TRIBUTO A UM AMIGO
janeiro 31, 2025Prof. Dr. Joceval BitrencourtTRIBUTO
A UM AMIGO
Aos meus treze anos, morava em Feira de
Santana, uma cidade do interior da Bahia, estudava num dos seus melhores
colégios, reservado à elite que habitava naquele canto do mundo. Não pagava,
era bolsista. Não é fácil, pobre estudar entre ricos, tudo parece fora do seu
alcance, inclusive as amizades. Sentia-me um corpo estranho, convivendo entre
estranhos, para os quais eu era invisível. Não tendo nada a ganhar em sua companhia, os
garotos ricos buscavam evitá-lo. As garotas, por sua vez, correm dele como o diabo
foge da cruz. Diminuiria bastante o seu prestígio, junto aos garotos ricos, ser
vista na companhia de um garoto pobre. Naquele lugar, ser pobre era como ter uma
doença infectocontagiosa, uma espécie de lepra, da qual ninguém quer se
aproximar. Quando se tratava de convivências obrigatórias, aquelas que se
realizam nos trabalhos coletivos, em que a sala se divide em equipes para
desenvolver uma determinada tarefa de uma disciplina, a sua vida não se tornava
mais fácil, muito pelo contrário: quase sempre as coisas se complicavam, e sua
exclusão social só aumentava. Nos colégios de ricos, os trabalhos escolares são
muito caros, quase proibitivos para os pobres. Mesmo em equipe, cada membro do
grupo tinha que pagar a parte que lhe cabia nas despesas. Na formação das
equipes, eu nunca era escolhido. Parece que todos já sabiam que, na hora da
divisão das despesas, não podiam contar comigo. Eu era o último a ser
escolhido. No final, ao me ver sozinho e sem equipe, sempre aparecia uma alma
caridosa e me resgatava do pleno abandono. Eu, envergonhado, aceitava. É neste
momento que aparece um jovem, da mesma idade que eu, que, vendo-me excluído, me
resgatava, incluindo-me entre os que eram indiferentes a mim. Chamava-se
Salomão, não me recordo o seu sobrenome. Tornou-se o meu salvador. Encontrando
alguém para me salvar, ancorei-me nele, confiando em sua amizade. Ele era fruto
de uma família bem sucedida. Seu pai exercia um alto posto na Receita Federal,
tinha sido transferido de São Paulo para assumir essa função. Não era uma
família grande, era ele, uma irmã, o pai e a mãe. A mãe dele, muito generosa,
demonstrava não ter preconceito contra a minha pobreza, e sempre me acolhia com
alegria.
Não poucas vezes, fazendo tarefas
escolares com o seu filho, demorava-me,
de propósito, na esperança de que, quando a hora do jantar chegasse, eu ainda estivesse
por ali e fosse convidado a permanecer e
fazer a refeição com a família. Não demorou muito para que minha estratégia fosse
descoberta. Sabendo da minha esperteza, a mãe do meu amigo poderia ter me mandado
voltar para casa mais cedo, mas não era assim que ela agia. Pelo contrário,
passou a me convidar a permanecer para as refeições. Não bastasse isso, ao
final da refeição, quando chegava a hora de eu voltar para casa, sabendo que eu
iria fazer o percurso de volta a pé, ela pagava o meu transporte. Mesmo com o
dinheiro do transporte em mãos, sem que a mãe do meu amigo se desse conta,
voltava andando para casa, guardando aquelas poucas moedas para uma futura
necessidade ou mesmo para me presentear com algumas guloseimas compradas em um botequim
qualquer. Bem, voltemos ao colégio. Lembro-me que um dia, fui escolhido para
fazer parte de uma equipe que deveria apresentar um trabalho sobre a
Inconfidência Mineira. Tínhamos que construir uma forca na qual Tiradentes
seria representado sendo enforcado. De minha parte, sem problema, tudo seria
resolvido facilmente com material reciclado ou, no máximo, se quiséssemos algo um pouco mais elaborado,
bastariam duas folhas de isopor, alguns pedaços de madeira, um boneco de
plástico, facilmente encontrado no lixo, acrescentaria à ele um pouco de cabelo
e barba, feito com algodão, tingido de preto, com três pedaços de madeira,
coladas com tenaz, seria feito a forca, um pedaço de corda entrelaçado ao
pescoço do boneco, já devidamente vestido, completaria o trabalho. Assim, sem
muitos custos, teríamos dado conta do inconfidente republicano. Para minha
tristeza, minha sugestão não foi bem acolhida pelo grupo. “Aquilo era coisa de
pobre”, disseram eles. Queriam algo mais sofisticado, afinal, eles eram ricos,
e tal fato deveria ser evidenciado, inclusive na apresentação dos trabalhos.
Depois de algumas reuniões, chegaram a um consenso: a maquete seria feita por
um carpinteiro profissional. Essa decisão me deixou em pânico. Não tinha como
contribuir financeiramente. Já me via fora da equipe. Nesses momentos,
buscando-me proteger dessa, e de futuras humilhações, comecei a fantasiar a
ideia de abandonar aquele colégio. Sentia que aquele lugar não me pertencia. Na
pirâmide social, eu estava onde não deveria estar, encontrava-me no Vértice,
quando o meu real lugar era a base. Este era um pensamento só meu, não ousava
partilhar com ninguém. Se a minha mãe fosse capaz de decifrar os meus
pensamentos, com certeza eu seria levado ao pelourinho. Só na cabeça de um
desmiolado, sem nenhuma noção da realidade, poderia passar a ideia de abandonar
o melhor colégio da cidade, onde muitos desejam um dia estudar, para se
matricular em um colégio público, com certeza, no período da noite, já que
durante o dia teria que trabalhar. Antecipava a voz de minha mãe dizendo-me: “siga
em frente, onde já se viu ter vergonha? Pobre não pode se dar a esse luxo.” “Eis
que eu envio vocês como ovelhas no meio de lobos (Mt:10,16). Feito a
divisão, coube a cada membro da equipe o valor de cinquenta reais -
provavelmente este seria o valor nos dias de hoje. Não existia qualquer
possibilidade de eu pagar a minha parte. Coube ao meu amigo a função de
tesoureiro da equipe. Generoso que era, tentou me ajudar. Em vez de dividir o
valor do trabalho por cinco, que era a totalidade dos membros da equipe,
dividiu por quatro, dessa forma eu poderia participar do grupo sem precisar
pagar a minha parte. Tentar ludibriar os colegas não foi muito honesto da parte
dele, mas não o culpo: sua intenção era boa. Ele apenas queria encontrar uma
saída para ajudar o seu amigo pobre. A certeza de que estava fazendo uma boa
ação aliviava o peso de sua consciência, não sentido remorso pela transgressão
ética que estava cometendo. Estava agindo com a ética de Robin Hood: roubando
dos ricos para dar aos pobres. De minha parte, sem alternativa para sobreviver
na equipe e não ser reprovado na disciplina, fiz-me cúmplice da ilicitude,
silenciando-me. Para minha tristeza, e maior vergonha ainda, a trapaça foi
desmascarada. Depois de uma reunião entre eles, da qual, para preservar um
pouco de dignidade que ainda me restava, não participei, tomaram uma decisão:
eu deveria pagar a minha parte; caso contrário, seria excluído da equipe.
Simples assim: quem pode participar, participa, quem não pode, fica fora. Em
nenhum momento a minha pobreza sensibilizou aquelas jovens almas. Minha pobreza
não era de responsabilidade delas. Liam o mundo segundo às suas próprias
conveniências. Não seriam eles quem iriam fazer correções no destino que Deus
traçou para cada um dos seus filhos. Não tendo a quem recorrer, já antecipava a
minha reprovação na disciplina. Salomão, que teria sido voto vencido na
reunião, compadecendo-se de mim, mais uma vez, veio ao meu socorro. Sem que eu
soubesse, levou ao conhecimento de seus pais o drama pelo qual eu estava
passando. O pai dele, tão generoso quanto o filho, de imediato assumiu a minha
dívida, não me deixando ser excluído da equipe. Sua ajuda veio acompanhada de
uma recomendação: que nenhum membro da equipe tomasse conhecimento do ocorrido.
Tudo deveria parecer normal, cada qual pagando a cota que lhe coube na divisão.
Assim, além de pagarem a minha dívida, evitaram que o triste fato se
espalhasse, primeiro entre os membros da equipe, e depois entre todos os alunos
da turma, protegendo-me do triste olhar de piedade que, com certeza, viria em
minha direção. Mesmo muito envergonhado, por pura necessidade, continuei a
frequentar a casa desse meu amigo. Apesar do ocorrido, a família dele continuou
me tratando com muito carinho, indicando que aprovava a amizade entre o seu
filho e mim. No Natal, davam-me presentes e ainda mandavam presentes para os
meus irmãos. Eram pessoas, de fato, generosas. O engraçado de tudo isso é que
esse meu amigo nunca conheceu onde eu morava, sempre que a possibilidade
surgia, eu inventava desculpas para que tal fato não ocorresse. Não queria que
o meu amigo rico, que morava em uma bela casa, em um condomínio de luxo,
colocasse ao alcance dos seus olhos a pobre casa onde eu habitava. Não demorou
muito, nos separamos. Comecei a trabalhar, troquei de colégio, fui para a
escola pública. Salomão permaneceu entre os seus iguais, eu, voltei para o meu
mundo, peguei o meu ônibus, fui ser cobrador na vida. Começava ali a minha
relação formal com o mundo do trabalho. Pela primeira vez, tive a carteira de
trabalho assinada por uma empresa de transporte coletivo.
Segundo Aristóteles, a amizade nos aproxima do divino. Somente os amigos
verdadeiramente desinteressados desejam o bem do outro como se fosse o seu
próprio. Entre eles, a vida é compartilhada, e suas almas se unem em uma só.
São, de fato, uma única alma habitando dois corpos.
A amizade surge da identificação
entre almas, algo raramente encontrado. Somente por meio desse encontro o homem
pode tornar-se pleno. Essa é uma conquista das almas virtuosas, pois apenas
elas são capazes de conhecer e desfrutar da verdadeira felicidade.
A amizade que a vida me reservou com
aquela criança de 13 anos não era racional; era pura, ainda não mediada pelas
dores do mundo. Se essas dores estivessem presentes — e estavam —, ainda não
tínhamos plena consciência delas. Éramos apenas duas crianças em condições
sociais distintas, que, em determinado momento da vida, uma delas compartilhou
com o seu amigo pobre o que de mais divino a alma pode oferecer: a
generosidade.
Minha relação com Salomão durou
pouco, apenas um ano, correspondente ao ano letivo. Não sei qual é a medida
adequada para mensurar o tempo da felicidade. No meu caso, foram 365 dias —
tempo suficiente para descobrir que, apesar dos desencantos do mundo em que eu vivia,
nem tudo estava perdido. Era possível ter um pouco de otimismo, acreditar que,
para além daquele feio tempo, existiria um mundo onde almas nobres, como a
daquele garoto pudessem habitar. Acreditar nessa possibilidade tornava o meu
amanhã menos sombrio.
A
vida seguiu em frente. Achei que nunca mais voltaria a encontrar aquele bom
amigo. Eis que, já devidamente instalado em minha nova profissão — cobrador de
ônibus —, num dia qualquer, medido pela ampulheta do acaso, em uma parada da
vida, dois adolescentes, acompanhados de uma moça, entraram no ônibus. Fiquei
um pouco aflito: Salomão e sua irmã acabavam de subir no ônibus em que eu
trabalhava como cobrador.
Não posso negar: a presença deles me
deixou envergonhado. Era como se eu já não pudesse mais esconder minha pobreza
— agora, ela estava escancarada. Eles não precisavam mais imaginar; estavam ali,
testemunhando-a, vendo-a com os próprios olhos. Quis sumir, desaparecer do
olhar daqueles dois adolescentes. Naquele instante, desejei o silêncio
absoluto. Nele, eu me esconderia e me protegeria. Bastava a dor física da
vergonha que acompanhava a tragédia encenada naquele palco. Temendo que Salomão estranhasse – e reprovasse
– o lugar em que me encontrava, antecipei as dores que o punhal de suas
especulações poderia causar em mim: “Você, cobrador de ônibus? Foi esse o
lugar que você conquistou na vida? Será cobrador para sempre? Que triste fim!”.
Fiquei mudo, com o olhar e a alma
acabrunhados. Mas não — ao contrário. Aquele jovem era tão generoso que me
acolheu com um largo sorriso, demonstrando a alegria sincera de reencontrar um
amigo. Naquele instante, a amizade e a generosidade venceram o preconceito.
Eu era, de fato, para ele, um amigo —
e minha profissão pouco lhe importava. Seus lábios sorriam, e seus olhos
dançavam em festa ao me ver. Aquela recepção calorosa me despertou, arrancando
de mim um fiapo de sorriso envergonhado, mas sincero, pela alegria de revê-lo.
Não houve diálogo entre nós - sem
perguntas, sem respostas. Até nisso, aquele garoto foi generoso. Apesar da
pouca idade, compreendeu que, naquele momento, eu me sentia constrangido por ver
minha pobreza exposta publicamente, revelando a disparidade social entre a
minha vida e a dele. O seu silêncio foi um gesto de acolhimento.
Não que eu sentisse vergonha de ser
cobrador — ao contrário, tinha certo orgulho. Era um pobre exercendo uma função
social reservada aos pobres. Nada de revolta, nenhuma rebeldia contra Deus,
que, ao organizar o mundo, me destinara esse lugar. O que me envergonhava, era apenas
aquela situação: um amigo rico olhando para mim e vendo-me como um pobre. Fora
isso, eu não poderia renegar aquele trabalho – ele foi muito importante em
minha vida. Primeiro, porque ajudava a sustentar a família; depois, porque, quando
fui demitido, a indenização permitiu quitar várias prestações atrasadas da casa
onde morávamos, comprada por minha mãe em infinitas parcelas.
Saber que Salomão não me julgava, que
não recriminava a profissão que eu exercia, me deu certa energia. Fez-me
resgatar um pouco da dignidade que ainda me restava. Recompus-me e assumi a
autoridade de um cobrador de ônibus.
A moça
que os acompanhava — provavelmente a babá —, sem entender o que estava
acontecendo, surpreendeu-se quando, transgredindo as normas da empresa, deixei
de cobrar as passagens dos dois adolescentes e os autorizei a passar por baixo
do torniquete, sem registro.
Nunca
vi dois adolescentes tão alegres. Era uma verdadeira festa. Estavam, de fato,
tendo sua primeira experiência de “pobres”: pegar um ônibus — o que nunca
faziam —, passar por baixo do torniquete, cometer uma pequena transgressão,
daquelas que os pobres amam.
Eles,
que viviam nos palácios da burguesia, experimentavam a curiosa sensação de
brincar no mundo dos pobres. Vivíamos, de fato, em mundos diferentes: eles
brincavam, eu trabalhava. Eles seguiriam, voltariam para seu mundo encantado;
eu permaneceria no meu, áspero, cinzento, sem encantos. O que para eles era
aventura, para mim era apenas mais um dia de luta pela sobrevivência.
Ainda
assim, naquele instante, senti-me feliz em vê-los felizes. Para eles, era um
dia de festa, cheio de descobertas. Talvez estivessem ansiosos para voltar para
casa e narrar, entre risos e exageros, a seus amigos ricos, a “aventura” de
terem sido pobres — por um breve momento.
Três ou quatro pontos depois, eles
desceram. O ônibus já seguia quando me voltei e vi Salomão pela última vez: sorria
com a pureza de uma criança e me acenava um adeus que o tempo não conseguiu
apagar.
Não mais encontrei aquele jovem
generoso. Décadas já se foram, mas jamais me esqueci da bondade daquele garoto
que, à época, ainda era apenas uma criança. Pergunto-me: onde estará ele hoje? Terá
formado uma família? Quantos filhos terá? A vida foi generosa com ele? Espero
que sim - ele merecia.
Sei que tudo não passa de um devaneio, mas
inúmeras vezes imaginei encontrá-lo por acaso, reconhecê-lo e, enfim, ter a
chance de agradecer-lhe por sua magnanimidade. Seu belo gesto tornou-se uma
inspiração em minhas caminhadas. Ao longo da vida, busquei tratar os outros da
mesma forma como, um dia, o Nobre Salomão me tratou.






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