O PÃO NOSSO DE CADA DIA
novembro 23, 2024Prof. Dr. Joceval Bitencourt
O PÃO NOSSO DE CADA DIA
Todo trabalho do homem é para sua
boca... (Eclesiastes – VI:7)
A culinária é um espetáculo cultural. Brincando com os temperos, misturando ingredientes e sensações distintas, em busca de um sabor que agrade ao paladar, o povo vai construindo a sua memória, fincando raízes do seu pertencimento, formando sua identidade e indicando as suas formas de se relacionar com o mundo.
É possível estudar um povo, a sua
cultura, suas crenças, seu comportamento, inclusive a sua moral, através dos
modos como ele se relaciona com os elementos que compõem a sua alimentação.
Diz-me o que comes, dir-te-ei quem
és. “O caráter de uma raça pode ser deduzido simplesmente do seu método de
assar a carne. Um lombo de vaca preparado em Portugal, em França, ou
Inglaterra, faz compreender talvez melhor as diferenças intelectuais destes
três povos do que o estudo das suas literaturas” (Eça de Queiroz). Segundo
Lévi-Strauss, o alimento vai além da função de manter um corpo vivo, ele serve
para pensar. Em seu livro Mitológicas, o pensador estruturalista
recorre aos alimentos, bem como suas formas de preparos, para analisar e
entender as diversas manifestações da cultura indígena.
Pitágoras, filósofo que, por meio
da geometria, buscou compreender a ordem do universo, deixou contribuições não
apenas nesse campo, mas também na música, na religião e em outros saberes. Era
cuidadoso consigo mesmo e orientava seus discípulos quanto aos melhores
caminhos — inclusive na alimentação — para que, fazendo escolhas moderadas,
pudessem alcançar uma vida equilibrada, saudável e mais feliz. “Assim, proibia
seus adeptos de comer peixes como o salmonete e o melanuro; prescrevia a
abstinência tanto do coração dos animais quanto das favas e, segundo
Aristóteles, também do rúmen e da cabrinha. Outros autores dizem que, às vezes,
alimentava-se apenas de mel ou favo e pão, e que, durante o dia, não bebia
vinho. Com o pão, comia frequentemente verduras cruas ou cozidas, e raramente
peixe. [...] Nunca o viram comer em excesso, entregar-se aos prazeres do amor
ou embriagar-se.” (Diôgenes Laërcio, Vida e doutrinas...)
Em Metamorfoses (XV), Ovídio apresenta um
discurso atribuído a Pitágoras, no qual este defende uma alimentação
vegetariana, saudável para o corpo, evitando o derramamento de sangue e o
sacrifício de animais.
“E primeiro, cessai de macular vosso corpo com
alimentos criminosos! Tendes o trigo, tendes frutos que dobram os galhos pelo
peso, e uvas que incham nos cachos. Tendes ervas suaves e hortaliças que o fogo
pode amaciar; não vos faltam também o leite agradável nem o mel perfumado pelo
tomilho. A terra, pródiga, vos oferece em abundância os seus manjares,
fornece-vos banquetes sem sangue e sem morte. Só as feras saciam os seus
vorazes estômagos de carne; ah! que nefando costume! Não saciem vossas
entranhas com alimentos semelhantes, homens! A terra fornece generosamente tudo
o que é necessário. Cruel, exigis que se derrame sangue para sustentar o vosso
corpo? Enquanto houverem as florestas, os prados e os pomares, enquanto a terra
der os seus frutos e o vinho brotar da videira, não busquem manjar além do
lícito. Vós, mortais, acabais por acostumar o paladar a carnes de animais
mortos; vós vos atreveis a abrir entranhas, a morder fibras sangrentas, a
mascar o que há pouco mugia, balia ou cantava! Que crime horrendo: encher o
corpo de outro corpo, nutrir-se de uma vida pela morte de outra vida! Não vos
basta cometer tal crime? É necessário ainda que, com atos de parricídio, se
profanem os deuses, que o ferro cravado em pescoços inocentes derrame o sangue
que deve correr apenas em sacrifícios ímpios? Assim nasceu o primeiro crime,
quando o ferro se tingiu de sangue; a vida se alimentava de vida, e a garganta
se acostumava a dar voz em rogos cruéis. De então para cá, multiplicaram-se as
abominações; e pareceu pouca a morte dos animais: o homem passou a banhar-se em
sangue humano!”
Em A República, Platão, ao
imaginar uma cidade governada por filósofos, buscou — como sempre pretende a
razão — atender a todas as demandas da organização social, inclusive orientando
os habitantes de sua cidade ideal sobre a escolha dos alimentos e as formas de
prepará-los.
“Alimentar-se-ão de farinha de
cevada ou de trigo, por eles mesmos amassada ou assada, para o preparo de pães
e bolos saborosos, que serão servidos em esteiras ou em folhas limpas [...]
sal, azeitonas e queijo, bem como de cebolas e legumes, que é o que comem no
campo e eles terão também de prepará-los. Até sobremesa lhe daremos: figos,
ervilhas e favas, e também bagas de mirto e castanhas, que assarão no borralho
[brasa], com acompanhamento moderado de vinho. Passando dessa maneira a
existência, em paz e com saúde, chegarão à velhice como é de esperar, e
transmitirão o mesmo modo de vida a seus descendentes (Platão. República.
372a-d).
Não se pode negar, Platão demonstrava
ter bom gosto alimentar; certamente, qualquer pessoa, dotado de bom senso, com
um certo refinamento no paladar, não se negaria a participar dessa mesa
celestial.
Cobiçando o banquete de Platão, bem como a
alimentação saudável proposta por Pitágoras, lembrei-me de um diálogo entre os
filósofos Bertrand Russell e Jean Nicod. Russell disse a Nicod que as pessoas
que estudam filosofia deveriam buscar compreender o mundo, e não os delírios
das ideias em seus respectivos sistemas. Nicod respondeu: “Sim, mas os sistemas
são muito mais interessantes do que o mundo.” E não é verdade?!
Facilmente agregam-se aos alimentos valores,
tornando-os mais que um simples alimento, mas, um bem cultural, sobre o qual,
por identificar uma sociedade, não importando se uma pequena região geográfica
ou um país, incorpora-se um culto, uma devoção, no limite, uma verdadeira
paixão.
Na festa das paixões, a razão não
é convidada. Perde tempo quem queira encontrar, no terreno pantanoso das
paixões, argumentos lógicos, verdades comprovadas, ou justificativas chancelada
pela bitola da ciência. Não irá encontrar, pois esse não é o seu lugar.
Em oposição à episteme -
território seguro e certo, onde se assentam as verdades claras e distintas -, o
território da doxa se insere no campo das opiniões, do achismo e do
relativismo exagerado. Nela, cada indivíduo, prisioneiro de sua própria gaiola
de certezas, afirma 'suas verdades' como se fossem supremas.
A culinária é um campo fértil para
a manifestação das paixões. Nenhuma comida é melhor do que aquela do seu país,
da sua região, preparada pela melhor cozinheira do mundo: sua mãe. Com o passar
dos anos, carregamos na memória sensorial os aromas e sabores dos alimentos da
infância.
Não abandona a minha memória o
'cortadinho de abóbora com carne-seca' que minha mãe preparava quando eu era
criança. Segui pela vida, em vão, farejando aquele aroma que tanto alegrava
minha alma infantil.
Na arte de fazer “cortadinho de
abóbora, com carne-seca”, minha mãe tornou-se invencível. Todos que tentaram
assumir o seu altar, fracassaram.
Ao passado alimentar, rende-se
reverência e devoção; ele se torna um território sagrado. Ninguém, por mais
criativo que seja na arte de brincar com os temperos, jamais alcançará a
perfeição do alimento que conquistou minha devoção.
Assim como um crente defende sua
igreja e um torcedor defende seu time preferido, o homem, com a mesma fé,
defende o alimento que representa sua cultura. Em geral, quando nossas escolhas
são prisioneiras de nossas paixões, o adjetivo 'melhor' torna-se o seu
identificador. Contudo, vale uma observação: esse adjetivo de superioridade
sempre se encontra do meu lado, enquanto, do lado oposto, está meu opositor -
um sujeito, quase sempre desprovido de bom senso, com um paladar duvidoso ou
pouco refinado. Assim, o 'melhor' é sempre aquilo que ele
escolhe, aquilo que está inscrito nos limites de seus afetos afirmativos. O seu
Deus é o “melhor”, o seu time de futebol é o “melhor”, a sua culinária é a
“melhor”... Colocar sob suspeita esse adjetivo é “correr risco de vida”.
A
verdadeira “moqueca” é a baiana; a moqueca capixaba, segundo ele, não é
moqueca, não passa de um “caldo” ou “ensopado de peixe”. Essa é a opinião de um
baiano. Se for um capixaba a falar, certamente os valores se invertem: a
moqueca baiana é destronada, transformando-se em uma falsa moqueca ou uma
simples peixada.
Lembrei-me
de um conhecido, carioca raiz, desses que contemplam e avaliam o mundo pela
bitola de sua terra natal. Apaixonado pelo “biscoito Globo”, ele vocifera,
perde completamente o bom senso, quando alguém ousa dizer que, além do Rio de
Janeiro, em outras regiões do país, esse tipo de biscoito de polvilho - mesmo
tendo outros nomes - é bastante comum. Enraivecido com tal constatação, e não
podendo negar os fatos, luta para não perder o território de sua verdade.
Imediatamente, busca restaurar a superioridade de sua paixão. De arma em punho,
encara o seu detrator e diz: “Pode até ser que exista por aí algo parecido com
o biscoito de polvilho, mas, com absoluta certeza, o verdadeiro e melhor
biscoito de polvilho do mundo, que o carioca tanto ama, é o Globo, fabricado no
Rio de Janeiro, servido em suas praias, acompanhado de um bom chá-mate gelado.”
Seu opositor, diante de argumentos tão apaixonados, temendo pela própria vida,
renuncia à luta e deixa-se vencer.
O que vale para fronteiras
próximas vale para as mais distantes. O alimento do outro parece estranho,
simplesmente porque não é o nosso - não faz parte de nossa cultura. Assim, para
um ocidental, sempre parecerá muito estanho a culinária da Índia, e mais ainda
a da China. Pergunta-se um ocidental: como alguém é capaz de consumir
aquelas estranhas iguarias? Em tempo da abonança, é possível que esse tipo
de questionamento faça algum sentido. No entanto, ele perde relevância quando a
escassez, a fome se espalham sobre uma determinada região ou povo. Nesses
momentos, desaparece o preconceito em relação à cultura alimentar. Come-se de
tudo. A fome passa a reger a escolha alimentar. “Os alimentos mais simples
proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais requintadas, desde que remova
a dor provocada pela falta: pão e água produzem o prazer mais profundo quando
digerido por quem dele necessita” (Epicuro – Carta a Meneceu). Sócrates,
acusado por um sofista de viver uma vida miserável, inclusive descuidando de
sua própria dieta, alimentando-se “das viandas mais grosseiras”, responde ao seu acusador: “Achas minha
vida miserável porque minha alimentação é menos sã ou menos nutritiva que a
tua? Porque meus alimentos sejam menos difíceis de obter que os teus, os quais
são mais raros e mais delicados? Por que os manjares que preparas te saibam
melhor ao paladar que os meus a mim? Não sabes que quem come com apetite não
tem necessidade de condimento, que para quem bebe com prazer, fácil é
prescindir da bebida que não tem?” (Xenofonte – Memoráveis, I:VI).
O melhor menu é ter à mesa
“o pão nosso de cada dia”, não importando a sua natureza ou procedência. Assim,
aquilo que, a princípio, parece causar estranheza e repulsividade, por sua
excentricidade, ou mesmo por sua pobreza nutricional, sob certas
circunstâncias, passa a ter um valor especial, quase uma ambrosia dos deuses.
“[...] Baleia trazia entre os dentes um preá”, todos gritam de alegria. Não
morreriam de fome naquele dia. ‘Sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e
como o focinho estava ensanguentado, lambia o sangue e tirava proveito do
beijo” (Graciliano Ramos – Vidas secas). “Freitas via a mucunã por
prisma diferente. Tinha certeza de ser muito venenosa e, como tal, a maior
assassina que o Ceará tem tido, durante as secas; mas também sabia que a ação
tóxica podia ser modificada ou mesmo destruída, segundo o processo empregado na
extração da fécula. Preparada por mãos ignorantes, é sempre um veneno e nunca
um alimento. Convencido disso, dispõe a prepará-la com o máximo de escrúpulo – (Rodolfo
Teófilo – A fome). Diante da fome, a luta é pela sobrevivência, não pela
qualidade do alimento. “A fome contenta-se com pouco, os paladares requintados
é que tem grandes exigências. A pobreza limita-se a satisfazer as necessidades
mais prementes” (Sêneca – Carta a Lucílio).
A vida é um bem natural, a base de todos os
outros bens. Preservar esse bem é a luta maior do homem.
De todos os monstros que o ser humano precisa combater
na busca pela preservação da vida, nenhum é mais feio e perverso do que o
monstro da fome. Ela tira do homem a dignidade, desumaniza-o, definha seu
corpo, resseca-lhe a alma, tornando-o, no limite do ser, a expressão do nada.
“Nenhuma
calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e num
sentido tão nocivo quanto a fome.”(Josué de Castro, Geografia da Fome).
A fome é o olhar da morte vigiando o homem, do
amanhecer ao anoitecer. É preciso vencê-la. É preciso sobreviver.
Não há muito o que escolher. Come-se,
simplesmente — come-se, sem escolher o quê. A alma se alegra diante de qualquer
coisa que possa silenciar os gritos de um estômago vazio.
Diante da fome, o homem se comporta como “um
pássaro malvado” que existe lá no Sertão:
Carcará / Pega, mata e come / [...] Carcará / Não
vai morrer de fome... - João do Vale, “Carcará”
Entende-se o porquê de as circunstâncias
históricas, em seus mais diversos aspectos - culturais, geográficos,
climáticos, populacionais -, determinarem a escolha alimentar de cada povo.
Devido à imensa população da China, não há o
luxo de escolher o que se come; consome-se de tudo. Diz-se frequentemente que o
chinês não impõe restrições alimentares — tudo pode se transformar em comida,
desde que se mova, seja andando, voando, nadando...
Seguimos o mesmo caminho: ter pão para matar a
fome, independentemente de sua qualidade, já é uma grande celebração.
Quando o seu torrão natal seca o seu ventre,
não sendo mais capaz de gerar o alimento necessário ao seu sustento e dos seus
rebentos, quando o canto do acauã anuncia que a morte se aproxima, o homem
parte, triste, abandonando a sua terra natal, que ele tanto ama, e migra para
outras bandas em busca de vida.
“Quando oiei a terra ardendo / Qual fogueira
de São João / Eu preguntei' a Deus do céu, uai / Por que tamanha judiação?
[...] Que braseiro, que fornaia / ‘Nenhum pé de prantação' / Por farta d'água
perdi meu gado / Morreu de sede meu alazão / [...] Inté mesmo a asa branca /
Bateu asas do sertão / Entonce eu disse: adeus, Rosinha / Guarda contigo meu coração / [...] Hoje
longe, muitas légua / Numa triste solidão / Espero a chuva cair de novo / Pra
mim vortar pro meu sertão...” (Luiz Gonzaga – Asa Branca – MPB.)
No último capítulo de Vidas secas, A
fuga, Graciliano Ramos narra a triste partida daqueles retirantes em busca
de vidas em terras desconhecidas... “Na
planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes
tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente
andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a
viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A
folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga
rala”. Enquanto caminham sobre a sua dor, sonham com a terra prometida...
“Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes.
Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. [...]
chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, [...] E o sertão mandaria para
a cidade homens fortes, brutos...”
É verdade: o sertanejo ‘é, antes
de tudo, um forte’, como disse Euclides da Cunha em Os Sertões, mas até
a força dos fortes tem limites.
Diante da insurreição da terra e
do prelúdio de sua desgraça, o homem enfraquece. Dobra-se, renuncia a si mesmo
e, vencido por um mundo que lhe diz não, entrega-se ao primeiro salvador que
lhe diga sim, oferecendo-lhe uma saída para o seu infortúnio. "O Senhor é
a minha força" (Salmos 28:7). Mas essa é uma luta inglória. Sua fé cega
não o salvará. Deus já o esqueceu. Sua devoção, encantada por suas orações, não
se converte em chuva, não fertiliza a terra, não tem o poder de fazer brotar,
daquela terra morta, o pão para matar a sua fome.
Sem saida, sem vida no mundo real, o homem agarra-se a esperança de
encontrar, num outro mundo que a supertição lhe oferece, um alívio para as suas
dores. De alma e corpo embrutecido pelas dores do mundo, ele, cego, segue em
procissão em direção ao grande banquete de ilusões que lhe é preparado. “Venham,
pois tudo já está pronto” (Lucas 14:15).
Amedrontados pela sombra da morte,
que os acompanha do amanhecer ao anoitecer, seguem o canto das aves de rapina —
guias sombrias de suas raquíticas almas — em direção ao cruzeiro: um ponto
elevado, geralmente um morro afastado da cidade, marcado por uma cruz. Ali,
rogam a São José, provedor de chuva e esperança, que tenha clemência de sua
miséria e lhes mande água.
“Meu divino São José / Aqui estou
em vossos pés / [...] Aqui estou em vossos pés / Nos dê chuva com abundância /
Meu Jesus de Nazaré / Meu divino São José / Pela cruz que trais na mão / Nem de
fome, nem de sede / Não mate seus filhos não / Quem fizer sua devoção / Tenha
fé no coração / Que numa hora pra / Ver chuva de Deus no chão... Ao Senhor que está na cruz / Vos ofereço este
bendito / Ao Senhor que está na cruz / Que nós dê chuva e bom tempo / Para
sempre, amém, Jesus”.
Depoimento de uma filha da seca à
espera que o santo José molhe o seu torrão de vida:
“Às vez a gente pensa assim: não
chove janeiro, nem chove fevereiro, aí a gente vai apelar pro Dia de São José
(19 de março). Até uns três dia antes a gente tá com esperança que ele ainda
vai mandar chuva. Aí o que acontece? Às vez chega até o dia de São José e não
tem chovido ainda... mas aí quando chega... mermo assim ele manda aquela chuva
pra juntar um pouco d’água. Gosto.
Toda hora que tem chuva eu tomo
banho na chuva, me moio toda, encho as vasilha... Aí começa a chover de novo,
torno a me moiar, moio a casa, moio tudo... Eu gosto de chuva...”
Cada povo, regido por suas faltas,
driblando suas adversidades, vai se reinventando, metamorfoseando-se,
adaptando-se às circunstâncias, inclusive em suas formas em lidar com os
alimentos. Diante do risco da fome, todos se parecem, todos tem um mesmo objetivo:
sobreviver. No século XIX, alcançando suas futuras guerras, período de grande
escassez de alimentos, a batata salvou a Europa, tornando-se a sua grande
reserva alimentar. Devido ao seu alto
valor proteico, alimento de fundamental importância para a população, o
tubérculo tornou-se objeto de desejo. Tê-lo, demostrava sinal de força,
possível vitória diante do inimigo. “Ao vencedor, as batatas”.
Em Quincas Borba, Machado
de Assis analisa a importância da batata na correlação de forças entre as
sociedades.
“Supõe tu um campo de batatas e
duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos
que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde
há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do
campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse
caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a
outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações,
recompensas públicas e todos os demais feitos das ações bélicas. Se a guerra
não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de
que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo
racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao
vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.
Sobreviver, sem jamais alcançar
uma vitória, apenas persistir; conquistar o direito de manter-se vivo,
superando aqueles que sucumbiram às misérias dos tempos. Encontram nas batatas
o alimento da vida. É isso que justifica a luta dos desvalidos, daqueles que se
tornaram excluídos e invisíveis à sociedade.
Em 1885, Van Gogh, por meio de sua
famosa obra Os Comedores de Batatas, representa de maneira expressiva
esse momento de crise. Em cada traço desta obra, o autor denuncia a condição
existencial do homem que está sendo abandonado pelo progresso que se aproxima.
É um triste retrato da condição humana. Em torno de uma mesa, uma família de
camponeses compartilha uma refeição, tendo as batatas como seu único alimento.
Com mais sombras do que luz, acentuando as cores escuras – em tons de pastel e
com traços rústicos –, o autor busca, por meio de uma estética realista,
denunciar o abandono do homem do campo, que se torna cada vez mais invisível
com a chegada dos tempos modernos, com o advento da revolução industrial.
Sem dificuldade, poder-se-ia
contar, através dos alimentos, a história da humanidade. Priorizando este ou
aquele alimento, conforme a ordem das circunstâncias, segundo a qual o homem se
vê e se reconhece no mundo. Não há dúvida, a cultura alimenta o espírito, o
alimento alimenta o corpo. Mas, quase sempre, eles se encontram, se unificam,
tornando quase impossível separá-los. É claro que o homem não é só alimento, tampouco
é só espírito. Ambos, estão juntos e misturado, dando as condições para que o
homem faça a sua caminhada neste mundo. “Favo de mel são as palavras suaves,
doce para alma e saúde para os ossos” (Provérbio, 16:24).
Na arte de sobreviver, o que não
falta é criatividade. Sim, de certa forma, em torno do alimento, é através da
criatividade que as sociedades se inventam, reinventam e sobrevivem. Correndo o
risco de errar, é possível afirmar que nenhuma sociedade, em algum momento de
sua história, deixou de fazer uso da criatividade para sobreviver quando foi
visitada pelo infortúnio da fome. Os franceses, não tendo como conservar os
alimentos e vendo-os entrarem em estado de decomposição, usaram a criatividade,
tornaram-se grandes criadores de molhos, com os quais salvavam, para o corpo,
aqueles alimentos que já não agradavam bem ao olfato. Sob a recomendação de
Napoleão, descobriu-se como se conservar alimentos por mais tempo, o que
garantia, nos períodos de guerra ou de castigos climáticos, que não faltasse
alimentos. Para ficarmos mais perto de casa, à nossa feijoada, “preferência
nacional”, tem sua origem nos restos dos animais sacrificados para a refinada
alimentação da casa grande, onde, vísceras, cabeça, rabos, pés... eram
encaminhados para a senzala, sendo aproveitados pelos escravos em sua
alimentação. Sem panelas para cozinhar os alimentos separadamente, eles os reuniam
todos em uma única panela, acrescentando a eles o feijão, dando origem a nossa
conhecida feijoada. O que nasceu da pobreza da senzala, não demorou, conquistou
o seu lugar na mesa das elites, sendo chancelada como um bem cultural. Contando com o admirável delírio dos poetas,
a feijoada elevou-se à poesia, alimentando, não só o corpo, mas também o
espírito.
“Vou te contar um segredo / De uma
deliciosa combinação / É de lamber os beiços / E de esquentar o coração /
Orelha de porco, rabinho e costela / Escalda tudo e põe na panela / Pé de
porco, lombo, carne seca linguiça e feijão / Não se esqueça do louro e se
quiser ponha salsão / Tempere com alho, cebola e uma boa pimenta / Vai
misturando tudo cantando uma canção / Nossos irmãos sequer imaginaram / Que os
restos que o branco rejeitou / Aos poucos se transformou / No prato tipicamente
brasileiro / Que a todos agradou / Vem gente de toda parte / Conhecer a sua
arte / Tão sofrida e tão bela / Que já derramou muitas lágrimas na panela /
Servida com laranja, couve e um arroz bem branquinho / Não esqueça a farinha e
um bom torresminho / Uma mistura perfeita, feita com todo carinho / branco no preto, o preto no branco / Como
desejar / A miscigenação de um povo / Que acaba de criar: Brasil e África num
só lugar!” (Nivânia Carvalho). “Uma velha e perfeita cozinheira a
quem pedi a fórmula sagrada / Da feijoada à mineira, / Mandou-me. Ei-la:
"Receita de feijoada - / Tome coisa de um litro de feijão preto, novo, sem
bicho, / E, depois de catado com capricho, / Jogue no caldeirão. / [...] Quando
estiver o caldeirão fervendo / Ou antes, deite o sal, / As mãos de porco,
orelhas e, querendo / Focinhos e rabo; isto (está claro) tendo, / Porque não
tendo é o mesmo, não faz mal. / Se, além desses preparos, deitar nela /
Linguiça e mais um osso de presunto, / Só o cheiro da panela / Faz crescer água
à boca de um defunto... (Carlos D. de Andrade).
Assim, em cada canto, o povo, vestindo-se de
suas peculiaridades, vai construindo suas relações com a comida. No primeiro
momento, usa-se o alimento como meio de preservação da vida, bem maior da
espécie; no segundo momento, o alimento é elevado a um bem cultural, adquire
uma representação valorativa imaterial. Além de alimento físico, torna-se
alimento espiritual. É como um bem cultural que a comida se aproxima da
religião. Traz-se para a religião, valores que estão para além de suas
representações físicas. O alimento sacraliza-se, incorpora-se a eles signos e
significados religiosos que cada povo adotou em suas relações com os seus
deuses.
Os homens, buscando se aproximar
dos deuses, estabelecendo com eles uma certa intimidade, passam a conviver com
eles no seu cotidiano. Tudo se impregna de sagrado. Os deuses estão por toda parte; tudo se
encontra repleto de deuses – até os alimentos.
O pão, já não uma simples mistura química de
vários elementos: água, farinha de trigo, fermento, banha, açúcar, sal..., não,
vai além disso, sacralizou-se, tornou-se um ente espiritual, uma presença
divina entre os homens.
Aristóteles, citado por Heidegger, em seu
trabalho: Carta sobre o humanismo, narra o que teria ocorrido com o
filósofo Heráclito. Alguns forasteiros foram visitá-lo. Lá chegando, o
encontraram junto ao fogão, provavelmente cuidando do pão. Vendo-o num lugar
tão insignificante, indigno para um sábio, não esconderam uma certa decepção.
Heráclito, percebendo o desencanto dos visitantes, convida-os a entrar e,
buscando levar um pouco de ânimo às suas almas, diz-lhes: “Pois também aqui
estão presentes deuses...”
A sacralização dos alimentos, exige respeito,
devoção, culto. Através de seus ritos, os homens buscam a boa convivência com
os deuses, busca os seus cuidados, a sua proteção. Muda-se a religião, mas mantém-se
um princípio comum: o homem, recorrendo aos deuses em busca dos seus cuidados,
em busca de sua salvação.
Para agradar aos deuses, obtendo os seus
beneplácitos, os homens elaboram seus cultos, fazem suas oferendas, põe seus
alimentos no altar dos sacrifícios. Em certa medida, é em torno do alimento que
as religiões celebram a sua relação com o sagrado. Seja com o sacrifício físico
de animais, seja com a oferta dos frutos da terra, transformados em alimentos,
cozidos ou não, seja com a transubstanciação, onde o alimento muda sua
identidade substancial, transformando-se, por exemplo, o pão e o vinho, no
corpo e no sangue do Salvador.
“Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer
deste pão viverá para sempre. [...] Quem come minha carne e bebe o meu sangue
tem vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Pois minha carne é
verdadeiramente comida e o meu sangue verdadeiramente bebido. Quem come minha
carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu nele” (João - 6:51-56).
Recomenda-se aos desavisados, não falar mal dá
hóstia, representação viva do corpo de Cristo, devidamente guardada no
sacrário, ou das comidas de santos, ofertadas nos cultos, como, por exemplo, o
bolinho de feijão, frito no azeite de dendê, mais conhecido como acarajé,
comida preferida de Xangô, e de sua esposa, Iansã, se não quiser perecer por
toda a eternidade.
“No candomblé os deuses comem. Cada um tem sua
comida particular, de seu agrado
pessoal, de sua
preferência pessoal” ( Vivaldo C.
Lima - A anatomia do acarajé...). Segundo o babalorixá e antropólogo
Vilson Caetano, “não existe Candomblé sem comida. É uma religião que gira em
torno de comer...”. A cozinha, no Candomblé, torna-se um lugar de iniciação,
lugar de ensinamento e aprendizagem. Uma verdadeira universidade. Seus armários
são estantes, e cada elemento presente nesse espaço é como um livro, ávido para
ser lido e compartilhado. A cozinha transforma-se em um lugar sagrado, como se
fosse o coração do santo, um espaço de culto onde os homens preparam suas
oferendas, buscando agradar seus deuses e tê-los como seus cuidadores.
Em seu livro Santo Também Come,
Raul Lody esclarece os motivos que levam os homens a recorrerem à comida para
agradar aos deuses:
“Os motivos socializadores de se oferecer
comidas rituais aos deuses africanos ajudam no fortalecimento dos laços
religiosos e éticos que unem os adeptos das religiões afro-brasileiras,
contribuindo para o aumento do contato entre homens e deuses. O costume de
oferecer alimentos aos deuses reforça a fé e as identidades”
Os Orixás são exigentes, gostam dos alimentos
bem preparados. Têm paladares refinados. Quem deseja agradá-los e, em troca,
receber os seus cuidados, deve qualificar-se na arte da culinária sagrada. Para
não correr riscos, desejando agradar Iansã, filha de Iemanjá e Oxalá, amante de
Xangô, preparando-lhe um saboroso Vatapá, por segurança, melhor recorrer aos
ensinamentos de Dorival Caymmi, um Buda Nagô, segundo Gilberto Gil, com certeza
o resultado não desagradará os Orixás:
“Quem quiser vatapá, ô / Que procure fazer /
Primeiro o fubá / Depois o dendê / Procure uma nega baiana, ô / Que saiba mexer
/ Que saiba mexer... / [...] Bota castanha de cajú, um bocadinho mais / Pimenta
malagueta, um bocadinho mais... / [...] Amendoim, camarão, rala um côco / Na
hora de machucar / Sal com gengibre e cebola, iaiá / Na hora de temperar / Não
para de mexer, ô / Que é pra não embolar / Panela no fogo / Não deixa queimar /
Com qualquer dez mil réis e uma nega, ô / Se faz um vatapá...
Sinto-me estranho, vendo-me como
um ser de um outro planeta, quase um negador das iguarias dos deuses. Como ateu
que sou, não me submeto ao sacramento da
comunhão, momento no qual o cristão recebe o corpo e o sangue de Cristo; por outro
lado, mesmo vivendo na terra onde se cultuam vários alimentos, regidos pela
identidade do azeite, ele não faz parte do meu hábito alimentar. Mesmo morando
em uma cidade onde o acarajé é cultuado, não como um simples alimento, mas como
uma iguaria consagrada aos deuses, levo cinco ou seis anos sem apreciá-lo. A
culpa não é do acarajé, tampouco resultado de elitismo
alimentar da minha parte, é que, na verdade, não tive sorte, mesmo tendo
nascido na Bahia, nasci em uma região onde o azeite (de dendê) não faz parte da
culinária. Por aquelas bandas, bem longe do litoral, pouco se consumia frutos
do mar, no máximo, muito raramente, se consumia peixes de água doce, pescados
em algum rio da redondeza. Por outro lado, é uma região que sofreu muito pouco
a influência da culinária originária da África que, ao aqui chegar, misturando-se
à nova cultura, tornou-se a culinária afro-brasileira. Por muito tempo, essa
culinária me era desconhecida. Só a conheci aos quinze anos, quando meus
hábitos alimentares já estavam bem formados.
É claro que novos hábitos podem ser adquiridos
e velhos hábitos abandonados ou modificados, mas é preciso reconhecer: não é
tarefa fácil trocar de hábitos, renunciando a antigos afetos.
O hábito é conservador: gosta de permanecer,
resiste a partir, cria raízes profundas e se mantém resistente às mudanças. Com
o tempo, acabei me aproximando da comida à base de azeite. De vez em quando desfruto
de suas delícias, mas, para ser sincero, é um alimento que ainda não conquistou
completamente o meu paladar; ainda não me tornei seu devoto.
Não faz muito tempo, convidado a
visitar um terreiro de candomblé, em uma noite festiva, depois de admirar o
belo culto, lá pelas tantas, foi servido um caruru, com todos os seus sagrados
acompanhamentos. Não posso mentir: comi como um deseducado que, sem regras, sem
limites, comete o pecado da gula, dando ao corpo mais do que ele precisava.
“[...] jamais provou uma iguaria, jamais
degustou uma iguaria
quem sempre a
comeu com moderação (Walter Benjamin - Rua de mão
única).
Assim, anarquicamente, sem
devoção, mas com respeito, vou frequentando as igrejas, comendo do seu pão,
bebendo do seu vinho.
Bem, vamos voar para outro canto;
prefiro não adormecer à sombra das minhas preferências culinárias.
Querendo fugir de uma observação
particular, acabamos por cair em outra, agora sobre uma certa preferência dos
deuses. Falando neles, não se pode negar, sempre tiveram bom gosto. Não é por
outro motivo que os homens buscam imitá-los, tomá-los como referência na
condução de suas vidas.
Segundo a religião, pelo menos
para aquela na qual se sedimenta a formação cultural do Ocidente, o mundo
encontra-se duplicado. Em um dos Mundos, habita o homem, com suas faltas, seus
pecados, no outro Mundo, reina um Deus todo-poderoso, um Ser perfeito, total,
cheio, esférico, encarnação da ausência de qualquer falta.
O papel da religião é religar - religare
- esses dois mundos, levando de volta o homem para a sua casa originária,
aquela na qual ele vivia antes de sua queda, de sua expulsão do Paraiso. Cada
homem, condenado por sua falta, a viver no mundo do engano, da dor, do
sofrimento, deve, através de sua fé, buscar purgar as suas faltas,
purificando-se dos seus pecados, para que, ao final da sua caminhada, possa
retornar à casa do Pai, conquistando a vida eterna.
Se esta é a condição do homem, não
lhe resta muitas alternativas. Melhor tomar cuidado, mantendo-se perto dos
deuses, não se distanciando das suas promessas. Para não os ter como inimigo, o
homem busca agradá-los, colocando sobre o altar do sacrifício aquilo que eles
mais gostam de receber: “o pão da vida”. Os deuses não se contentam com pouco.
Não é um simples pedaço de pão que é ofertado aos deuses, não, ao contrário, é
“o pão da vida”, no limite, é a própria vida que é ofertada em sacrifício. É de
vida que os deuses se alimentam. “Se alguém vem a mim e não odeia seu próprio
pai e mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu
discípulo”. (Lucas, 14:26-27)
Como os deuses são exigentes, todo
sacrifício a eles dirigidos, devem obedecer aos preceitos indicados pelo livro
sagrado, ou através da força da cultura oral que, ao longo dos tempos, vai
transformando a tradição em leis. Fora dessas demarcações legais, a oferenda
pode não agradar aos deuses. E, neste caso, o sacrifício terá sido em vão. Esse
é um risco que nenhum devoto quer correr.
“Não oferecerei
coisa alguma que tenha defeito, porque não seria aceito em vosso favor... Não
oferecereis a iahweh animal cego, estropiado, mutilado, ulceroso, com dartros
ou purulento. Nenhuma parte de tais animais será colocado sobre o altar como
oferenda. (Levítico, 22:19-22).
“Nunca
sacrificarás para Iahweh teu Deus um boi ou uma ovelha com defeito ou
qualquer coisa grave: seria uma abominação para Iahweh teu Deus” (Deut.
- 17:1).
Onde muitos são os deuses, muitos
são os alimentos sagrados. Cabendo a cada deus, ou a cada divindade, na ordem
de sua relação com o sagrado, o alimento de sua preferência, aquele que mais o
deixa alegre.
O hinduísmo considera a vaca um
animal sagrado e desencoraja o sacrifício dos animais. Por essa razão, muitos hindus excluem carnes e
peixes de sua alimentação, adotando uma dieta baseada, sobretudo, em vegetais,
legumes, cereais, lentilhas, coalhada e leite. Com esse tipo de alimentação, busca-se
agradar ao seu Deus Supremo.
Se o devoto deseja agradar a
Krishna, não deve oferecer-lhe carne, peixe ou ovos, pois sua predileção recai
sobre alimentos simples e naturais – essencialmente vegetais. Uma mesa composta
desses alimentos certamente agradará Mohan
– um dos seus muitos nomes -, e o terá em sua cabeceira.
“Uma folha, uma flor, uma fruta ou
um pouco de água —
quem me oferecer com devoção, Eu aceito.” (Bhagavad Gita – 9:26)
O judaísmo, por sua vez, elabora o
seu cardápio alimentar, distinguindo os alimentos “puros” dos “impuros”,
segundo o que determina o Antigo Testamento. O povo de Israel deve se alimentar
de todo animal que tem “casco fendido e que ruminam”, deles tem origem os
alimentos puros. Entre os “alimentos impuros”, que devem ser evitados, estão, o
coelho, a lebre, o porco (que, apesar de ter o casco fendido, não rumina),
entre outros... Dos alimentos originários das águas doces ou salgadas, tudo que
tem barbatanas e escamas, pode ser consumido, todo o resto são alimentos impuros,
que devem ser evitados.
Posição diferente toma o
cristianismo. Já profundamente influenciado pelo iluminismo helênico, afasta-se
do irracionalismo pré-conceitual e aproxima-se do mundo do conceito, onde o
mundo da natureza começa a ser decifrado e organizado segundo a ordem da razão.
Se no Antigo Testamento, quem rege
é o Deus da força, “olho por olho, dente por dente”, como orienta Moises, Levítico,
24:19. O Novo Testamento, ao contrário, a força é substituída pelo amor, a
vingança, pelo perdão, como diz Mateus, 5:39: “Ouvistes o que foi dito:
Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao homem
mau; antes, àquele que te fere na face direita oferece-lhe também a esquerda”.
Revoga-se a velha lei. “O que se torna
antigo e envelhece está prestes a desaparecer (Hebreus – 8:13).
Em substituição à força, o amor
passa a ser a Lei que irá orientar a relação entre os homens, bem como a sua
relação com o Cosmo.
[...] e um deles, - a fim de pô-lo à prova - perguntou-lhe: “Mestre, qual é o maior
mandamento da Lei?” Ele respondeu: Amarás
ao Senhor teu Deus de todo o teu
coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Esse é o maior e o
primeiro mandamento. O segundo é semelhante a este: Amará o teu próximo como a ti mesmo. Desses
dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mateus – 22:35-40).
É a ascensão – ou a vitória - da
cultura sobre a natureza. Já não há mais espaço para o sacrifício físico de
homens ou animais em louvor aos deuses. O sacrifício se desloca, abandona o
mundo material e encontra sua nova morada no universo dos conceitos, no mundo
meta-físico.
Para a nova religião, aquela que
anuncia o Filho de Deus como o verdadeiro alimento do homem – não existem
alimentos “impuros”: o ser humano pode
alimentar-se de tudo o que Deus lhe ofereceu. A única indicação
restritiva ocorre em determinados dias do ano como na Páscoa, quando se celebra
a vitória de Cristo sobre a morte - em que o cristão deve abster-se de carne,
substituindo-as por peixe.
Fora essa prática, todos os
alimentos são considerados puros. O cristianismo liberta o homem dos antigos rituais
judaicos relativos aos abates de animais e ao consumo da carne. “Tudo o que se vende no mercado, comei-o sem
levantar dúvidas por motivo de
consciência” (1 Coríntios 10:25). Revoga-se a antiga lei e
inicia-se um novo tempo, regido por outros preceitos.
A visão de Pedro confirma essa
mudança: “Estava cheio de todos os quadrúpedes e répteis da terra e de todas as
aves do céu. E uma voz dizia‑lhe: Vamos Pedro, mata e come! De modo algum
Senhor! Nunca comi nada de profano nem de impuro. E a voz falou‑lhe novamente,
pela segunda vez: “O que foi purificado por Deus não o consideres tu impuro” (Atos
10:12,13)
O próprio Jesus já havia ensinado:
“Nada há no exterior do homem que,
penetrando nele, o possa tornar impuro; mas o que sai do homem, isso é o que o torna impuro. [...] Não entendeis que tudo o que vem de fora,
entrando no homem, não pode torná-lo impuro, porque nada disso entra no
coração, mas no ventre, e sai para a fossa” (Marcus: 7:15-19).
Com esse ensinamento, a nova
religião afirma sua nova Aliança com
outros povos, silenciando a antiga lei mosaica e abrindo-se às diversidades
culturais – inclusive às diferenças alimentares. Não há proibições sobre o que
se coloca à mesa do cristão; recomenda-se apenas evitar excessos, não se
associar aos glutões e alimentar-se com moderação, sabedoria e gratidão a Deus.
Como ensina a Escritura: “Portanto, quer comais, quer bebais, que façais
qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus” (1 Coríntios – 10:31)
Escrever é um caminhar constante, um
perder-se e reencontrar-se, para então se perder novamente... As fronteiras se
alargam e, sem perceber, nos distanciamos da referência que orientou o início
da investigação.
A intenção
original era refletir sobre a relação entre o alimento e a vida. Essa intenção
permanece. Esta é uma etapa; a próxima encontra-se na fornalha.
Serpenteando pelas
complexidades culturais, a humanidade vai trilhando o seu percurso, lutando
para preservar-se, sem deixar que lhe falte aquilo que é condição para a sua
própria existência: “o pão nosso de cada dia”.
Misturando
seus próprios temperos, cada sociedade constrói, por meio dos alimentos, sua
identidade cultural. Cada povo, imerso em seus sabores, afirma sua presença no
mundo, existindo como sociedade humana, abrindo portas, janelas e aromas para a
diversidade cultural.
Assim caminha
a humanidade, alimentando-se do mundo, fazendo-se mundo.







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