo passa a ser interpretado, Descartes também irá romper com a idéia de um saber derivado – no qual o homem tem um papel secundário, cabendo-lhe observar e descrever a verdade, cujo fundamento o antecede – e apresentar, em substituição a essa idéia, a sua grande tomada de decisão: “não mais procurar outra ciência, além daquela que se poderia achar em mim próprio (...)”[38]. Contando consigo mesmo, Descartes vai fundamentar a nova ordem do saber.  Pela primeira vez no pensamento ocidental a verdade tem sua origem no sujeito[39]. O homem passa a ser o construtor, o forjador da verdade. Mas Descartes ainda não está satisfeito com só negar as formas de ver e deinterpretar o mundo, o que  quer, e é isso que  irá fazer, é destruir  toda a armadura gnosiológica  sustentada e justificada pela ordem do cosmo helênico e medieval. Não é mais possível reformar ou salvar o velho cosmo, ele encontra-se perdido e, como tal, deve ser abandonado, deixado de lado: “Quanto ao Cosmo, o Cosmo helênico, o Cosmo de Aristóteles e da Idade Média, esse Cosmo já abalado pela ciência moderna, por Copérnico, Galileu e Kepler, Descartes destrói-o inteiramente”[40]. Em substituição a esse velho cosmo, Descartesapresenta um mundo, infinito (indefinido), aberto, em que a matéria é nada mais que matéria, desprovida de qualquer finalidade, desprovida de alma, dotada de uma natureza  mecânica e que se deixa traduzir em uma linguagem puramente matemática[41]. Se Copérnico e Galileu já anunciavam a natureza deste novo mundo, é Descartes quem, apoiando-se nos ombros desses dois gigantes, assume a responsabilidade de fundamentar, justificar e legitimar a estrutura gnosiológica do mundo moderno.

Em 22 de julho de 1633, Descartes anuncia, em carta dirigida ao padre Mersenne (1588 – 1648)[42], que o seu tratado Le Monde[43]  encontra-se quase concluído: “O meu tratado se acha quase terminado faltando-me ainda corrigi-lo e copiá-lo. E temo tanto tal trabalho  que, se não tivesse prometido, há mais de três anos vo-lo remeter ao fim deste ano, não creio que pudesse dispor de tempo para seu remate. Mas vou me esforçar por cumprir a minha promessa, pedindo-vos, enquanto isso, que me queirais bem”[44]. A intenção de Descartes, com Le Monde, é anunciar a todos a invenção de um novo mundo, que se apresenta em substituição ao velho cosmo dos helênicos e dos medievais.  Neste tratado Descartes “explica a formação do Sol, das estrelas, da Terra, da Lua, pela teoria dos turbilhões, e professa o heliocentrismo: a Terra gira em torno do Sol”[45]. Assume, não só o heliocentrismo de Copérnico e Galileu, mas também uma interpretação puramente mecanicista da natureza da matéria.

Esse novo mundo é simples ou, pelo menos, bem menos complexo que o antigo. É um mundo quantitativo, infinito, isto é, indefinido[46], composto só
de matéria (extensão) e movimento; trata-se da natureza, que não deve ser entendida como “quelqueDéesse, ou quelqueautre sorte de puissanceimaginaire[47]”, que se revela em sua ordem estritamente mecânica e se deixa traduzir em uma linguagem puramente matemática.

Assim, recorrendo à geometria, como ciência da extensão, e à física, como ciência do movimento, subordinando esta àquela, Descartes constrói uma ciência físico-geométrica, dotada de um conjunto de leis fáceis, de conceitos claros, sem recorrer a forças ocultas e obscuras, tão presentes na física qualitativa de Aristóteles e dos escolásticos[48]. Detendo-se numa natureza que é, em sua totalidade, extensão e movimento, Descartes garante que, através da física, é possível ao homem “descobrir as mais belas coisas da natureza”:“C’estce que jesouhaiterais que tout le monde voulûtfaire, pourêtreaidé par l’expérince de plusieurs à découvrirlesplusbelleschoses de lanature, et bâtir une Physiqueclaire, certaine, démontrée, et plusutile que cellequis’enseigne d’ordinaire”[49].

A física-geométrica de Descartes só é possível porque foi capaz de estabelecer a distinção entre matéria e espírito, corpo e alma, fixando a total independência entre essas representações conceituais. Tornada a extensão, o atributo principal da matéria, e o pensamento, o atributo principal do espírito, rompe, portanto, definitivamente, com a união existente entre o corpo e a alma, presentes na física de Aristóteles e de seus seguidores escolásticos. Para Aristóteles, todo corpo vivo é dotado de uma alma e seria absurdo pensar um sem, concomitantemente, pensar o outro, pois são faces da mesma moeda. Portanto, existe uma implicação necessária entre o corpo e a alma, um não existindo sem o outro. Erram, segundo Aristóteles, os filósofos que, ao estudarem a natureza das coisas dotadas de vida, tomam a alma como separada do corpo[50].

De acordo com Descartes, essa teoria física de Aristótelse atrapalha muito mais do que ajuda a conhecer a verdadeira natureza das coisas. Não é possível, enquanto a natureza estiver dotada dessas qualidades misteriosas, dessas misturas substanciais, conhecer verdadeiramente a natureza das coisas. É preciso separar o que realmente faz parte da natureza da matéria daquilo que a ela é acrescentado pela imaginação, caso contrário estar-se-á sempre condenado à obscuridade e aos mistérios que habitam, por culpa do homem, a ordem da matéria. Quando isso não é feito com rigor e precisão, acaba-se olhando não para a matéria em si mesma, mas parasuas qualidades misteriosas e confusas,  que seduzem e enganam  os sentidos e, em conseqüência, comprometem  a capacidade de apreender e interpretar a natureza das coisas. Essa será a primeira função da ciência cartesiana: expulsar da matéria tais qualidades obscuras. Combater o hilemorfismo da física aristotélica e escolástica, que, a partir dos princípios complementares de matéria e forma, determina as condições de ser de cada coisa. Superar o hilemorfismo da física antiga e medieval pressupõe expulsar da matéria todas as qualidades estranhas à sua natureza, identificar a matéria como simplesmente matéria; tomá-la pelo seu atributo principal, a extensão, e subordiná-la às leis de uma física quantitativa, de uma física-geométrica. Quando o pensamento é guiado por essa física quantitativa, o que importa não é mais a matéria em si, mas sua representação conceitual, sua essência que se expressa através do seu atibuto principal: a extensão.  Assim, o domínio da natureza e a construção de uma ordem do mundo processam-se a partir desta física-geométrica, derivada da matemática, que se encontra e é determinada pelo sujeito pensante e não mais pelas coisas em si mesmas, em sua autonomia. As coisas materiais em si mesmas têm pouca importância. Acentua-se a importância das representações conceituais que o sujeito impõe às coisas e que não provêm das coisas em si mesmas. O pensamento afirma-se sobre a matéria e a determina. A subordinação da matéria à ordem do pensamento acaba por efetivar, de uma vez por todas, na ciência e no mundo moderno, a preponderância do atributo da alma (pensamento), sobre o atributo do corpo (extensão).

Descartes tem plena consciência, que a física, dotada de leis fáceis e claras, substitui com êxito a velha física sensualista de Aristóteles. Não só; tal é a sua intenção, que só a física é capaz de dar conta da ordem do mundo, só ela é capaz de, ao mesmo tempo, dar conta da inteligibilidade do real e submetê-lo a uma ordem puramente racional. A ciência matemática abre caminho para que Descartes possa tomar a máquina como referência paradigmática do mundo e interpretá-lo em perspectiva puramente mecanicista. O cosmo já não é um espaço escolhido por Deus para revelar ao homem “sua natureza invisível, seu poder eterno e divino”, como proclamava São Paulo aos romanos (Rm. 1,20), mas é simplesmente a máquina da qual, o homem, de posse das ferramentas conceituais oferecidas pela matemática, pode conhecer osmistérios, revelar os  segredos, decifrar a ordem mecânica, saber como cada peça  encaixa-se e  justifica-se na ordem da  grande máquina do mundo. Ante esta máquina do mundo, o homem deixa de ser um admirador encantado com sua beleza e sua ordem, para torna-se decifrador e senhor. O Deus artesão ou mesmo o Deus geômetra são substituídos pelo Deus engenheiro, construtor de máquinas, o arquiteto do mundo, relojoeiro, exterior ao mecanismo que ele constrói e põe em marcha. O homem perdeu o medo de Deus, não o teme, enfrenta-o, e até põe-se em seu lugar, torna-se, ele próprio, um engenheiro que, para compreender, reconstrói as engrenagens da máquina do universo. Depois de ter dado o piparote inicial para por o mundo em movimento, Deus pode retirar-se, não tem mais nenhuma serventia para o homem de ciência[51]. Perdendo o domínio do mundo da razão, resta-lhe, em seu silêncio, comunicar-se com o homem através da fé, pela qual este adere às verdades que Deus lhe revela. Sendo a matemática o domínio típico da razão humana, resta a Deus apenas um caminho, que não o da ciência, para se comunicar com o homem: o coração. “É o coração que sente Deus, e não a razão. Eis o que é a fé: Deus sensível ao coração, não à razão”[52]. Mas, para Descartes e os mecanicistas, o coração não passa de uma peça de determinada máquina, como outra peça qualquer. A fisiologia cartesiana não reserva para o coração nenhum estatuto privilegiado, sede de intuições ou sentimentos, através dos quais Deus se comunica e se revela ao homem. Não há nenhuma distinção entre o coração, os pulmões, rins ou intestinos, a não ser a função que, como peças, cada um desempenha na fisiologia da máquina-corpo. A matematização da matéria acabou por expulsar Deus da ordem das coisas e, como conseqüência, acabou por estabelecer uma completa distinção entre ciência e fé: estabelece e distingue dois planos de conhecimentos independentes. A ciência cartesiana toma como seu objeto o mundo, a matéria, no limite da física-geométrica, enquanto a fé tem como objeto Deus e a imortalidade da alma. Este é também o domínio da metafísica, mas Descartes, no momento, ainda não precisa recorrer a ela para fundar, justificar e legitimar a ciência, a não ser para, como dizia Pascal, dar o peteleco inicial.  Assim, sem metafísica, Descartes faz ciência, sendo o objeto desta a natureza e as regras de decifração de seus códigos, fornecidas unicamente pela razão natural.

A idéia de que o mundo é uma máquina e que, de posse das leis matemáticas, é possível ao homem conhecer e dominar a ordem de suas engrenagens tornou-se um pano de fundo comum. Todos voltam-se para a nova ciência: Galileu, Gassendi, Mersenne, e outros[53]. Todos estão seduzidos pela nova possibilidade de, tornando-se independentes das forças estranhas à razão, conquistar e torna-se senhor deste novo mundo: “Tudo se passa como se nos encontrássemos perante uma crise do inconsciente coletivo: subtamente, o homem ocidental deixou de tomarperante a Natureza a atitude  da criança que escuta; virilizou-se e quer tornar-se ‘o dono e senhor’”[54]. Entretanto, entre todos, Descartes se destaca. Em Descartes o mecanicismo encontra sua forma acabada e madura. Só ele é, ao mesmo tempo, cientista e fílósofo. Só ele foi capaz de, ao expulsar definitivamente da matéria tudo o que não é matéria, todas as qualidades ou finalidades[55], reduzindo-a a pura extensão,conciliar o mundo da ciência (da experiência) com o  mundo da razão (filosofia), estabelecendo entre os dois mundos, uma só ordem, uma só determinação  geométrica[56].

Assim, tomando como referência a máquina, Descartes explica todas as operações da natureza e todos os corpos que a compõem. Sejam estes animados ou inanimados; sejam corpos celestes, ou terrestres; seja o mundo ou a fisiologia do corpo humano; sejam micro ou macro-organismos, tudo é extensão e movimento. Seu funcionamento corresponde, metaforicamente, ao funcionamento de um relógio, modelo perfeito de máquina, que, como tal, pode ser conhecido e manipulado através da técnica em todas as suas partes constitutivas. Tudo que é necessário para se conhecer a engrenagem de certamáquina, nela encontra-se, seja a máquina um relógio, uma árvore ou o corpo humano. Conhecer passa a ser então, compreender o funcionamento desta máquina. A fascinação de Descartes pela máquina é total: absolutamente tudo pode tornar-se conhecido, se seguir-se o modelo de funcionamento das máquinas. O modelo seguido pelo grande relojoeiro do universo, para dispor a ordem da máquina, é semelhante ao do engenheiro que, através da técnica constrói e põe em funcionamento um relógio ou as fontes que estão nos jardins dos reis: “Ainsi que vouspouvezavoir vu, danslesgrottesetlesfontainesquisontaux jardins de nos Rois, que laseule force  dontl’eau se meut, ensortant de sasource, est suffisantepour y mouvoirdiversesmachines, et mêmepourles y fairejouer de quelquesinstruments, ou prononcerquelques paroles, selonladiversedispositiondestuyauxquilaconduisent”[57].

É a mesma a ordem encontrada na máquina, como nos mencionados autômatos hidráulicos dos jardins dos reis e na fisiologia do corpo humano. Ao expulsar deste tudo que não é matéria, Descartes prepara o terreno para compreendê-lo como pura matéria, pura extensão, como uma máquina que funciona obedecendo às mesmas leis que obedece um planeta no percurso de sua órbita, um relógio ao marcar as horas ou uma árvore ao produzir frutos. Não há distinção entre o funcionamento das máquinas do mundo, todas elas obedecem às mesmas leis e têm uma e mesma natureza. O que as diferencia é unicamente a disposição de “certos tubos ou molas”, que constituem cada uma dessas máquinas.

Assim, explica-se tudo na natureza como um todo e na fisiologia do corpo humano em particular. Nada de almas vegetativas ou sensitivas, nada de operações ocultas, nada de causas finais; tudo se revela e torna-se claro nos limites da matéria - extensão e movimento - com a mesma simplicidade que se revela e explica-se na mecânica do funcionamento de um relógio.

A analogia entre o funcionamento do corpo humano e o funcionamento do relógio é bastante ilustrativa e merece atenção particular. O corpo-máquina é como um relógio em funcionamento. Os ossos, nervos, coração, pele, sangue, não são outra coisa senão molas, rodas, contrapesos que, obedecendo a ordem lógica de encadeamento, desempenhando no particular a função que lhes é determinada na ordem do todo, fazem com que a máquina-corpo desempenhe, sem ajuda de qualquer alma ou espírito, tal qual um relógio, sua função[58]. As mesmas leis que regem o universo como um todo, regem o corpo humano em particular. O mundo-máquina e o homem-máquina são uma e a mesma coisa, ambos integram-se na ordem de funcionamento da grande máquina universal.

Eis, ao fim e ao cabo, o que a ciência de Descartes pretende alcançar: dominar a natureza; tornar o homem seu senhor e possuidor. Submeter toda a ordem da natureza à ordem da pura racionalidade mecânica. A matéria é extensão e, como tal, abre-se ao cálculo do espírito que a traduz em linguagem puramente matemática. Se a matémática torna-se a gramática do mundo, o método torna-se o caminho correto de sua aplicabilidade. Um binômio perfeito: matemática e método. Dupla inseparável na ordem da razão, que deseja e busca afirmar-se como a verdadeira ciência. De posse desses dois conceitos - a matemática e o método -Descartes pretente conquistar o mundo, constituído de acordo com as leis geométricas da mecânica. A alma do mundo, transforma-se em espírito, no sentido cartesiano, “que volta as costas ao mundo, dobra-se sobre si e encontra no interior de si mesmo o abrigo seguro onde fixa  sua morada”[59]. Instalado no “conforto” dessa nova morada, Descartes encontra-se diante de um novo céu e uma nova terra: a grande máquina do mundo subordinada às leis da razão geométrica, sem natureza distinta dos artefatos, sem alma, exterior a Deus, desprovido de qualquer matéria estranha à extensão geométrica, subordinado unicamente às regras do método que expressam, não mais alinguagem da fé, através da qual a verdade sobrenatural revela-se ao homem, nem a linguagem da metafísica, mas a linguagem do cálculo, da matemática, expressão da própria razão. O mundo tornou-se conteúdo do espírito, do pensamento[60]. Antes de Kant[61], do seu modo, Descartes também fez sua revolução copernicana[62]; mudou o centro gravitacional do conhecimento. A partir de Descartes, o sujeito, na autonomia da razão natural, desprovido de qualquer metafísica, torna-se o centro gravitacional, em torno do qual o mundo adquire sentido e significado.
                  


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[1] DESCARTES, R. Discurso do Método, Obra Escolhida, p. 65
[2] Idem,  p. 64-65.
[3] KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 57.
[4] “No início da sua indagação, Descartes não parece ter se preocupado muito em encontrar fundamentos filosóficos para o seu método e a sua ciência. (...) Por outras palavras, Descartes principiou por abraçar o mecanicismo como puro cientista e sem se interrogar  acerca da sua relação com a metafísica”. ALQUIÉ, F. Galileu, Descartes e o mecanicismo, p. 31.
[5] “(...) pelo menos no que toca  à filosofia da natureza, o historiador é levado a sentir que, na parte final do século dezesseis, um consenso  essencialmente aristotélico  se dissolveu para ser substituído, não por uma, mas por uma multiplicidade de escolas: atomistas, cartesianos, hermetistas e paracélsicos, helmontianos, matemáticos platônicos e pitagóricos, ecléticos e individualistas de muitos tipos”. HALL, A. R. A Revolução na Ciência 1500 -1750, p. 247.
[6] Cf. MOUTAUX, J. Introdução, In: A Utopia – um convite à filosofia, p. 15.
[7] Até 1637, ano da publicação do Discurso do Método, nada da filosofia de Descartes tinha vindo a público; encontrava-se trabalhando em silêncio, comunicando os resultados das suas pesquisas unicamente a uns poucos amigos com os quais se correspondia.
[8] DESCARTES, R. Carta-prefácio..., p. 9, (grifo nosso).
[9] Idem, p. 9-10.
[10] “Às portas do século XIII, um fato novo se produz na história das escolas: a emergência de uma instituição – a Universidade – na qual mestres eclesiásticos especialistas da cultura se associam para formar um corpo profissional segundo o modelo das corporações de ofício. Consagrado pelo papa, esse corpo é englobado pela Igreja a título de instituição autônoma que, subtraída à jurisdição dos bispos e dos senhores, está submetida unicamente ao poder pontifício e a seu controle doutrinário. Essa nova instituição desenvolve-se de início em Paris e em Oxford (o studium de Bolonha é um caso à parte) e não é separável da emergência da cultura – fortemente organizada e privilegiada de maneira exclusiva – que chamamos ‘escolástica’”. GOFF, J. le.; SCHMITTA, J.-C. Dicionário – temático e técnico – Medieval. v. I, verbete: escolástica, p. 367.
[11] DESCARTES, R. Carta-Prefácio..., p. 12.
[12] Idem, ibidem.
[13] Idem, ibidem.
[14] Idem, p. 14.
[15] Idem, ibidem, (grifo nosso).
[16] DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 43.
[17] “El nombredelprofesor de filosofía de Descartes fué encontrado por el P. Rochemonteixconayuda de la  fecha para losestudios de Filosofía de Descartes (1609 – 1612), proporcionada  por Baillet, y una lista de todos os profesores de La Flèche, que se conserva enlosarchivos de Gesùen Roma. Este profesor era el P. Francisco Véron. Antes sólo se conocía, por una carta de Descartes, elnombre de supasante, el P. Nöel”. HAMELIN, O. El Sistema de Descartes, p. 24.
[18] DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 43. Descartes tinha uma profunda admiração, não só pelo colégio de laFlèche, bem como por  seus antigos mestres. Em uma carta, de 12 de setembro de 1638, respondendo à consulta de um amigo sobre a escolha de um bom colégio para os estudos filosóficos de seu filho, diz Descartes: “Or encore que monopinion ne soitpas que toutesleschosequ’onenseigneenphilosophiesoientaussivraies que l’Évangile, toutefois,  à cause qu’elle est laclefdesautressciences, jecroisqu’il est trèsutile d’enavoirétudiélecoursentier, enlafaçonqu’ils’enseignedanslesécolesdesJésuites, avant qu’onentreprenne d’éleversonespritau-dessus de lapédanterie, pour se fairesavant de labonne sorte. Et  je dois rendrecethonneur à mesmaitres, que de direqu’il n’y a lieuau monde, oùjejugequ’elles’enseignemieuxqu’àlaFlèche”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 89-90; AT., II, p. 377-378. “De 1604 à 1612, il est élèveaucollège de laFlèche, fondé par Henri IV et dirigé par lesJésuites. Il y reçu, danslestroisdernièresannées, unenseignement de laphilosophie, consistantenexposés, résumés ou commentairesdesoeuvres d’Aristote: l’Organondansla première année, les livres physiquesdanslaseconde,  laMétaphysique et leDe animadanslatroisième; enseignementqui, selonlatradition, étaitdestiné à préparer à lathéologie. Danslasecondeannée, ilétudieenoutrelesmathématiques et l’algèbredansletraitérécentdu P. Clavius. En 1616, il passe à Poitierssesexamensjuridiques”. BRÉHIER, E. Histoire de laphilosophie, v. II, p. 46.  Sobre a exatidão das datas que correspondem aos estudos de Descartes no colégio de La Flèche, existe discordância entre seus intérpretes. Parece bastante confiável a datação feita por GenevièveRodis-Lewis: “René Descartes entrou para o colégio de laFlèche na Páscoa de 1607 e saiu dali em setembro de 1615. Às vezes ainda se discutem essas datas, embora tenham sido finalmente abandonadas as de Baillet, que para lá o enviara pouco depois do irmão mais velho, Pierre, já em 1604, ano da abertura do colégio, onde os dois teriam permanecido até 1612”. Descartes – uma biografia, p. 25.
[19] DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 43.
[20] “O ensino recebido por Descartes foi um ensino sem unidade, porque a cultura do século XVII, que então começava, era uma cultura sem unidade”. ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 17.
[21] “Eu reverenciava a nossa Teologia e pretendia, como qualquer outro, ganhar o céu; mas, tendo aprendido, como coisa muito segura, que o seu caminho não está menos aberto aos mais ignorantes do que aos mais doutos e que as verdades reveladas que para lá conduzem estão acima da nossa inteligência, não ousaria submetê-las à fraqueza de meu raciocínio, e pensava que, para empreender o seu exame e lograr êxito, era necessário ter alguma assistência do céu e ser mais do que homem”. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 46, (grifo nosso).
[22] “Da filosofia nada direi, senão que, vendo que foi cultivada pelos mais excelsos espíritos que viveram desde muitos séculos e que, no entanto, nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a qual não se disputa, e por conseguinte que não seja duvidosa, eu não alimentava qualquer  presunção de acertar melhor do que os outros; e que, considerando quantas opiniões  diversas, sustentadas por homens doutos, pode haver sobre  uma e mesma  matéria sem que jamais possa existir mais de uma que seja verdadeira, reputava quase como falso tudo quanto era somente verossímil”. Idem, ibidem.
[23] “Depois, quanto às ciências, na medida em que tomam seus princípios da filosofia, julgava que nada de sólido se podia construir sobre fundamentos tão pouco firmes. E nem a honra, nem o ganho que elas prometem, eram suficientes para me incitar a aprendê-las; pois não me sentia, de modo algum, graças a Deus, numa condição que me obrigasse a converter a ciência num mister, para alívio de minha fortuna; e conquanto não fizesse profissão de desprezar a glória como um cínico, fazia, entretanto, muito pouca questão daquela que eu só podia esperar adquirir com falso título. E enfim, quanto às más doutrinas, pensava já conhecer bastante o que valiam, para não mais estar exposto a ser enganado, nem pelas promessas de um alquimista, nem pela predição de um astrólogo, nem pelas imposturas de um mágico, nem pelos artifícios ou jactâncias de qualquer dos que fazem profissão de saber mais do que sabem”. Idem, ibidem.
[24] “Comprazia-me sobretudo com as Matemáticas, por causa da certeza e da evidência de suas razões; mas não notava ainda seu verdadeiro emprego, e, pensando que serviam apenas às artes mecânicas, espantava-me de que, sendo seus fundamentos tão firmes e tão sólidos, não se tivesse edificado sobre eles nada de mais elevado”. Idem, p. 45.
[25] “Descartes deixa o colégio em 1614. Em 1616 faz em Poitiers o seu bacharelado e a sua licenciatura em direito. Em 1618 alista-se nos Países Baixos no exército de Maurício de Nassau”. ALQUIÉ, F. A Filosofia de Descartes, p. 18.
[26] DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 47.
[27] “Nuldoutequ’avantlanuitdu 10 novembre 1619, Descartes ne préférat de lui-même, danslarecherche de laveritéscientifique, l’élanspontané de sonimagination et de sonintelligence à  l’enseignement de l’Ecole; mais désormaiscesidéesrévolutionnaires, subversives, enapparenceaumoins, et oùrisquait d’entrerl’orgueil – oùpeut-êtreilpouvaitvoirlemauvaisespritlepoussantvers  ‘leTemple’, - cesidées n’étaient-ellespasconsacrées par Dieumême? N’était-cepascomme si Descartes eûtentenduceconseildivin: ‘Va, l’ensemble de touteslessciences tu dois l’édifier par toi-même; imite en cela lespoètes, fie-toicommeeux à toninspiration; laisse de côté l’enseignementdes livres; les germes de sciencequisontentoi se développerontspontanément et tu doterasl’humanité de lascienceuniverselle?’ Si notrehypothèse se tient, si elle est acceptable, nouscomprendronsdumoins que prenant note de cette date, Descartes aitpurappeler que cejour-làiltrouvait, à traverslesvisions de son ‘enthousiasme’, lesfondements de lavéritablescience, de cellequiméritenotreadmiration”.   MILHAUD, G. Descartes savant, p. 58.
[28] Idem, p. 42.
[29] A idéia de um método, através do qual, a razão possa orientar-se na busca do conhecimento da verdade, não é originária em Descartes. Bem antes dele esta idéia já era objeto de reflexão e de exposições mais ou menos elaboradas. Não é necessário remontar ao Organon de Aristóteles ou à lógica estóica e à lógica medieval, que tem em Guilherme de Ockham um representante qualificado. Durante o Renascimento, a idéia dissemina-se de forma quase generalizada, encontrando-se métodos para todos os gostos. São muitos os que apresentam regras do método, através do qual se possa conhecer a verdade: Cornélio de Agripa, Luís Vives, Melchior Cano, Jacó Acôncio, Leonardo da Vinci, Galileu, Bacon, Campanella, etc
[30] DESCARTES, R. Regras para a orientação..., reg. I, p. 2.
[31] “Todas as ciências e artes possuem os seus próprios princípios e as suas próprias causas através dos quais revelam as propriedades especiais do seu próprio objecto. Nessa medida, não nos é permitido utilizar os princípios de uma ciência para comprovar as propriedades de uma outra. Assim, quem quer que pense ser possível provar as propriedades naturais com argumentos matemáticos é simplesmente louco”. Apud. Considerazoni... da accademico Incógnito (Pisa 1612) In: Galileu, IV, p. 358, COTTINGHAM, J.  A Filosofia de Descartes, p. 42.
[32] “O que é novo é que o projeto de Copérnico e de Galileu não utiliza mais a linguagem cotidiana para elaborar essa razão, mas toma a linguagem matemática como modelo. Trata-se, pois, de produzir uma linguagem que seja tão próxima quanto possível da inteligibilidade, da exatidão e do rigor da linguagem matemática”. CHÂTELET, F. Uma história da razão,  p. 66.
[33] GALILEU, G. O Ensaiador,  p. 21.
[34] ALQUIÉ, F. A Filosofia de Descartes, p. 25.
[35] “Convém (...) ter claro que Galileu não reinvindica qualquer inovação no método da ciência, ou antes, nunca reinvindica anterioridade ou precedência em questões metodológicas. As questões de precedência em que Galileu se envolveu são todas propriamente científicas: ou observacionais ou de conteúdo conceitual de teses teóricas que envolvem a análise matemática da experiência, como, por exemplo, a determinação da trajetória parabólica dos projéteis. Nesse sentido, Galileu não pretende reformar organon, como o fez Bacon, nem dar ao método um domínio próprio e um tratamento sistemático, propondo-o como propedêutica ao conhecimento científico, como o fará Descartes. O que Galileu faz é reinvindicar a suficiência do método científico para decidir acerca das questões naturais, para as quais se pode usar  a experiência, o discurso e o intelecto, em suma, para as quais se pode empregar a razão natural”. MARICONDA, P. R.Introdução, In: GALILEU, G.Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano, p. 30.
[36]“(...) ninguém [antes de Descartes] foi capaz de combinar, ao mesmo tempo, ciência e filosofia de maneira integral. Galileu, por exemplo, foi um filósofo natural da mais alta qualidade, mas se não fosse isto não lhe teria cabido qualquer lugar na história da filosofia geral. (...) Sabe-se que Galileu evitava a metafísica tanto quanto lhe era possível e duvidava de todos os sistemas universais de pensamento. Preocupavam-no principalmente – mesmo em defesa do universo copernicista – as questões científicas e a discussão de problemas específicos. Não construiu uma filosofia da ciência metódica, embora os elementos de tal filosofia possam ser extraídos das suas obras”. HALL, A. R.Op. Cit.,  p. 248-249.
[37] “A filosofia de Descartes não exprime  o ‘ponto de vista de Deus’,  mas o de um espírito  particular, do próprio Descartes, experimentando  constante e resolutamente o desejo de encontrar uma verdade que não seja particular a esse sujeito”.  PIERRE,F., Op. Cit., p. 12.
[38] DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 47.
[39] Até Descartes, o filosofar parte de um pressuposto dado como verdadeiro, seja ele a physis dos pré-socráticos, a Idéia em Platão, aSubstância em Aristóteles ou Deus na filosofia cristã. (...) Descartes, ao romper com a tradição filosófica, está rompendo com essa razão dependente, dela derivada, e construindo, em seu lugar, uma nova razão, fundamentada, primeiramente, na autodeterminação do sujeito pensante. BITENCOURT, J. A. Op. Cit., p. 29.
[40] KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 45.
[41] Sobre as diferenças existentes entre a física de Descartes e a física de Aristóteles, escreve Laberthonnière: “Si l’onveutbiens’arrêter à chercherladifférencequi existe, par exemple, entre laphysique d’Aristote et laphysique de Descartes, voici, me semble-t-il, cequ’ondécouvrira. Tandisqu’Aristote par saphysiqueaboutissait à se représenterle monde commeun ensemble de formes constituant une harmonieéternelle et qu’ils’arrêtait à contemplerpourenjouirenspectateur, Descartes par lasienneaboutit à concevoirle monde comme une machinebienagencéequidérouleseseffetsdansletemps et qu’ilentreprend de connaître non pourlecontempler, mais pourapprendre à lefairefonctionner et à l’utiliser”. Études sur Descartes, II, p. 287.
[42]Merssene, além de ser um teólogo, geômetra, físico, um homem devotado às coisas de Deus, foi também um homem profundamente relacionado com os acontencimentos intelectuais de seu tempo. Uma espécie de correio intelectual do século XVII. Descartes o tem em alta estima. Em carta, datada de 11 de junho de 1649, dirigida a Carcavi, o próprio Descartes reconhece a importância que teve o padre Mersenne em sua vida intelectual: “J’avaiscetavantage pendant laviedubonPèreMersenne, que, bien que je ne m’enquisse jamais d’aucunechose, je ne laissaispas d’être averti soigneusement de tout cequi se passait entre lesdoctes; en sorte que, s’il me faisaitquelquefoisdesquestions, il m’enpayaitfortlibéralementlesréponses, en me donnant avis de touteslesexpériences que lui ou d’autresavaientfaites, de touteslesraresinventionsqu’onavaittrouvées ou cherchées, de tousles livres nouveaux quiétaientenquelque estime,  et enfin de touteslescontroversesquiétaient entre lessavants”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 929; AT., V, p. 365.
[43] O Mundo e o Tratado do Homem constituem duas partes de uma mesma obra.  Esta obra foi escrita por Descartes entre os anos de 1629 e 1635, mas só será publicada após a sua morte. Entretanto, parte dessa obra será públicada em 1637, sob o título de: Discours de laméthodepourbienconduiresaraison et chercherlavéritédanslessciences. Obra que ficou conhecida simplesmente como Discurso do Método.
[44] DESCARTES, R. Correspondência, AT., I, p. 268; Tradução de VALERY, P. In: O pensamento vivo de Descartes, p. 127.
[45] ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 49.
[46] “A extensão do mundo é indefinida. Além disso, também sabemos que este mundo, ou a matéria extensa de que o universo é composto, não tem limites, porque, por mais longe que levássemos a nossa imaginação, mesmo assim poderíamos imaginar outros espaços indefinidamente extensos, e não só os imaginamos como os concebemos tão reais quanto os imaginamos. Por isso, eles contêm um corpo indefinidamente extenso, pois a idéia de extensão que concebemos, seja em que espaço for, é a verdadeira que devemos ter do corpo”. DESCARTES, R. Princípios da filosofia, II, art. 21, p. 68. Descartes define o mundo como indefinido.  Em carta dirigida a Morus, em 5 de fevereiro de 1649,  tratando  desse assunto, escreve: “Ne  regardez point comme une  modestieaffectée,  mais comme une sageprécaution, à  mon avis, lorsquejedisqu’il y a certaineschosesplutôtindéfiniesqu’infinies. Caril n’y a que Dieu Seul que jeconçoivepositivementinfini. Pourle reste , commel’étenduedu monde, lenombredespartiesdivisibles de lamatière, et autressemblables, j’avoueingénument que je ne sais point si ellessontabsolumentinfinies ou non: ce que je sais, c’est que je n’y connaisaucunefin, et à cetégardjelesappelleindéfinies. (...) Cependantjecroisqu’il y a  une grande différence entre l’amplitude ou lagradeur de cetteétenduecorporelle et celle de Dieu, que je ne nomme point étendue, parcequ’àproprementparleril n’y en a point enlui, mais seulementimmensité de substance ou d’essence, c’estpourquoij’appellecelle-cisimplementinfinie, et l’autreindéfinie”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 882-883; AT., V, p. 274-275. Segundo Koyré, uma “conseqüência importante da identificação entre a extensão e a matéria consiste na rejeição não só da finitude e da limitação do espaço como também das do mundo. Atribuir-lhe fronteira torna-se não só falso como absurdo e até contraditório. Não podemos postular um limite sem trasncendê-lo nesse mesmo ato. Temos de reconhecer, portanto, que o mundo real é infinito, ou antes – uma vez que Descartes recusa-se a usar este termo com relação ao mundo – indefinido”. Continua Koyré:“a infinitude do mundo parece  assim estar estabelecida de maneira liquida e indiscutível. No entanto, Descartes nunca a afirma. Tal como Nicolau de Cusa, dois séculos antes,  ele aplica  o termo “infinito” apenas a Deus. Deus é infinito. O mundo é apenas indefinido”. KOYRÉ, A. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, p. 104-105. “Descartes, para evitar qualquer pergunta embaraçante (pois as polémicas anteriores tinham enchido a discusão de equívocos), escreve prudentemente que o mundo é ‘indefinido’”. LENOBLE, R. História da idéia de natureza, p. 274. Descartes conserva a distinção tradicional, desde Filo de Alxandria, entre o infinito positivo ou de perfeição, porque ultrapassa toda perfeição limitada, e o infinito negativo (indefinido) porque sempre se pode acrescentar algo. É possível que, ao fazer isto, haja aí também um elemento de cautela. A “sageprécaution” certamente não é “sábia” apenas no que se refere à doutrina; ela é “sábia” também em face de seus interlocutores. Para os gregos havia apenas o infinito no sentido de indefinido. A idéia de um infinito que represente uma perfeição e não uma ausência de limites é introduzida pelos neoplatônicos. Cf. CLARKE, N. W. “The limitation of act by potency: aristotelianism or neoplatonism”, The new scholasticism, v. XXVI, 1953, p.167-193.Cf. também: MONDOLFO, R. O infinito no pensamento da antiguidadeclássica.
[47] DESCARTES, R., Le Monde, Alq., I, p. 349; AT., XI, p. 36-37.
[48] “Descartes descobre finalmente – aliás pelos seus próprios meios – a verdadeira utilização  das matemáticas, que continuava a ser  desconhecida nas Escolas: uma vez que a Natureza é matemática, as matemáticas são o esqueleto  certo e sólido da física. O matemático deixa de ser o auxiliar vergonhoso do artesão ou do sonhador astrólogo cujas especulações reencontram a velha magia pitagórica dos números. (...) O matemático torna-se, juntamente com  o engenheiro, o protótipo do sábio, o depositário do segredo divino. Ao reduzir a matéria à extensão, Descartes obtém essa segurança de crer que a sua Física  é a geometria aplicada”. LENOBLE, R. Op. Cit., p. 261.            
[49] DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 295; AT., I, p. 216.
[50]“Pero estos filósofos solo intentan explicar qué es la naturaleza del alma, sin añadir detalle alguno acerca  del cuerpo, que es quien debe recibirla, aunque podría ser posible, como sugieren los escritos pitagóricos, que cualquier alma hallara su modalidad propia en cualquier cuerpo, lo cual es absurdo, puesto que podemos ver que  cada cuerpo tiene su figura propia o peculiar”. ARISTÓTELES, Del alma, I, 3, 407b 20-24.
[51] “Não posso perdoar Descartes; bem quisera ele, em toda a sua filosofia, passar sem Deus, mas não pôde evitar de fazê-lo dar um piparote   para por o mundo em movimento; depois do que, não precisa mais de Deus”. PASCAL, B. frag. 77, col.Os pensadores, p. 57-58.
[52] Pascal é, de fato, um ferrenho crítico de Descartes. Dos seus fragmentos, quatro deles se dirigem diretamente a este e à sua filosofia; no frag.76, se propõe a “escrever contra os que se aprofundam demais nas ciência. Descartes”; no frag.77, afirma não perdoar Descartes por ele ter desejado passar sem Deus em sua filosofia; no frag.78, escreve: “Descartes: inútil e incerto”; no frag.79: “Descartes – cumpre dizer, grosso modo: ‘Isso se faz por figuras e movimentos’, porque isso é verdadeiro; mas dizer quaise montar a máquina é ridículo, pois é inútil  e incerto, e penoso. E ainda  que fosse verdadeiro, não acreditamos que toda  a filosofia valha uma hora de trabalho”.
[53] Cf. LENOBLE, R. Op. Cit., p. 261.
[54] LENOBLE, R. História da idéia de natureza, p. 262.
[55] “Ainda que, no que respeita aos costumes, seja um pensamento piedoso e bom acreditar que Deus fez todas as coisas para nós, para mais o amarmos e lhe agradecermos tantos benefícios; e ainda que em certo sentido isso seja verdadeiro, pois podemos usufruir de todas as coisas criadas, pelo menos para exercitar o nosso espírito a reflectir nelas – sendo impelidos a louvar a Deus por seu intermédio -, apesar de tudo não é de modo algum verossímil que as coisas tenham sido feitas para nós, como se esse fosse o fim de Deus ao criá-las. E seria impertinente e inadequado servir-se desta opinião para apoiar raciocínios da Física (...)”. DESCARTES, R. Princípios da filosofia, III, art. 3, p. 94. Segundo Descartes, não se deve jamais construir argumentos a partir do conceito de causa final. Esse tipo de argumento não leva a conhecer a própria coisa. Esse teria sido o grande erro comentido por Aristóteles: “Voilà une règlequidoitêtrebienobservée: ne jamais tirerargumentdes causes finales. Car: 1º  laconnaissancedes fins ne nousmènepas à connaissancedeschoseselles-mêmes; lanature de celles-ci n’endemeurepasmoinscachée. Et c’est le grand défautd’Aristote, d’argumentertoujours par la cause finale (...)”. DESCARTES, R. EntretienavecBurman, p. 47.
[56] “Confesso francamente que nas coisas corporais a única matéria que conheço é aquela que pode ser dividida, representada e movimentada de todas as maneiras possíveis, isto é, aquela matéria a que os geômetras chamam de quantidade e que é objeto das suas demonstrações; nesta matéria só considero as suas divisões, figuras e movimentos. E, enfim, ao tratar deste assunto só tomarei por verdadeiro aquilo que tiver sido deduzido com tanta evidência que poderia ser considerado uma demonstração matemática. E uma vez que este processo permite explicar todos os fenômenos da Natureza, como se verificará pelo que se segue, não penso que devemos aceitar outros princípios na Física, nem aliás devemos desejar outros para além daqueles que aqui se explicam”. DESCARTES, R. Princípios da Filossofia, II, art. 4, p. 90.
[57] DESCARTES, R. Traité de l’ Homme, Alq., I, p. 390; AT., XI, p. 130.
[58] “Descartes elimina todo e qualquer predicado de valor, e da idéia de Natureza somente conserva a idéia de uma disposição dos órgãos. A Natureza é aquilo que tem propriedades intrísecas constitutivas, em relação às quais tudo o que o observador pode introduzir é exterior”. MERLEAU-PONTY, M. Op. Cit., p. 19-20.
[59] DOMINGUES, I. O Grau zero do conhecimento, p.
[60] “Agora é preciso construir uma representação da realidade. Assim como a noção de “idéia” emigra de seu sentido ôntico para aplicar-se a conteúdos intrapsíquicos, a coisa da “mente”, assim também a ordem das idéias deixa de ser algo que descobrimos e passa a ser algo que construímos”. TAYLOR, C. Op. Cit., p. 191.
[61] “Até hoje admitiu-se que o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos; porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam com esse pressuposto. Tentemos, pois, uma vez,  experimentar se não se  resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade de um conhecimento a priori desses objetos, que estabeleça  algo sobre eles antes  de nos serem dados. Trata-se aqui de uma semelhança  com a primeira  idéia de Copérnico; não podendo prosseguir na explicação dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multidão de estrelas se movia em torno do espectador, tentou se não daria melhor resultado fazer antes girar o espectador e deixar os astros imóveis”. Kant, I. Crítica da razão pura (prefácio da segunda edição -1878), p. 19-20.
[62] Esta afirmação, em hipótese alguma, tem a intenção de estabelecer comparação entre o pensamento de Descartes e o pensamento de Kant. Unicamente o que interessa, aqui, é mostrar como o giro gnosiológico processado por Descartes pode, por analogia, ser comparado ao giro – não é mais o sol que gira em torno da terra, mas, ao contrário, é a terra que gira em torno do sol - cosmológico do heliocentrismo de Copérnico.


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