ATENAS/FLORENÇA
fevereiro 04, 2025Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
Tudo que se apressa
será logo passado; somente o que fica, só ele nos inicia. (Rilke)
Quando um simples
fenômeno cultural é capaz de causar danos na alma de alguém, é porque, de
alguma forma, a alma desse alguém foi moldada com a argila desses fenômenos da
cultura. Em algum momento, eles se encontraram, estabeleceram vínculos,
uniram-se, tornaram um só, forjaram-se, compartilhando um mesmo chão cultural,
tornando-se impossível separá-los.
Somos ocidentais, como
consequência, somos gregos. É nesse canto do mundo que nós, ocidentais,
encontramos nossa nascente cultural. Quem sabe, aí esteja a causa do cuidado
que se deve tomar. Mexer nos fenômenos culturais, é mexer com a nossa alma, e
vice-versa. Melhor deixar tudo ancorado no silêncio, repousando nas camadas
mais profundas das nossas memórias afetivas.
O que aconteceu comigo pode ter acontecido com
outras pessoas. No entanto, sempre soube que as dores são particulares: cada um
as sente nas camadas mais profundas e silenciosas da singularidade de sua alma.
Sei que não encontrarei, nas dores alheias, um alívio para as minhas.
Consciente disso, olho-me, cuidando de minhas próprias feridas, sem, é claro,
desmerecer as dos outros.
Desde o dia em que, aos
meus vinte e poucos anos, assisti, pela primeira vez, a uma aula de filosofia,
na qual o professor falava sobre os filósofos da natureza, identificados como
pré-socráticos, passei a habitar o mundo grego. Em uma terra distante e
estranha à minha, como um caminhante errante sem lar, encontrei no solo grego o
refúgio ideal para erguer minha morada.
De início, era apenas uma morada provisória
que, com o passar do tempo, foi se tornando a principal morada do meu espírito.
Mesmo assim, por diversas vezes, precisei abandonar aquelas terras em busca de
outras. Contudo, sempre que o fiz, agi como um turista: visitei novas terras,
mas com a passagem já comprada para retornar à terra de Apolo.
Sim, de fato, a Grécia
real eu não conhecia, convivia com a Grécia ideal, aquela que nascia dos meus
encantamentos, dos meus pueris delírios filosóficos, aquela que os livros me
ensinavam. Através dos seus pensadores, conheci sua geografia, sua cultura, seus
deuses, seus delírios conceituais. Ao longo de minha caminhada, convivi mais
com os gregos do que com qualquer outro povo do mundo. Me orgulhava de conhecer
as tramas urdidas entre os deuses, semideuses e mortais. Presenciei Homero
recitando os versos de Ilíada e da Odisseia pelas feiras das
cidades. Com alegria, vi Prometeu roubar o fogo de Zeus, devolvendo-o à
humanidade, libertando-a das trevas. Encontrei-me presente quando Aquiles e
Ulisses, tramando contra os troianos, rabiscavam na areia da praia o modelo do
cavalo da traição. Conhecia a Ágora, o mercado, Delfos, lugar de Apolo,
Atena, e seu templo. Estive presente no julgamento de Sócrates. Recordo-me de ter avistado, no fundo da sala,
um jovem de olhar atento e penetrante, com a expressão de quem já dominava a
arte de fabricar conceitos. Depois, ao me informar sobre quem era aquele jovem,
descobri que se tratava de Platão, um dos alunos de Sócrates. Em silêncio, acomodado
em um canto da casa de Agatão, testemunhei Sócrates negar o seu amor a
Alcebíades, enquanto transmitia o que aprendera sobre o amor com os
ensinamentos da sacerdotisa Diotima. Por pouco, movido pela indignação de um
bárbaro, não avancei sobre o escravo que preparava o cálice da morte para
Sócrates. Vi quando Platão, pela primeira vez na cultura ocidental, duplicou o
mundo, instalando em um deles o lugar seguro e certo para o conhecimento da
verdade... Vi Aristóteles renunciar às ideias de seu mestre e instalar a
verdade na identidade substancial do mundo sensível. Vi o Cínico Diógenes
renunciar às benesses do mundo, indo fazer sua morada em um barril... Vi a derrota dos atenienses para os
espartanos na guerra do Peloponeso... Presenciei o discurso fúnebre de Péricles, no
qual, além de enaltecer outras grandes conquistas, ele se orgulhava de viver em
uma cidade imitada por todos, mas que não imitava ninguém. Uma cidade que, em
suas praças públicas, inventou a democracia - um regime político no qual todos
os homens obedecem às mesmas leis, são tratados como iguais e avaliados segundo
seus méritos, independentemente da classe social.
Tudo o que ouvia era um canto ao meu espírito.
Minha alma, naquele canto do mundo, bailava em festa. Aquela era a minha casa,
aquela era a patria que eu escolhera para a formação do meu espírito.
Foi com grande tristeza que vi ruir o século
de Péricles, levando por terra as conquistas da democracia. Depois daquele dia,
Atenas nunca mais foi a mesma. O novo governo – a "Tirania dos
Trinta" e seus sucessores – solapou os alicerces democráticos, apagando as
luzes do governo do povo.
Presenciei Platão, decepcionado com os novos
rumos políticos impostos à cidade, partir, levando a sua filosofia para a
outros cantos do mundo...
[...] não muito tempo, cairam os trintas e
todo o governo dessa época. [...] A corrupção
dos artigos das leis e dos costumes alastrava tão espantosamente, que
eu, que de início estava pleno de ímpeto para realizar o bem comum, olhando
para eles e vendo-os sendo completamente levados de qualquer modo, acabei em vertigem. [...]
Foi tendo isso em mente que cheguei à Itália e à Sicília pela primeira vez”.
(Platão – Carta VII, 324c;326a,b)
Não demora muito, e os romanos chegam,
incorporando Atenas ao seu império... Os caminhos estão abertos para os futuros
conquistadores. O cristianismo, buscando ampliar seu rebanho, desembarca nas
terras helênicas, trazendo consigo o culto a um "Deus desconhecido" -
um Deus que prometia salvar todos os homens, desde que renunciassem a este
mundo e o servissem como um escravo serve ao seu senhor.
Atenas perdeu seu brilho; deixou de ser um
espelho para o mundo. Seus saberes foram assimilados por outras tradições, que
os transformaram e os utilizaram para fundamentar e garantir visões de mundo
alheias aos seus saberes originários.
Não me sentindo
confortável com um feio tempo que se anunciava, hibernei no passado, à espera
de dias melhores. Não demorou muito, tomei conhecimento de que, em outro canto
do mundo, homens curiosos estavam provocando uma verdadeira revolução em todos
os campos do conhecimento: na política, na ciência, nas artes, na filosofia...
Com novas ferramentas, buscavam fabricar um novo mundo. O velho mundo, já sem
forças para resistir às novas conquistas, foi gradualmente perdendo seu espaço
e mergulhando no silêncio. Em seu lugar, um novo cosmo estava sendo forjado. O
Mundo Moderno começava a se anunciar.
O homem voltou a afirmar-se, assumindo a sua
maioridade. Tornando-se cuidador de si, reconquistou o direito de ser o inventor
da verdade e guardião do mundo. A razão tornou-se
independente da religião. Assim como a razão grega, que um dia se libertou dos
deuses, a razão moderna encontrou o seu território: livrou-se de um mundo
encantado e divino, e estabeleceu, no mundo natural, que se deixa traduzir em
linguagem puramente matemática, os limites de suas verdades e ações.
Agora, livre e
navegando por mares exclusivamente humanos, o espírito ancorou-se em terra
firme, trazendo para si a responsabilidade de inventar um novo mundo, no qual
ele é o senhor. Animado com as boas novas, despertei, arrumei minhas malas e fui
visitar aquele sol que prometia libertar o homem de sua longa noite de trevas.
Ao longo da vida,
fixei morada nessa nova cidade. É claro que, no que se refere ao conhecimento,
você pode deixar a Grécia, mas ela nunca deixa você. É a primeira morada, a
morada que fica para sempre. Mesmo que por foça das circunstâncias, você venha
a visitar outras terras, mesmo que seja por um bom tempo, como foi o que
aconteceu comigo, pouco importa, essa nova terra é uma segunda ou terceira
terra, a primeira, a sua terra originária é Atenas, aquela que lhe acolheu e
orientou, aquela que pela primeira vez tornou-se a sua morada, alicerces sobre
os quais todas as futuras moradas serão erguidas. Todo esse percurso, apesar de
longo, quase uma vida, encontrou-se no mundo dos livros, no território das
ideias.
Chegara a hora de tocar os pés nas terras de
Homero e Hesíodo — a mesma terra escolhida por Sócrates para cumprir sua missão
filosófica. Queria conhecer o solo no qual a Paideia
ocidental nascera. Paulo dirigiu-se ao povo helênico com o objetivo de
apresentar-lhes o novo Deus — “o Deus desconhecido”. Eu, diferente de Paulo,
estava indo a Atenas para conhecer o lugar onde habitaram os deuses, e o solo
onde foi plantado — e germinou — o mundo no qual vivemos.
Queria conhecer o solo em que nascera a Paideia
ocidental. Paulo dirigiu-se ao povo helênico com o objetivo de apresentar-lhes
o novo Deus — “o Deus desconhecido”. Eu, diferente de Paulo, seguia para Atenas
em busca do lugar onde habitaram os deuses e do solo onde foi plantado — e
germinou — o mundo no qual vivemos.
Poderia dizer: “Vim a Atenas para conhecer a
Paideia grega.” Mas, em certa medida, essa eu já conhecia dos livros. O que
eu buscava, de fato, era conhecer — com todos os meus sentidos e, claro, com um
pouco de sabedoria — a terra que, sem que eu tivesse plena consciência, um dia
escolhi como morada do meu espírito.
De certa forma, aquela
visita representava um acerto de contas — um encontro entre duas Atenas: uma,
fruto dos meus delírios solipsistas; a outra, real e concreta. Buscava
compreender, ainda que nos limites do possível, até que ponto seria viável — se
é que seria mesmo — um encontro entre a Atenas que habitava meu mundo subjetivo
e a Atenas histórica, que, apesar da distância de mais de dois milênios, ainda
deixava suas marcas e odores nas vielas, ruas, praças e paredes impregnadas
pelo tempo cultural do qual nos tornamos herdeiros.
Aqui estava eu:
desembarcando do trem das ideias, na estação da realidade.
A Atenas que conhecia,
conheci-a através da cartografia que me foi apresentada por Homero, Tales,
Sócrates, Platão, Aristóteles, Péricles... A Florença que conhecia, me foi
apresentada por Galileu, Maquiavel, Dante, Michelangelo... Enquanto habitei
esses dois mundos, não tenho o que reclamar, fui feliz. Apesar de serem mundos
puramente ideais, sobre os quais, da realidade dos fatos, só tomei conhecimento
pelo que ouvia contar. Contentava-me com os modelos ideais, com eles construía
os meus castelos. Habitava a região superior que Platão me ensinou. Lugar onde,
superando a transitoriedade das imperfeiçoes do real, se alcança, no puro
exercício da razão, as essências, fundamento único de todas as verdades.
Contentei-me em contemplar o mundo das ideias. Deveria ter permanecido nessa
confortável região superior. Se tudo estava bem, se eu acreditava nas minhas
fantasias, se, através delas, coloquei ordem em meu mundo particular, por que
buscar compará-lo com o mundo real? Não seria correr um grande risco? Ainda
poderia não ter a resposta para a minha pergunta, mas ela desinstalou-me de uma
certeza e instalou-me uma dúvida, uma provocação: não estava na hora de
conhecer esses dois mundos, que tanta importância teve em sua vida? Se quer
viver em paz, não deixe a suspeita fazer morada em sua alma. Não tomei o devido
cuidado, acabei deixando-me levar pela dúvida. Fui em busca de uma resposta.
Como bem diz o cancioneiro popular: “abandonei o céu por ser escuro e fui ao
inferno em busca de luz”.
Estava em Florença. Já
não era o lugar do humanismo, do renascimento do século XVII, que lançou as
suas luzes por todo o mundo. Ao contrário, o que eu encontrei foi uma cidade
preparada para, explorando o seu passado, deixar os turistas partirem, se
possível, sem um vintém no bolso. Uma verdadeira armadilha preparada para
explorar os incultos turistas que, prisioneiros do passado, tornam-se presas
fáceis para os exploradores dos tempos modernos. Excetuando uma ou outra obra
preservada, a cidade, é um grande shopping center aberto. Tudo visa seduzir os
turistas para as compras. Quase não é possível tirar uma boa foto. Primeiro,
porque a cidade é apinhada de turistas, o que torna impossível capturar uma
imagem sem o “enxame” de pessoas ao fundo. Segundo, é inviável fotografar uma
rua, um beco ou qualquer conjunto arquitetônico sem que, inevitavelmente, os
letreiros das marcas famosas roubem a cena: Loewe, Prada, Lacoste, Versace, Miu Miu,
Bottega Veneta, Valentino, Saint Laurent, Moncler, Gucci, Dior, Louis Vuitton,
Versace, Dolce & Gabbana... e a lista continua.
Tudo se tornou feio, o pouco de beleza que resta, apaga-se diante do incômodo,
quase assédio, pela prioridade do comércio em detrimento da cultura.
A Florença dos meus
sonhos, eu não mais a encontrei. É claro que os tempos são outros: a Florença
que eu encontrei não é a mesma dos Médici, de Maquiavel, de Savonarola,
Soderine, de Lorenço de Medici, de Rafael, de Leonardo da Vinci, de Dante
Alighieri, de Boccaccio... Esse mundo já não existe; repousa, para sempre, no
universo das ideias.
Lá, no mundo das
ideias, por muitos anos, convivi com Maquiavel. Estando em sua terra natal, não
poderia deixar de buscar conhecer, in loco, um pouco mais de sua
história e trazer para o mundo da realidade aquilo que eu só tive acesso
através das narrativas livrescas. Alimentava a esperança de encontrar um belo
museu, bem organizado, que contasse um pouco mais de sua trajetória neste
mundo. Depois de muito procurar, localizei, em uma rua qualquer, uma casa
comum, ocupada por um comércio sem relevância, nada que justificasse a visita.
Não fosse uma solitária placa, fixada no alto de uma das suas paredes, onde se
lia: “Casa ove visse Niccolo
Macchiavelli e ivi mori il 22 giugno di 1527, di anni 58, mesi 8 e giorni 10”;
jamais alguém poderia identificar que naquela casa um dia habitou um tão
ilustre morador.
Entristecido com o que
vi, continuei minha pesquisa, na expectativa de encontrar outro local mais
digno para homenagear o homem que mudou a forma de se pensar e fazer política
no mundo ocidental.
Sabia que, com a queda
do governo de Soderine e a reconquista da República de Florença pelos Médici,
nosso grande pensador político caiu em desgraça. Foi destituído do cargo que
ocupava e, após passar um breve período na prisão, exilou-se “voluntariamente”
em San Casciano, nos arredores de Florença. Foi nesse recanto rural que nasceu
sua obra-prima: O Príncipe.
Era o momento de ir em
busca do humilde sítio no qual Maquiavel foi condenado a viver contra a sua
vontade, entre lenhadores e jogadores de cartas. “De manhã, eu acordo com o sol
e vou para o bosque fazer lenha; ali
permaneço por duas horas verificando o trabalho do dia anterior e ocupo o meu
tempo com os lenhadores, que sempre tem desavenças, seja entre si, seja com os
vizinhos... [...] Enquanto isso, aproxima-se a hora do almoço e com os meus,
como aquilo que me permitem meu pobre sítio e meu pequeno patrimônio... Após o almoço, retorno ao albergue: lá estão
habitualmente o estalajadeiro, um lenhador, um moleiro e dois fabricantes de
cal. Por todo o resto do dia, fico misturado com a canalha, jogando cartas ou
gamão, jogo dos quais nascem mil polêmicas e inúmeras disputas marcadas por
injúrias. [...] É assim, envolvido com essas mesquinharias, que desentorpeço o
meu cérebro e deixo extravasar a maldade da sorte, aceitando que ela me
espezinhe dessa forma para ver se não acabará por envergonhar-se disso”. (Maquiavel
– Carta a F. Vettori)
Menos de uma hora
depois, estávamos diante da casa de Maquiavel. Finalmente, um lugar mais digno
e preservado. Naquele dia, sem nenhum movimento, fomos autorizados a visitar a
casa sem a companhia de um cicerone. Que
alegria, nenhum olhar a nos olhar. A casa de Maquiavel encontrava-se ao alcance
de nossa curiosidade. Percorremos cada canto daquela casa, biblioteca, cozinha,
escritório... Tiramos fotos de tudo. Enfim, estávamos concluindo a visita a um
lugar mais digno de Maquiavel, ainda que ele, durante toda a sua vida, jamais
tenha se sentido confortável ali, condenado a viver em um lugar indigno da sua
grandeza.
Na dedicatória de O Príncipe,
dirigida a Lorenço de Médici, ele implora para ser resgatado daquele mundo de
“infortúnio”: “Receba, pois, este pequeno presente com o intuito que me inspira
ao enviá-lo; se ele for lido e considerado com diligência, Vossa Magnificência
descobrirá meu enorme desejo de que lhe advenha a grandeza que prometem a
fortuna e suas qualidades. E, se Vossa Magnificência, do ápice de sua grandeza,
por vezes voltar os olhos para regiões mais baixas, notará quão imerecidamente
suporto um grande e contínuo infortúnio.”
Após a visita, com a
alma agradecida, era hora de retornarmos a Florença. Ao final do dia, já nos
encontrávamos no grande mercado a céu aberto em que a terra do Renascimento se
transformou.
Bem, apesar da
tristeza, de ter testemunhado a transformação de Florença num grande shopping
center, uma coisa não pode se negar, os produtos vendidos são de qualidade,
ainda, pelo menos por enquanto, não transformou o seu comércio em um mercado de
produtos de segunda categoria, produzido na China, como o que de fato
aconteceu, com a próxima cidade a ser visitada: Atenas.
A expectativa era
grande, mais de quarenta anos esperando esse momento. Era chegado a hora de
conhecer a terra de Parmênides, Heráclito, Sócrates, Platão, Sófocles, Xenofonte,
Aristóteles. O avião acaba de pousar. O coração bate forte. O hotel reservado
no centro da cidade. Pego o metrô em direção à estação Syntagma. O
percurso é longo. Vou contemplando a cidade que, aos poucos, vai se desnudando
aos meus olhos. No entanto, como o metrô, que ora margeia a cidade, ora se
esconde por suas entranhas, não é possível ver muitas coisas. Finalmente chego
à estação. Sigo à direita, subo três lances de escadas, abrem-se as cortinas,
Atenas me dá as boas-vindas. Um misto de alegria e tristeza começou a tomar
conta da minha alma. Alegria, por estar chegando à cidade que alimentou o meu
imaginário por toda a vida; tristeza, porque, já no primeiro momento, a cidade
que se descortinava diante dos meus olhos não era a cidade com a qual eu
convivera no mundo das ideias. Deparei-me com um centro feio, mal cuidado,
abandonado, com prédios completamente pichada. Qualidade não apenas do centro,
nunca vi uma cidade tão pichada como Atenas. Se houvesse um campeonato entre as
cidades, para se saber qual a cidade mais pichada, com certeza, Atenas seria
uma forte candidata ao primeiro lugar. A impressão que se tem é que, naquela
cidade, foi gasto a totalidade do spray produzido no mundo. A
transgressão, típica da estética do grafite, contribui, e muito, para dar à
Atenas um aspecto de cidade descuidada e feia. Claro que tem lá os seus sítios
históricos, que, por milagre, ainda não foram alcançados pelos “artistas” urbanos.
Bem, não demorou muito, seis passos do hotel, deparo-me com a Rua Sócrates.
Esperava encontrar uma rua coberta de diamantes em homenagem ao pai da
Filosofia, nada, ao contrário, para minha tristeza, o que eu encontro é mais
uma rua abandonada, suja, morta, ocupada por moradores de rua que passam o dia
fazendo uso de drogas. Sócrates merecia melhor cuidado. Com certeza, a mesma
injustiça não teria sido cometida com Platão. Não, este que tanto contribuiu
para a formação do homem ocidental, mereceu, por parte dos governantes, mais
cuidado do que tiveram com o seu mestre. Ledo engano. Em nada a Rua de Platão
se diferencia da Rua de Sócrates. Às vezes, fica a impressão de que os gregos
modernos se esqueceram dos gregos antigos. Se são cultuados pelo mundo, por
aquelas bandas parecem esquecidos.
Já que estou falando de Platão, passarei um
pouco mais de tempo em sua companhia. A história da filosofia nos lembra que,
quando Platão decidiu fundar um centro de estudos dedicado à investigação
filosófica, recebeu a ajuda de Academo. Morando fora dos muros da cidade, no
bosque sagrado de Cefiso, ele cedeu-lhe parte de seu jardim para ali erguer a Ἀκαδημία
(Academia) — um lugar de ciência, onde se ensinava a arte de formular
conceitos. Devia ficar realmente longe do centro de Atenas, de difícil acesso.
Hoje, em pleno século XXI, sem a ajuda do Google Maps, não
conseguiríamos encontrar esse canto sagrado. Em sua carta autobiográfica,
Abelardo lembra os motivos que levaram Platão a escolher um local tão remoto e,
à época, pouco salubre para fundar sua Academia: “Platão escolheu para se dedicar à filosofia a casa de
campo de Academos, afastada da cidade, e não apenas solitária, mas situada numa
região pestilenta: seria preciso, pensava ele, manter ali uma luta incessante
contra a doença que quebraria os atrativos da paixão, de forma que os
discípulos ali não experimentassem outro prazer senão o que tirassem do estudo.”
Estando em Atenas,
como um bom turista e muito interessado na filosofia, claro que a visita à esta
academia se encontrava em minha lista de prioridades. Não foi fácil chegar até
lá, realmente, fica um pouco distante do centro de Atenas, mas nada longe demais
que o percurso não possa ser feito por um turista curioso. Com a ajuda do Google Maps, depois de algumas
paradas para a devida, e merecida, hidratação, finalmente vislumbramos a Escola
que Aristóteles estudou, tendo Platão como o seu mestre. O que vimos? Nada. No
primeiro momento, achamos que tínhamos errado o lugar, não poderia ser aquele o
lugar que um dia foi a primeira academia, lugar onde foram fabricados os
primeiros conceitos com os quais tramou-se a configuração da razão Ocidental.
Não, não estávamos errados. Para a nossa tristeza, estávamos, de fato, no
jardim de Academo. O que vimos: no meio de um jardim público, que um dia fora um bosque
sagrado dedicado a Atena, deusa da sabedoria, havia muitas árvores, incluindo
oliveiras com aparência de serem milenares. Em um canto desse jardim, havia um
espaço coberto por uma grama rala, onde algumas pedras estavam distribuídas
aleatoriamente. Aqui e ali, podia-se ver um pequeno pedaço de alicerce, com não
mais de vinte centímetros acima do chão, sugerindo que, em algum momento no
passado, paredes foram erguidas naquele local. Ou seja, só com um
grande, e generoso, esforço de imaginação, poder-se-ia supor que aquelas pobres
pedras, largadas ao chão, um dia foi uma fábrica de conceitos, um lugar de episteme.
Bem, como não tinha mesmo nada para ser visto, a visita foi rápida, não passou
de vinte minutos.
Tristes com o que
encontramos, perguntamos a um nativo que repousava à sombra de uma oliveira se,
por ali, existia mais alguma coisa referente a Platão. Para nossa surpresa e
alegria, ele nos respondeu: “Sim, logo ali, fica o museu de Platão”. Fomos
arrebatados por uma profunda alegria. Finalmente poderíamos visitar Platão mais
de perto. Nem tudo estava perdido. Seguindo a orientação do velho grego, fomos
em busca do Museu de Platão. Que bom, Atenas não abandonou seu filho, como
chegamos a pensar. Estávamos próximos a acessar o lugar escolhido para
preservar a sua memória. Seguindo uma seta orientadora, estávamos de frente ao
museu de Platão. Mais uma triste surpresa. Não acreditamos no que estávamos
vendo. Então foi isso que construíram para preservar a memória do pensador mais
importante do mundo ocidental? Triste tempo que não é capaz de cuidar do seu
passado, desapegando-se de tal forma dele que, facilmente o esquecemos. O que
chamam de Museu Digital da Academia de Platão, não passa de dois
contêineres, sim, isso mesmo, dois contêineres, desses usados nos portos para
transportar mercadorias, um ao lado do outro, com uma porta de entrada. A
princípio, recusei-me a entrar naquela sombria prisão. Acabei me convencendo a
entrar, quem sabe, não encontraria, entre as sombras, um pouco de luz.
Novamente me arrependi. Melhor teria sido se tivesse usado o meu tempo num bar
qualquer tomando uma cerveja, assim, pelo menos amenizaria o calor que, naquela
época do ano, estava de fritar os miolos. Não tinha mais como recusar a entrar,
já tinha assinado o livro dos visitantes. O que vimos? Nada. Nas paredes, havia algumas
fotos da Grécia Antiga. Em um canto, uma estante exibia traduções das obras de
Platão. Em duas salas escuras, eram exibidos desenhos animados sobre as obras
de Platão, como O Mito da Caverna ou algum diálogo socrático.
Coisas que, aliás, você facilmente encontra no YouTube com qualidade
muito superior. Em dez minutos concluímos nossa visita. Aquele
lugar não tinha nada para ser mostrado. Atenas não pareceu cuidar bem das
memórias do seu filho mais ilustre. Assim fomos visitando outros cantos,
sofrendo outros desencantos. Apesar da grande multidão de turistas ávidos
por conhecer Atenas, pouco se encontra, no mundo real, daquilo que foi ensinado
nos livros de história.
Atenas tem pouco a mostrar; sua história
encontra-se preservada nos livros, não nas praças, museus ou sítios históricos.
Seus museus, seus oráculos... de tudo isso, pouco resta. O que sobreviveu ao
longo de uma história marcada por conflitos e invasões – como as Guerras
Médicas, a Guerra do Peloponeso, a Conquista Macedônica, a Invasão Romana, as
Invasões Bárbaras e a Ocupação Otomana (esta última perdurando até o século
XIX, quando os gregos conquistaram sua independência do Império Otomano) – é
muito pouco para a grandiosidade de sua história.
O que resta, por onde se anda, é nada por
inteiro, apenas alguns fragmentos de pedra espalhados pelo chão, com uma placa
indicando que ali um dia funcionou a Biblioteca de Adriano, um cemitério, o
tempo da Deusa Atena, que sequer se encontra em Atenas, mas em Delfos. Mesmo
lugar onde encontramos o Templo de Apolo, um local sagrado onde os deuses
revelavam os destinos dos homens. Era conhecida a famosa frase escrita no
portal de sua entrada: “Conhece a ti mesmo”. Foi nesse canto sagrado
que, respondendo a um questionamento de Querefonte, teria o Oráculo
revelado ser Sócrates o homem mais sábio da Grécia. “Conheceis Querefonte,
decerto. Sabeis o temperamento de Querefonte, quão tenaz em seus
empreendimentos. Ora, certa vez, indo a Delfos, arriscou esta consulta,
[...] ele perguntou se havia alguém mais sábio que eu; respondeu a Pítia, que
não havia ninguém mais sábio...” (Platão – Defesa de Sócrates). Depois
de séculos soterrados, tendo uma pobre vila construída em seu lugar, para a
sorte do Mundo, o belo templo, melhor, o pouco que sobrou dele, algumas colunas
e outras pedras jogadas ao chão, voltou a se mostrar aos olhos dos mortais.
Vamos voltar a Atenas,
ainda não visitamos Acrópole, lugar de refúgio dos gregos, em tempos
incertos. Localizada no lugar mais alto da cidade, ergue-se majestosamente um
patrimônio da humanidade. Tornar-se um patrimônio da humanidade ajudou a
preservar, o que foi possível ser preservado, até os nossos dias. O mundo olha
com carinho para aquele sítio histórico. É possível dizer que o mundo ajuda,
inclusive financeiramente, para que aquele belo espetáculo da arte humana se
encontre, senão totalmente preservado, preservado uma boa parte das suas obras,
capazes de encantar quem o contempla. De tudo o que vimos, a Acrópole é o que
vimos de mais preservada. Claro que ficamos felizes em contemplar tamanha
beleza, mas para a importância de Atenas, pelas suas conquistas, por tudo que
ela construiu, em todos os sentidos, a Acrópole é muito pouco.
Um querido amigo, italiano raiz e conhecedor
do mundo antigo, lendo este texto antes de vir a público, lembrou-me das minhas
faltas, indicando lugares importantes que deixei de contemplar em Atenas. Entre
eles: Olimpeu, um templo dedicado a Zeus – ou ao que restou dele -, o deus dos
deuses. Segundo a história, entre todos os templos da Grécia Antiga, esse era
considerado um dos mais belos; O Estádio Panatenaico, um dos estádios mais
antigos do mundo, restaurado para sediar os primeiros Jogos Olípicos modernos;
O Monte Pnyx, onde o povo se reunia para, por meio do voto, traçar os rumos do
governo da cidade - o berço da democracia; A Plataforma de Bema, cujos degraus
históricos testemunharam grandes discursos de figuras como Aristides, Péricles
e Demóstenes...
Temos que admitir: faltas imperdoáveis. No
entanto, atribuímos esse deslize à pressa de um turista que, descuidadamente,
atravessa a cidade sem explorar todas as suas ruas, becos e segredos, ocultos à
primeira vista.
Comprometo-me a corrigir esse erro o mais
breve possível. Voltarei a Atenas, desta vez por mais tempo, observando com
mais cuidado e pesquisando com mais paciência. Assim, quem sabe, cometerei
menos omissões e não deixarei passar despercebidos os detalhes que um viajante
apressado ignora. E então, talvez, não expiaremos completamente nossas faltas,
mas, com esforço, traremos mais serenidade ao espírito, na certeza de termos
pecado menos.
Para compreender
melhor, devemos olhar para Atenas, não com o olhar físico. Este, de fato, pode
alcançar pouco; é preciso olhar com o olhar do espírito, ver com o que não
vemos, mas sentimos, como o ar que respiramos. Não podemos vê-lo, tocá-lo, mas
o sentimos. A certeza de sua existência é a constatação de que estamos vivos.
Assim é a herança cultural de Atenas: saiu do mundo físico, alçou voo, alcançou
a cultura ocidental, espalhou-se por todos os cantos e criou morada no espírito
da humanidade.
Sim, somos, quer queiramos
ou não, filhos de Atenas. Nossa alma for forjada em suas ruas, em seus
mercados, em seus templos, em sua ágora. Em suas praças, aprendemos a
fabricar conceito, aprendemos a pensar a res pública, aprendemos a fazer
ciência, aprendemos matemática, medicina, arquitetura, aprendemos a pensar a
arte... e, finalmente, aprendemos a filosofar. Segundo Péricles, Atenas é a
escola da Grécia. Vamos mais longe: Atenas é a escola do Ocidente.
Partimos de Atenas com a certeza de que, ao longo de toda a nossa caminhada, os passos mais significativos foram dados em suas ruas. A ti, Atenas, deixamos nosso reconhecimento e eterno agradecimento. Que não demore muito o dia em que a ti retornemos.
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