MILTON SANTOS - UM FILÓSOFO DA GEOGRAFIA
janeiro 31, 2025Prof. Dr. Joceval BitrencourtMILTON SANTOS
Um filósofo da Geografia
Convidado para ministrar um Curso de Filosofia para
professores de Geografia, aceitei. Eram alunos matriculados no curso de
Licenciatura em Geografia. Aquele curso buscava corrigir uma grave deformação
na educação brasileira: conduzir professores a ministrar disciplinas que não
fazem parte de sua formação acadêmica. Assim, encontramos professores de Filosofia,
cuja graduação é em Biologia, professores de Português, cuja graduação é em
Pedagogia, professores de Geografia, cuja graduação é em Letras. Uma triste
constatação: professores sem formação, sendo “formadores”. Fruto de uma aberração
na educação: a preocupação com a composição da carga horária de cada professor,
antecede à preocupação em saber se ele se encontra, ou não, habilitado para
ministrar o conteúdo de uma determinada disciplina. A consequência disso é que,
com frequência, encontramos professores ensinando Física, sem conhecimento de
Física, professores ensinando Inglês, sem domínio da língua de Shakespeare, ensinando
Português, sendo estranho à Pátria de Fernando Pessoa: “Minha Pátria é minha
língua.” E como conseguiam ministrar suas aulas? Na maioria das vezes, ancoravam-se
no famoso livro didático do professor, encaminhados pelas editoras. O
material já vinha pronto, com o conteúdo da disciplina, exercícios dos assuntos
e, pasmem, com suas respectivas respostas. Se, por peraltice, um aluno
subtraísse aquele livro/guia, coitado, o professor estaria em apuros. Naquele
dia, com certeza, não haveria aula. Quem inventou o livro guia do professor,
deveria, para o bem da educação, ser preso, pegando uma severa pena. Aqueles
professores/alunos exerciam à docência ilegalmente, pois não eram portadores de
uma Licenciatura na área. O pecado tornava-se ainda mais grave. Aqueles professores/alunos
não possuíam nenhuma formação superior, nem Licenciatura nem Bacharelado. Simplesmente concluíram o Ensino Médio e se
tornaram professores. A maioria estavam há mais de quinze anos em sala de aula.
Por crime tão grave, quem deveria ser punido?
O professor ou o Estado? Uma triste constatação: aqueles
alunos/professores adquiriram estabilidade funcional, iriam exercer aquela
atividade até a sua aposentadoria. Para dizer a verdade, estavam fazendo aquele
curso de qualificação, muito mais interessados em conquistar um adicional
financeiro em seus salários, melhorando os proventos de suas próximas aposentadorias,
do que preocupados em sua qualificação profissional. Não era por vontade
própria que estavam ali. Buscavam apenas corrigir uma ilegalidade, atendendo as
determinações da LDB - Lei de Diretrizes e Bases
da Educação, que, no seu
Artigo nº 62, exige expressamente: “A formação de docentes para atuar na
educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura plena,
admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação
infantil e nos cinco primeiros anos do ensino fundamental, a oferecida em nível
médio, na modalidade normal.” Carregar aquele curso era um verdadeiro
sofrimento. Tinham perdido o hábito de lidar com conceitos. O exercício do
pensamento é exaustivo, um verdadeiro parto, tanto do corpo, quanto da alma. “Pensar
dói”, é o que nos diz Platão. Todo processo de aprendizagem é demorado, cheio
de armadilhas, subidas de montanhas e decidas de vales... Não é tarefa fácil
aprender a aprender. Tudo é muito lento e demorado. Antes de contemplar o sol,
é necessário aprender a identificar o seu reflexo nas águas. Diante dessas e de outras dificuldades que as
circunstâncias da vida vão imponto a cada um em sua caminhada, muitos alunos
desistem do curso, abandonando o caminho dos livros. O que vale para aquela
turma, vale para a Bahia, o Nordeste e o Brasil. A educação brasileira
encontra-se em crise. Aqui cabe a pergunta? Quando ela não esteve em crise? “A
crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto” (Darci Ribeiro). Claro que existe exceções. Aqui e ali,
encontra-se guetos de ensino de boa qualidade, mas ela custa caro, pertence a
uma elite privilegiada, não é de responsabilidade do Estado. Essa exceção só
confirma a regra. A crise na educação, amplia, ainda mais, as diferenças entre
as classes sociais. A tragédia está aí. É um fato, não uma especulação. Quem
são os responsáveis? É preciso identificá-los para responsabilizá-los. Eles não
aparecem. Protegem-se nos labirintos da burocracia do Estado, escondem-se,
negam suas responsabilidades, mesmo quando suas digitais estão na cena do
crime.
Desviamos da rota original. Voltemos a ela. No nosso
primeiro encontro com aquela turma, busquei, através da Filosofia, conquistá-la,
seduzindo-a para a arte de fabricar conceitos. Posso estar errado, mas acredito
que esse deve ser o primeiro movimento do professor com seus alunos: seduzi-los,
encantá-los. Feito isso, sua tarefa fica
mais fácil, leve e prazerosa. A sala de aula deve ser um lugar de afetos
positivos, afetos que sejam facilitadores ao exercício do pensamento. Todo
afeto que impede a mente de pensar, é um afeto negativo, “mau ou nocivo”, como
nos ensina Spinoza. Não acredito que seja uma boa didática o professor chegar
em sala sisudo, mal-humorado, assustando os seus alunos, indicando ser mais um
ditador/disciplinador, do que um professor que busca compartilhar
conhecimentos. O medo não aproxima; pelo contrário,
distancia. Naquele dia, ao
final da aula, pelo brilho nos olhares, pela curiosidade e participação, tive a
impressão de que acabara de conquistar aqueles alunos para o exercício do
pensamento. Confiante da conquista feita, aproveitando os ventos favoráveis,
passei a tramar uma atividade didática. Sou
um devoto dos livros. Com eles comecei minha caminhada e, na companhia deles,
desejo concluí-la. Natural então que eu começasse aquela aula falando sobre a
importância do livro para a formação do homem. Como estava lidando com
professores, essa importância tornava-se ainda maior. Depois de falar do livro
em geral, procurei, na área de formação dos alunos, um ou dois pensadores de
relevância para trabalhar. Como encontrava-me entre professores de Geografia, o
escolhido foi Milton Santos. Não que eu
fosse ministrar aulas sobre ele. Faltava-me conhecimentos para tanto. Mas,
apesar de não o conhecer, tenho por ele um bom encantamento. Não só pela sua
trajetória política, mas por tomar conhecimento de sua importância para os
estudos da Geografia no Brasil e no Mundo. Admirava-o mais ainda, por ter
levado a Filosofia para a Geografia: “O geógrafo é antes de tudo, um
filósofo”. Incitava ao geógrafo a
responsabilidade de exercer o pensamento crítico/filosófico no trato com a sua
área de conhecimento. O geógrafo não deve transferir essa responsabilidade para
os filósofos profissionais; ao contrário, deve construir uma Filosofia da Geografia,
uma tarefa de sua inteira responsabilidade. Na companhia de Milton Santos,
falando para geógrafos, achei que estava no “céu” acadêmico. Pensei que estaria
falando sobre um pensador que, por dever de ofício, aquela turma já conhecia e
admirava. A aula seria uma festa; dançaríamos com alegria. Infelizmente, não
foi o que aconteceu. Se eu fosse um pouco versado em futurologia, antecipando a
resposta, não teria feito a pergunta: - Alguém aqui conhece a obra de Milton
Santos? A resposta obtida foi um grande silêncio. Assustado, resolvi diminuir a
extensão da pergunta: - Alguém aqui já leu um livro de Milton Santos? Silêncio
total. Resolvi então conversar com a turma. Não demorou muito para descobrir
que, de fato, aquela turma de professores de Geografia nunca tinha lido um
livro de Milton Santos. Mais que isso, sequer conheciam esse ilustre pensador
baiano. Um pensador – geógrafo, escritor, cientista, jornalista, advogado,
professor universitário -, conhecido e laureado no Mundo. A ele, entre outros
prêmios, foi concedido o Prêmio Vautrin Lud, maior prêmio no campo da
geografia, equivalente ao Nobel da Geografia”, único geógrafo da América Latina
a conquistar tal glória. Nas terras da Bahia, começou a traçar sua longeva cartografia
acadêmica. Em 1948, aos 22 anos, escreveu seu primeiro livro: Povoamento da
Bahia; em 2001, em parceria com Maria Laura Silveira, escreveu seu último
livro: O
Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Entre a partida e a chegada, escreveu mais de cinquenta
livros autorais - Por
uma geografia nova (1978), Pobreza
urbana (1978), O espaço dividido (1979) ... -, se for contar os que foram escritos em
parcerias, chega-se a quase sessenta livros, publicou mais de 250 artigos em
Revistas do mundo afora.
De Brotas de Macaúbas - Chapada Diamantina -, para o
Mundo... Professor da UFBA, Sorbonne, Columbia, Toronto, Dar es Salaam, USP... Era
um intelectual livre. Recusava-se a se enquadrar em qualquer sistema político,
não importando sua tonalidade. Não aceitava colocar o seu pensamento a serviço
de um quintal qualquer, negava-se a empunhar uma bandeira, prestando-lhe
devoção. Como um livre pensador, identificava os seus estranhos voos: “Eu
me considero um intelectual "outsider", coisa que é raro no
Brasil: não pertenço a partido, grupos intelectuais, não respondo a nenhum
credo, não participo de qualquer militância”.
Bem, esse era o intelectual da Geografia que aqueles
professores/alunos diziam não conhecer? Fiquei triste por eles. Sem o
conhecimento desse pensador, tornavam-se quase analfabetos da geografia. Seus
voos eram breves e curtos.
Testemunhando este sombrio fato, me veio à mente o
ocorrido com Stefan Zweig - judeu/austríaco –, que, morando no Brasil em 1942
junto com a sua esposa, se suicidou, e, com essas palavras, concluiu sua carta de despedida: “Eu,
demasiadamente impaciente, vou-me antes” -,
quando, “num navio italiano, [...] de Génova para Nápoles”, um marinheiro, de nome Giovanni, dele se aproximou:
“Foi então que ele surgiu de repente, se plantou diante
de mim e, com um sorriso de orelha a orelha, me mostrou com orgulho uma carta
amarrotada que acabara de receber, pedindo‑me que lha lesse... Não percebi logo o que
ele pretendia de mim...
provavelmente, [queria] que
eu lhe traduzisse a mensagem para italiano... Mas não, a carta fora
escrita em italiano. O que queria ele, então? Que eu a lesse? Nada disso…
queria que eu a lesse em voz alta, e repetiu o pedido quase com violência.
Subitamente, fez‑se luz no meu espírito... Aquele rapaz não sabia ler. Era
um analfabeto... Na
ocasião, dei‑me conta de que não conhecera ainda ninguém como ele, um exemplar
de uma espécie em vias de extinção...”
O intelectual austríaco, senhor de um saber espalhado e reconhecido pelo
mundo, sentiu-se chocado ao constatar que em algum lugar do mundo, ainda tinha
gente que não sabia ler, gente que se encontrava fora do processo
civilizatório. Subtraíram daquele homem o direito de ter acesso ao mundo. “Efectivamente,
graças ao livro, ninguém está mais inteiramente isolado e enclausurado no seu
próprio campo visual, podendo antes participar em todos os acontecimentos
presentes e passados, em tudo o que a inteira Humanidade pensou e sentiu. Todos ou quase todos os
movimentos de ideias do nosso tempo têm a sua base no livro, e aquela
configuração partilhada da vida que está acima do plano material e a que damos
o nome de cultura seria impensável sem a presença dele” (Stefan Zweig).
Aqueles professores/alunos não conheciam Milton
Santos? Que triste! Em relação à Geografia, estavam fora do processo
civilizatório. Encontravam-se prisioneiros de sombras, ainda não tinham
contemplado o sol. Naquele momento,
resolvi tomar uma providência. Não poderia, depois de ouvir o que ouvir,
silenciar-me, fazendo-me cumplice de tão grande pecado acadêmico. Usei as armas
que tinha, para combater o monstro da ignorância – ignorância aqui, não em seu
sentido pejorativo, mas no sentido daquele que ignora. A turma tinha trinta
alunos. Negociei com os pontos que tinha na minha algibeira. Falei para ele, o
seguinte: - Para cada livro – livro físico, claro! - de Milton Santos comprados
e apresentados, o aluno terá um (1,0) ponto de bonificação, sendo que a
totalidade dos pontos não poderia ultrapassar três (3,0) pontos, ficando o
aluno com a responsabilidade de, no final do semestre, apresentar para a turma
um breve resumo do livro lido. Foi o que aconteceu. O final foi uma festa. Para
minha surpresa, todos estavam amando Milton Santos. Claro, era um amor
infantil, amavam, amavam..., sem ainda conhecer as dores do amor.
Nos separamos. Não sei os caminhos que eles tomaram, nem
para onde levaram o seu canto... Bem, isso pouco importa... Já me dou por
realizado se um dia qualquer, dando aulas de Geografia, um daqueles professores/alunos,
perguntar aos seus alunos: - Vocês conhecem Milton Santos?
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