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A GAROTA DO CORREDOR DA VITÓRIA - Autor: Joceval A. Bitencourt
agosto 25, 2018Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
Andava lentamente, contando os passos, como se não
quisesse sair do lugar, tinha um encontro marcado com a sua amada no “Corredor
da Vitória”. Naquele canto, tudo o encantava: cada árvore, cada folha que caía, cada pessoa
que passava por ele eram versos de um poema que ele ia compondo enquanto
esperava a chegada de sua amada.
Ali, nada era por acaso: tudo obedecia à cadência das
batidas de seu coração, que aumentava à medida que sentia, pelo ar que
respirava, pelo aroma das flores, a chegada de sua amada. Tudo acontecia em trinta
minutos, entre sete e sete e trinta da manhã. A
rua não era longa, começava no Largo da Vitória e finalizava no seu encontro
com o Largo do Campo Grande. Um pequeno pedaço de mundo, onde uma menina, de
olhos e cabelos claros, um corpo entre menina e mulher, como uma rosa que ainda
não desabrochou por inteiro, um olhar forte, tão forte que tinha o poder de abduzi-lo
para um outro mundo, passava todos os dias. Não sabia o seu nome; anos depois,
descobriu que a garota da Vitória se chamava Heloisa. Nunca se falaram; toda a
comunicação entre eles era feita com o olhar e com os feromônios compartilhados
por meio do olfato. Aquela era uma relação regida pelo olhar. Apenas pelo olhar,
entregavam-se, um ao outro, despiam-se, faziam
amor. Não sabia fazer nenhuma interpretação filosófica sobre o olhar, sequer
sabia que Sartre, em seu livro O Ser e o
Nada, leva mais de sessenta páginas fazendo uma análise fenomenológica
sobre o olhar. Não, nada disso tinha importância, ou mesmo lhe interessava. A
intencionalidade de seu olhar não tinha interpretações, era natural; era só mais
um dos sentidos de seu corpo, exercendo a função que lhe é determinada na ordem
da sua máquina de existir.
Era um jovem prático, sempre dizia que não tinha
cabeça para essas coisas muito abstratas. Isso é coisa de gente que, não
sabendo interpretar os sinais do mundo real, busca esconder-se, protegendo-se por
trás do que dizem as páginas dos livros. Em vez de viverem a vida, preferem pensá-la.
Um dia (não se lembrava onde), leu um verso de um poema que se aproximava de sua
forma de ver e viver a vida: “Há
metafísica bastante em não pensar em nada”.
Eram pontuais. Sem combinarem, o encontro estava sempre
marcado para acontecer à frente da portaria do ICBA
– Instituto Cultural Brasil Alemanha. Era
exatamente ali onde eles se encontravam, melhor dizendo, seus corpos, por uma
fração de segundos, passavam um pelo outro.
Contados em passos, não passavam de dois. Mas era um encontro de pura
energia. Sentia em seu corpo uma descarga de adrenalina, com força suficiente
para iluminar todas as luzes da paixão. Durava um segundo, mas mantinha o seu
corpo em chamas até o próximo encontro, no dia seguinte. Na semana, o último
encontro era sexta-feira. Seu final de semana era regido pelas lembranças do
ocorrido durantes a semana, enquanto aguardava, com uma certa ansiedade, a
segunda-feira, que parecia não querer chegar.
Não tinha muita certeza, ainda não sabia interpretar o
turbilhão de sentimentos que a presença daquela garota provocava em seu
espírito, em seu corpo, em suas vísceras. Tudo nele era intensamente afetado
pelo olhar daquela menina. Ainda não sabia se aquele sentimento era amor, mas
tinha certeza de que algo muito especial estava acontecendo em sua vida. Sentia
como se a sua existência estivesse à espera daquele encontro. Seus destinos já
estavam traçados desde sempre. Nasceram um para o outro.
Às vezes, por força das contingências da vida, ela se atrasava
um pouco. Ele, já no meio do caminho, se continuasse a caminhada, não a veria
naquele dia. Para evitar tal falta irreparável, atrasava um pouco, diminuindo a
extensão de seus passos. Enquanto isso, distraía-se, contando as folhas que caíam
no outono, contemplava o desenho que as sombras dos prédios formavam sobre o
passeio da rua, tentava adivinhar a vida de cada andante que passava por ele. Até
que, de repente, sentia a rua toda iluminada, era o sinal de que o seu sol
acabara de anunciar a sua chegada no início daquele corredor. Retomava a
caminhada, em passos suaves, como se seus pés não mais tocassem no chão,
levitando, e, levado pelo vento, seguia ao encontro de sua amada.
Durante uma semana, para sua tristeza, acometido por
uma forte gripe, não compareceu ao encontro com a sua amada. Os dias, sem a companhia
da garota dos cabelos dourados, eram tristes, nublados; à noite, as estrelas se
apagavam. O que ela iria pensar de sua ausência? Morria de medo de que a
ausência fosse interpretada como desinteresse, ou, no pior dos casos, o fim do
namoro.
Quando a febre lhe abandonou, voltou ao Corredor da Vitória.
No mesmo horário de sempre, lá estava ela chegando. Sentia, mesmo sem saber justificar
que tanto o seu corpo quanto o dela estavam felizes com o re-encontro.
Separados, eram só metades; juntos, formavam uma unidade ôntica. Achava que
tinha encontrado a sua cara metade, recomposto a sua unidade originária. Essa
ideia de que o amor é a unidade de duas metades, que outrora fora dividida, fora-lhe
contada por um amigo que gostava de mitologia e que teria ouvido essa história
de um pensador grego chamado Aristófanes. Ficou bastante impressionado com o
que dizia o mito. Sentia-se assim: só uma metade. Tinha quase certeza de que
aquela garota era a outra metade que lhe faltava! Por alguns segundos, ficou rememorando, deixando-se levar pela fantasia
desse mito: “No princípio, éramos unos e havia três tipos de humanos: o homem duplo,
a mulher dupla e o homem-mulher, isto é, andrógino. Eram redondos, com quatro
braços e quatro pernas, e dois rostos na mesma cabeça. Vigorosos, sentindo-se
completos, decidiram subir ao céu. Foram punidos por Zeus, que os cortou pela
metade, voltando-lhes o rosto para o lado onde os cortara, deixando-os com os
órgãos sexuais voltados para trás. Desde então, cada metade não fez senão
buscar a outra e, quando se encontravam, abraçavam-se no frenesi do desejo,
procurando a união, morrendo de fome e inanição nesse abraço. Para evitar que a
raça dos humanos se extinguisse, Zeus permitiu que Eros colocasse os
órgãos sexuais voltados para frente, concedendo-lhes a satisfação do
desejo e a procriação. Eros restaurou a unidade primitiva e nos fez buscar
nossa metade perdida: os que vieram dos andróginos amam o sexo oposto, os que vieram dos homens e mulheres duplos amam os
de mesmo sexo. O amor é desejo de unificação e indivisão. Encontrar nossa
metade: eis o nosso desejo. Ao deus que isto nos propicia, todo nosso louvor”. Imaginou
que sua amada iria gostar de conhecer esse mito. Um dia, ele o narraria para
ela. Plenamente recuperado da febre que o abatera, voltou ao mundo, regulado
pela rotina dos dias.
Quando passou por ela, riram com os olhos, como se
dissessem, um para o outro: “Que bom! Está tudo bem”. E a Terra voltou a girar
em torno de seu eixo. Amanhã, o Sol nascerá, tudo retorna ao mesmo lugar, o
universo já se encarregou de marcar o próximo encontro.
Todos os seus amigos sabiam que ele tinha uma namorada;
eles a conheciam detalhadamente, só nunca a viram de verdade. Ele se lembrava de
que muitos dos seus amigos não o levavam a sério. Achavam que era uma maneira
de ele não se sentir, diante dos outros amigos, no submundo dos ignorados; por isso,
teria “inventado” essa namorada. Não se
importava com os comentários dos amigos. Se tivesse coragem (o que não era o
caso), espalharia aos quatro cantos do mundo, seu estado de felicidade. E quem
disse que o amor precisa de coragem? O amor precisa de loucura. O amor não
habita a casa dos normais. Ele sabia de tudo isso, mas, por segurança, entre as
extremidades, sempre escolhia o meio termo, o meio do caminho, se sentia mais
seguro. Em todos os aspectos, inclusive no amor, era, de fato, um moderado.
Às vezes, quando saía para o trabalho, um amigo, dos
que dividiam com ele o mesmo apartamento, ia na mesma direção que ele, então
aproveitava e falava: “Espere, estou indo para o mesmo lugar que você. Vamos
juntos”. Pronto, isso lhe tirava o centro. Primeiro, não queria que ele
colocasse os seus olhos sobre o seu amor. Nenhum mortal deveria conhecê-la. Inventava
uma desculpa, de tal forma que acabava livrando-se do intruso. Ninguém deveria
testemunhar aquele encontro com o seu amor.
Sentia que, do outro lado, os sinais confirmavam as suas
expectativas. Ela também o encarava. Não dizia nada. Mas precisava dizer! Seu
olhar já dizia tudo, eles revelavam a sua alma. Esses encontros duraram em
torno de seis meses.
Sempre foi fiel a ela: enquanto “namorou com ela”, não
namorou, sequer ficou com nenhuma outra garota. Não trairia a sua amada. Tinha absoluta
certeza de que ela também lhe era fiel. Assim como ele, ela não tinha ninguém.
Seria até uma blasfêmia imaginar outra pessoa entre eles. No mundo, não poderia
existir casal mais fiel. Era um vaso de cristal, tinha que ser cuidado; uma
leve rachadura, depreciaria o seu valor. Um cuidava do outro, cuidando do seu
bem em comum: o amor.
Tudo se resolveria na segunda-feira, a decisão já
estava tomada. Falaria com ela (Quantas vezes já tomou essa decisão e na hora
H, desistiu? Inúmeras). Mas agora era diferente. Chegou a hora de sequestrar o seu
amor do mundo das ideias e trazê-lo para brincar no seu quintal. Seu amor já
estava maduro para mundanizar-se. Chega de contemplação. Fazia tempo que seu
corpo reclamava a falta do corpo daquela menina, quase mulher. Já tocara o seu
corpo, já sentira os seus beijos, mas só na solidão de sua imaginação; agora seria
diferente: queria todos esses sentimentos, mas em um corpo real, de carne e
osso. De segunda-feira não passaria. Já estava tudo programado nos mínimos
detalhes. Ao se encontrar com ela, pediria o número do telefone. Depois,
ligaria para ela, marcaria um encontro, se possível em um barzinho, e a pediria
em namoro. Estava seguro de que ela lhe
corresponderia. Todos os sinais que ela lhe passou, em todo esse tempo, reforça
a certeza de que, assim como ele, ela também o amava.
Naquele sábado à noite, deitado em sua cama, na companhia
da balbúrdia de suas medrosas ideias, como um general, próximo a enfrentar o exército
inimigo, organizava o seu batalhão de sentimentos, para que, ao seu comando, no
momento certo, todos lutassem visando ao mesmo objetivo: a conquista de sua
amada. Antes que a segunda-feira chegasse, teria o domingo inteiro para repassar,
quantas vezes fosse necessário, cada detalhe daquele encontro que abriria o
portal para a felicidade de sua alma.
A cena inteira encontrava-se decorada. Sentia-se
seguro, como um ator, depois de ter representado o mesmo papel pela centésima
vez. Claro que estava nervoso. Qualquer pessoa em seu lugar também estaria. Era
a primeira vez que iria tentar conquistar uma namorada de verdade. Será que
existe alguma santa que protege os amantes inseguros, quase que medrosos? Se
soubesse de sua existência, pediria a ela proteção.
Ao fim e ao cabo, estava orgulhoso de si mesmo. De tão
preparado que estava, sentia-se capaz de escrever um manual ensinando como os garotos
tímidos, assim como ele, deveriam agir na hora de conquistar o coração de uma
mulher. Já estava se achando! Um dos seus “eus”, mais prudente, disse-lhe: “Cuidado!
Excesso de otimismo deixa a razão preguiçosa. Melhor adormecer o seu otimismo
no travesseiro da dúvida”. Ouvindo isso, achou prudente seguir o conselho. Naquela
noite, o sono demorou a visitá-lo, estava muito excitado. Acalmou-se, quando,
pela última vez, revisou todo o seu plano. Não encontrou nenhuma falha. Tudo
estava em ordem. Adormeceu. Finalmente a
segunda-feira chegou.
O dia amanheceu lindo, banhado de luz, tinha certeza de que assim permaneceria até o seu adormecer. Levantou-se,
tomou um banho frio (para ficar desperto); arrumou-se, colocou uma camisa polo,
azul clara, para combinar com o azul mais escuro da calça jeans, finalizou escolhendo
um tênis esporte. Estava discretamente bem vestido. Esse era o seu estilo. Nunca gostou de excessos
ao compor o seu visual. O espelho do banheiro era pequeno; não alcançava todo o
seu corpo. Foi ao quarto e, narcisicamente, contemplou-se em um grande espelho.
Gostou da imagem que viu.
Pronto, eram sete da manhã; contando o tempo que
levaria para dar cada passo, às sete e trinta estaria em frente ao ICBA. Saiu
de casa cantarolando. Ninguém duvidaria de que, naquele
dia, no Corredor da Vitória, seguia um jovem, corajoso, que tomou para si a
responsabilidade de conquistar o seu primeiro amor.
Apesar de toda a sua confiança, seus passos eram
regidos pela dúvida. Não sobre as suas ações– sobre elas, tinha
absoluta segurança, contudo, sobre as dela, não tinha como garantir que ela se
comportaria exatamente como ele programou no roteiro das suas ações. Lembrou-se
de uma passagem bíblica, na qual Abraão – homem de muita fé –, atendendo ao que
Deus lhe determinou, levou seu filho para o sacrifício. Abraão não disse, mas,
com certeza, cada um dos seus passos era acompanhado pela dúvida: Será que ele,
de fato, ouviu a voz de Deus? Será que era mesmo Deus quem falava com ele? Ou
tudo não passava de um delírio alucinatório? Levaria ou não o seu filho para o
sacrifício? Se Abraão, que assentava o seu otimismo em sua fé, tinha dúvida,
porque ele estaria imune à dúvida?! Perigo! Sempre que se sentia inseguro,
buscava apoio na religião. Estava fraquejando? Disse para si mesmo: “Pare! Não
comece a inventar histórias para desistir mais uma vez. Chega de covardia! Seja
homem. Siga em frente. Vá ao encontro de sua amada. Ela o espera”.
Para sua surpresa, chegou em frente ao ICBA, e ela não
estava lá. Esperou um pouco. Nada. Continuou a caminhar lentamente na esperança
de que, antes que a rua se concluísse, de repente ela apareceria. Chegou ao final da rua. Naquele dia, no Corredor
da Vitória, fez-se noite; faltou a luz dos seus cabelos dourados. Um bom amante
não desiste nunca. Antes de seu suspiro final, agarra-se a uma última
esperança. Amanhã, sua amada não faltará, e tudo se consumará. O amanhã chegou,
sem a companhia de sua amada. O mesmo aconteceu na quarta, na quinta...
Para sua tristeza, a sua amada não mais apareceu. Não
é que ela foi sumindo, acostumando o seu amado com o seu afastamento? Não,
simplesmente sumiu. De um dia para o outro, não mais apareceu. Ele sempre
voltava ao mesmo lugar, na mesma hora, movido pela esperança de que ela
voltasse a aparecer. Espera em vão; ela não mais voltou.
No livro de Beckett, Esperando Godott, dois homens, Estragon e Vladimir, passam dois
dias, fazendo elucubrações em torno de religião, arte, morte, enquanto esperam
um homem chamado Godot, o qual não chegará. Ele pensava em mirabolantes
alternativas para justificar o sumiço de sua amada. Todas as histórias eram construídas
e concluídas a seu favor. Ela não o abandonou – claro que não. Provavelmente a
mãe mora no interior, e ela foi visitá-la; logo voltará. Ela trabalha em uma
empresa e teve que viajar a trabalho, mas logo estará de volta. Vai saber...
foi acometida por uma doença – esperava que fosse não grave; está se
recuperando, logo estará de volta. Claro que a ideia da morte também o visitou,
mas, com um rápido movimento de cabeça, livrou-se dessa ideia quando vinha em
sua direção. Criava esses breves delírios: neles se instalava e protegia-se;
pulava para um outro, quando começava a ter quase certeza de que aquela historinha não se sustentava. Assim, saltando entre historinhas
justificadoras da ausência da amada, o tempo foi passando, sem que ela voltasse
a aparecer. Um mês, dois, um ano...
Ainda andou por muito
tempo naquela rua, interpretando sombras, como se fosse sua presença. Aquela rua tornou-se feia,
desencantada. Sua travessia, que antes era uma festa, do início ao fim,
tornou-se um pesadelo. Se ele pudesse, não mais passaria por ela. Nessa rua, as
boas lembranças foram apagadas pela dor da perda de um grande amor.
Perguntava-se: Por onde anda a menina da Vitória? Não encontrava respostas. Nem a amigos podia recorrer para ter notícias dela.
Ninguém a conhecia. Alguns chegavam a fazer chacotas com a sua cara, dizendo
que essa garota nunca existiu, não passava de alucinações de um delirante
solitário. Recomendavam a sair mais,
aproveitar a vida lá fora, pegar as garotas... A
vida passa rápido, ainda vai se arrepender de ficar aí, enfurnado em casa, lambendo suas feridas, enquanto todos os seus
amigos estão pelo mundo, aproveitando a vida. Tudo bem, eles estavam
aproveitando a vida, porém não tinham um amor verdadeiro. A crítica de seus amigos, não passava de
inveja.
Assim, seguro de si mesmo e de suas fantasias, ia sobrevivendo.
Agora, profundamente desiludido, tentando esquecer a amada que não mais apareceu
na rua encantada por onde ele andava. Nunca mais a viu. A tristeza fez morada
em sua alma. Segundo os seus amigos, recolheu-se, isolou-se do mundo, em uma angústia
que fazia dó. Abateu-se. Saltava aos olhos como emagreceu; não soube
administrar o sumiço de sua amada. O mundo separou-os de vez. Mas uma coisa sempre ficou nas suas
inquietações: o que teria levado aquela garota a sumir, de repente, da rua da Vitória?
Ninguém some assim! Deve haver um motivo! Mas qual?! Se tem, ele ainda não o
conhecia... Será que eles ainda voltariam a se encontrar nessa vida? Muitas janelas ficaram abertas, era preciso
fechá-las.
Era Carnaval, não lembrou o ano – isso também pouco
importava: a única certeza é que já havia passado pouco mais de sete anos, tempo
suficiente para que as imagens de sua memória já estivessem desbotadas de tal
forma que já tinha perdido as suas conexões com as suas causas originárias. Desgarradas
do mundo, tornam-se delírios de algo que, por analogia, associam-se a outros
fatos. Foi o que aconteceu. Naquele Carnaval, estava ele na Praça Castro Alves:
eram entre às dezoito e vinte horas, um horário um pouco morto. Nenhum trio
tocava; os foliões aproveitavam para fazer um lanche, tomar uma cerveja ou dá
uma volta... quem sabe não encontraria uma companhia para atravessar a
madrugada. Perambulava, sem direção...
Estava sozinho. Tinha combinado com os alguns amigos
para se encontrarem. Marcaram, como ponto de referência, na estátua de Castro
Alves. Até aquele momento, ninguém havia aparecido. Já tinha passado do horário
combinado... Coisa bem comum por essas bandas, ninguém chega no horário. Menos
ele. Nunca deixa alguém esperando. Um dia, ao ir a um compromisso, o senhor que
o esperava, olhou para o relógio e disse-lhe: - “Parabéns! Chegou no horário
combinado. A pontualidade é uma qualidade dos nobres”. Ele, gostando do elogio,
buscou ser nobre nos seus próximos compromissos. Voltando ao assunto... achou
até melhor estar sozinho naquele momento já que podia andar livremente entre os
foliões, dando volta sobre o seu próprio olhar, na esperança de encontrar algum
conhecido do qual pudesse se aproximar. Não encontrando nenhum conhecido, mudou
a intenção de seu olhar: passou a buscar uma garota que lhe fizesse companhia
naquela noite.
Nunca foi um folião diplomado; era um amador, gostava
de Carnaval, não de pular, mas sim do movimento, da luxúria daquele povo.
Ficava ali, parado, quase sempre marcando ponto em um determinado lugar,
contemplando aquela desordem festiva. Aceitaria, de bom grado, compartilhar
aquela noite na companhia de uma foliã, desde que ela não o levasse para a
muvuca que costuma acompanhar o trio Chiclete
com Banana, ou um outro similar, claro. Eis que, por um mero acaso, seu
olhar panorâmico fixou-se, por um breve tempo, em uma bela loira, de olhos
claros. Pareceu-lhe uma boa moça. Estava com um grupo de amigos, mas isso dificultava
uma aproximação, principalmente para quem é tímido, como ele. Então, permaneceu
por ali, gastando mais o seu olhar do que fazendo o seu corpo movimentar-se em
direção ao que seu desejo lascivo já tinha escolhido. Ela ainda não tinha
percebido que estava sendo tocada pelo olhar dele. Permaneceu no local por uns
trinta minutos. Disfarçava, fazendo olhar de paisagem, para ver se, em algum momento,
o olhar dela viria ao seu encontro. Durante o tempo em que esteve ali, notou
que, pelo menos naquele momento, aquela bela jovem estava sem companhia. Então,
ele começou a criar estratégias para que, quando o olhar dela voltasse para
ele, encontrasse o dele também olhando para ela. Era nesse encontro de olhares
que tudo se decidiria. E disse: “Vou olhar rápido para ela; assim, se estiver
me olhando, não terá tempo de disfarçar”. Dito e feito: a estratégia foi
perfeita. Sentiu-se orgulhoso de sua esperteza. Os olhares encontraram-se. Ela
tentou disfarçar, mas era tarde – sabia que tinha caído na armadilha dele. Ele
a viu olhando. Naquele breve encontro, os olhares fizeram festa. Mesmo assim, apesar
desse primeiro encontro do olhar, a timidez manteve cada qual no seu canto, só
tentando mandar sinais com o corpo; às vezes, um olhar solitário, às vezes, um olhar acompanhado de um leve e discreto
sorriso. Não importa, estavam se entendendo. Permanecia no mesmo lugar, só que sem
coragem para tomar a iniciativa. A mulher sempre espera que o homem tome a
iniciativa e aproxime-se, revelando-lhe o interesse. Sei que é assim, apesar de
achar injusta essa posição passiva da mulher. Mantém-se em posição de caça,
quase nunca de caçadora. Mas isso não vale para os mais tímidos. Às vezes, ele
torce para que a garota não demonstre interesse; assim,
ele fica livre do enfrentamento, do momento em que as palavras lhes faltam,
ficando ele ali, envergonhado, diante da garota, sem saber o que falar... a
vida dos tímidos não é fácil – é já meio caminho para a solidão. Essa timidez acompanhou-o
por toda a vida. Permaneceu ali parado, fixo ao chão, como uma árvore, presa às
suas raízes profundas... Sabia que tinha que tomar uma atitude. Homem que é
homem chega junto, vai lá e decide. Se é verdade que as mulheres não gostam de
homens inseguros, ele estava perdido; ela já
tinha percebido a sua insegurança. Agora mesmo é que não teria mais chance.
Condenado a passar mais uma noite de Carnaval sozinho. “Vai lá, arrisca, você
não está perdendo nada mesmo” – Essa era a sua própria voz aconselhando-o. Não
adiantava. Tinha-se transformado em estátua de sal. Não conseguia se mover. Seu
corpo não obedecia aos seus desejos. Veja que situação: um homem que não tem
controle de seu próprio corpo, que não o leva aonde o seu desejo deseja ir,
para que serve? Não tem futuro, virou um poste. De qualquer jeito, pelo olhar
da moça, ela ainda não tinha desistido dele. Continuava a lançar-lhe o olhar. No
fundo, ele desejou que ela tomasse coragem e invertesse os papéis. Em vez de ele
ir, ela viria até ele. Estava nervoso. Quando assim ficava, só piorava a
situação, desorientava-se. Deu vontade de sair correndo daquele lugar. Não era
a primeira vez que ele teria se tornado prisioneiro de sua insegurança. Para
que ela não percebesse, ele ficou esperando que ela se distraísse – quem sabe,
tabular um papo com uma de suas amigas, ou mesmo ir comprar uma cerveja ... Ele
se aproveitaria dessa breve distração e sairia correndo dali. Assim, não
passaria a vergonha de ver o olhar dela acompanhando a fuga de um covarde. Para
sua tristeza e sofrimento, ela não saiu. Ficou ali, vestida com uma blusa leve,
de cor amarela, um short curto, de cor branca, colado ao corpo, com os cabelos
soltos e emaranhados. Esse aspecto, um pouco desleixado, deixava-a ainda mais
sensual. Estava sentada sobre a mesa, com um dos pés apoiado ao chão; o outro, um
pouco levantando, com as coxas entreabertas, formando uma sensual figura
geométrica. Imaginou-se fazendo amor com ela. Desejou aquele belo corpo sobre o
seu corpo.
Em um determinado momento, ela, como que decidida a
resolver aquele impasse, encarou-o. Era como se perguntasse: “E aí, vai ficar aí
parado? Preciso enviar mais sinais, além dos que já enviei. Tome jeito, homem
de Deus! Venha, que eu estou te querendo”. Os olhares fixaram-se: ela, por
coragem; ele, por covardia. Estava com tanto medo da aproximação, que sequer
seu olhar se mexeu, permaneceu parado, como um olhar bovino. Vendo que ele
estava morto, ela tomou uma atitude: acenou com a mão, convidando-o a se
aproximar. Pronto, agora estava perdido, não tinha mais como fugir. Seu corpo
tremeu por inteiro. Estava desesperado.
Bem feito, se tivesse fugido antes, não teria que agora enfrentar a bela
moça, sem saber o que falar com ela. Sem alternativa, foi em sua direção. Ela o
recebeu com um largo sorriso. Mas, ao se aproximar, ela lhe fez uma pergunta
que o deixou desconcertado, o que ampliou ainda mais o seu estado de tensão e
medo: “Você só vai ficar olhando? ” – Mas o que responder nessa hora? Sem saber
o que falar, disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça: “Fiquei na
expectativa, queria ter certeza de que você estava sozinha”. Desculpa mais
comum não poderia ter encontrado. Ela, que não era boba, deu um leve sorriso,
como se estivesse sabendo que não deveria ir mais fundo; poderia fazer seu
medroso pretendente deixar-lhe sozinha. Finalmente se apresentaram: ele se
chamava Abelardo; ela, Heloisa. Falaram amenidades, coisas do tipo: “E aí, como
está o seu Carnaval?”, “Será que vai chover?” – Depois de mais uma ou duas
perguntas sem sentido, recursos para quem não sabe o que falar, ela olhou no
fundo dos seus olhos e falou: “Já nos
conhecemos”. No primeiro momento, ele pensou que ela estivesse fazendo uma
pergunta, mas logo percebeu que ela estava fazendo uma afirmação. Ele ficou um
pouco zonzo. Coisa muito chata, quando alguém diz que o conhece e você não consegue
lembrar-se daquela pessoa. É tudo muito rápido. Em um segundo, você visita o
seu passado: abre as portas da memória, abre todos os armários, levanta os
tapetes, onde geralmente esconde o que não se quer mostrar, e não encontra
aquela pessoa. Não tinha o que dizer. Ele não se lembrava daquela garota. Mas não poderia dizer isso para ela. Seria até
deselegante. Ela, percebendo o embaraço dele, foi ao seu socorro e, sem muitos
rodeios, disse: “Eu sou a garota do Corredor da Vitória. Você se lembra? ”.
Como poderia esquecer! Ali, naquele momento, estava resgatando um tempo perdido,
recompondo uma falta de sua alma. Finalmente, depois de muito tempo, desde quando a encontrou pela primeira vez no Corredor da Vitória,
estavam juntos, não só se falando, mas quase se tocando. Como ele poderia ter
deixado a imagem dela fugir das paredes de sua memória? Vendo agora, depois da
revelação que ela fez, não tinha mais dúvidas: era mesmo a amada dele. O que o teria
feito ele esquecê-la? Só tinha uma resposta: ele sofreu muito com o seu
desaparecimento. Como forma de terapia, expulsou-a de sua vida, apagou-a de
suas lembranças. Eles tinham um acerto de contas com o passado; ambos, em
silêncio, fizeram juras de amor que não tiveram a chance de cumpri-las. Não
podiam deixar aquele momento escorregar de suas vidas. Tinham que concluir
aquela história do passado. Aquela era a hora. Ele ainda não se sentia muito à vontade; era como
se tivesse algo a incomodar. Mesmo correndo todos os riscos, ele teria que
fazer uma pergunta que, por muitos anos, rondou suas caminhadas amorosas.
Segurando as mãos dela, perguntou-lhe: “O que teria acontecido para ela ter
desaparecido do Corredor da Vitória? ”. Chegou a hora de conhecer a versão dela
sobre os fatos. Ela não respondeu diretamente à pergunta. Mas disse: -Bem, antes
de lhe responder, preciso falar como me sentia naqueles nossos encontros
silenciosos. E continuou a falar: “Aquele foi um momento encantado de minha
vida. Encontrá-lo todos os dias era a minha alegria. Quando algo impedia esse
encontro, tornava-se um peso carregar o dia. Eu morava na Federação, pegava o
ônibus para o Campo Grande. Deveria pegar outro ônibus para chegar à Graça, bairro
onde eu trabalhava, já que a distância era um pouco longa. Mas não era isso que
eu fazia. Fazia o percurso andando, só para passar pelo Corredor da Vitória e encontrá-lo.
Quando, por algum motivo, chegava mais cedo ao Campo Grande, para não correr o
risco de não vê-lo, atravessava o Campo Grande e ficava um pouco escondida, no início
do Corredor da Vitória, esperando a sua aparição. Então, quando você apontava
na metade do caminho, eu começava a minha caminhada em sua direção. Sabia que
nos encontraríamos em frente ao ICBA. Todas as minhas amigas já o conheciam. Eu
falava para elas que estávamos namorado. Elas o conheciam
em detalhes. Morriam de vontade de conhecê-lo de verdade”.
Parte dessas
amigas estavam com ela naquela noite de Carnaval. Mas elas não sabiam de nada
do que estava acontecendo; só sabia que havia um rapaz paquerando a sua amiga.
Ele se deu conta de que, apesar de as subjetividades deles nunca se terem
objetivado, cada um, do seu canto, percorreram os mesmos caminhos,
alimentaram-se das mesmas fantasias, tinham os mesmos desejos, sonharam os
mesmos sonhos... Agora, para a alegria de ambos, sabiam que não se enganaram; o
amor deles era correspondido. Foi um amor verdadeiro. Eram cúmplice dos mesmos
sentimentos.
Se tudo
acabasse ali, ele já se dava por feliz. Ela também o amou, tanto quanto ele a
amou... não foi um delírio infantil. Para que fazer mais perguntas. Basta. Mas
ainda tinha algo em aberto. Era preciso saber por que ela teria desaparecido de
repente do Corredor da Vitória. Se ele pudesse antever a resposta, a pergunta
não teria sido feita. “Bem, agora vou lhe responder o porquê de eu sumir de
repente: Eu era casada”. Entre todas as possíveis respostas, essa nunca esteve
presente. Ele chegou a imaginar que seria uma blasfêmia ter uma terceira pessoa
entre eles. Um certo desencantamento abateu-se sobre ele. Perguntou-lhe: “Então,
desde o início você era casada?” “Sim – respondeu ela”. Então esse não pode ter
sido o motivo para você ter sumido. “Não. Não foi esse o motivo”. Nada pode ser tão ruim que ainda não possa
piorar. Ele ficou ali, meio atordoado, esperando-a concluir. Disse ela: “Eis o
verdadeiro motivo: “Eu fiquei grávida. Não queria que você me visse naquele
estado”. A realidade é mesmo habilidosa na arte de descolorir o mundo,
tornando-o sombrio. Antes dessa revelação, o mundo tinha mais luz. Ela percebeu
o desencantamento dele; pediu-lhe desculpas, mas disse que preferiu falar a
verdade. Ainda bem que muito tempo tinha se passado, e o amor que nunca teve o
seu encontro com a realidade, quando a oportunidade desse encontro se
apresentou, já não era mais amor; era só uma boa
lembrança que foi carinhosamente guardada no armário dos afetos. Aquele
encontro não era a renovação do amor entre dois amantes, era só um acerto de
contas que dois jovens faziam com o seu passado. Então, ela completou a
história: “O casamento acabou, e o filho não vingou”. E concluiu: “Estou livre
para viver no presente, o que muito desejei no passado”. Pela primeira vez, beijaram-se. Era segunda-feira
de Carnaval. Ficaram juntos aquele Carnaval. E continuaram juntos. O amor ideal
teve uma vida mais longa que o amor real.
E assim, em silêncio, recitando esses versos, do poema
de Fernando Pessoa, ele concluiu sua história de amor com a garota do Corredor
da Vitória: “Eu amo tudo o que foi. Tudo o que já não é. A dor que já me não
dói. A antiga e errônea fé. O ontem que a dor deixou, o que deixou alegria, Só
porque foi, e voou. E hoje é já outro dia”.
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