ATENAS/FLORENÇA

fevereiro 04, 2025Prof. Dr. Joceval Bitrencourt

 

ATENAS/FLORENÇA




Quando algo entristece a nossa alma, devemos silenciá-la, mantendo-a à sombra, quem sabe, assim, evitando que um outro possa olhar a nossa dor, ela se torne mais leve, nos envergonhe menos. Tal procedimento pode evitar que as nossas dores alcancem as trombetas, espalhando-se pelo mundo. Entretanto não podemos impedir que, em silencio, ocupando um lugar invisível ao olhar do outro, continue a nos ferir, continue a provocar desconforto no espírito do caminhante. Quando um simples fenômeno cultural é capaz de causar danos na alma de alguém, é porque, de alguma forma, a alma desse alguém foi moldada com a argila desses fenômenos da cultura. Em algum momento, eles se encontraram, estabeleceram vínculos, uniram-se, tornaram um só, forjaram-se, compartilhando um mesmo chão cultural, tornando-se impossível separá-los. Somos ocidentais, como consequência, somos gregos. É nesse canto do mundo que nós, ocidentais, encontramos nossa nascente cultural. Quem sabe, aí esteja a causa do cuidado que se deve tomar. Mexer nos fenômenos culturais, é mexer com a nossa alma, e vice-versa. Melhor deixar tudo ancorado no silêncio, repousando nas camadas mais profundas das nossas memórias afetivas. 

O que aconteceu comigo pode ter acontecido com outras pessoas. No entanto, sempre soube que as dores são particulares: cada um as sente nas camadas mais profundas e silenciosas da singularidade de sua alma. Sei que não encontrarei, nas dores alheias, um alívio para as minhas. Consciente disso, olho-me, cuidando de minhas próprias feridas, sem, é claro, desmerecer as dos outros.

Desde o dia em que, aos meus vinte e poucos anos, assisti, pela primeira vez, a uma aula de filosofia, na qual o professor falava sobre os filósofos da natureza, identificados como pré-socráticos, passei a habitar o mundo grego. Em uma terra distante e estranha à minha, como um caminhante errante sem lar, encontrei no solo grego o refúgio ideal para erguer minha morada.

De início, era apenas uma morada provisória que, com o passar do tempo, foi se tornando a principal morada do meu espírito. Mesmo assim, por diversas vezes, precisei abandonar aquelas terras em busca de outras. Contudo, sempre que o fiz, agi como um turista: visitei novas terras, mas com a passagem já comprada para retornar à terra de Apolo.

Sim, de fato, a Grécia real eu não conhecia, convivia com a Grécia ideal, aquela que nascia dos meus encantamentos, dos meus pueris delírios filosóficos, aquela que os livros me ensinavam. Através dos seus pensadores, conheci sua geografia, sua cultura, seus delírios conceituais. Ao longo de minha caminhada, convivi mais com os gregos do que com qualquer outro povo do mundo. Me orgulhava de conhecer as tramas urdidas entre os deuses, semideuses e  mortais. Presenciei Homero recitando os versos de Ilíada e da Odisseia pelas feiras das cidades. Com alegria, vi Prometeu roubar o fogo de Zeus, devolvendo-o à humanidade, libertando-a das trevas. Encontrei-me presente quando Aquiles e Ulisses, tramando contra os troianos, rabiscavam na areia da praia o modelo do cavalo da traição. Conhecia a Ágora, o mercado, Delfos, lugar de Apolo, Atena, e seu templo. Estive presente no julgamento de Sócrates. Lembro-me de ter visto, no fundo da sala, enquanto o julgamento ocorria, Platão fazendo anotações do que dizia Sócrates em sua defesa... Em silêncio, acomodado em um canto da casa de Agatão, testemunhei Sócrates negar o seu amor a Alcebíades, enquanto transmitia o que aprendera sobre o amor com os ensinamentos da sacerdotisa Diotima... Por pouco, movido pela indignação de um bárbaro, não avancei sobre o escravo que preparava o cálice da morte para Sócrates. Vi quando Platão, pela primeira vez na cultura ocidental, duplicou o mundo, instalando em um deles o lugar seguro e certo para o conhecimento da verdade... Vi Aristóteles renunciar às ideias de seu mestre e instalar a verdade na identidade substancial do mundo sensível. Vi o Cínico Diógenes renunciar às benesses do mundo, indo fazer sua morada em um barril...   Vi a derrota dos gregos para os espartanos na guerra do Peloponeso... Presenciei o discurso fúnebre de Péricles, no qual, além de enaltecer outras grandes conquistas, ele se orgulhava de viver em uma cidade imitada por todos, mas que não imitava ninguém. Uma cidade que, em suas praças públicas, inventou a democracia - um regime político no qual todos os homens obedecem às mesmas leis, são tratados como iguais e avaliados segundo seus méritos, independentemente da classe social.

Tudo o que ouvia era um canto ao meu espírito. Minha alma, naquele canto do mundo, bailava, estava em festa. Aquela era a minha casa, aquela era a patria que eu escolhera para a formação do meu espírito.

 

Foi com grande tristeza que vi o século de Péricles ruir, colocando por terra as conquistas da democracia... Depois desse dia, nunca mais Atenas foi a mesma... Logo chegaram os romanos. Não demorou para que o cristianismo também viesse, trazendo consigo a imposição de um Deus desconhecido, que prometia salvar todos os homens, desde que renunciassem a este mundo e o servissem como um escravo serve ao seu senhor.

Não me sentindo confortável com um feio tempo que se anunciava, hibernei no passado, à espera de dias melhores. Não demorou muito, tomei conhecimento de que, em outro canto do mundo, homens curiosos estavam provocando uma verdadeira revolução em todos os campos do conhecimento: na política, na ciência, nas artes, na filosofia... Com novas ferramentas, buscavam fabricar um novo mundo. O velho mundo, já sem forças para resistir às novas conquistas, foi gradualmente perdendo seu espaço e mergulhando no silêncio. Em seu lugar, um novo cosmo estava sendo forjado. O Mundo Moderno começava a se anunciar.

 

O homem voltou a afirmar-se, assumindo a sua maioridade. Tornando-se cuidador de si, reconquistou o direito de ser o inventor da verdade e guardião do mundo. A razão tornou-se independente da religião. Assim como a razão grega, que um dia se libertou dos deuses, a razão moderna encontrou o seu território: livrou-se de um mundo encantado e divino, e estabeleceu, no mundo natural, que se deixa traduzir em linguagem puramente matemática, os limites de suas verdades e ações.

Agora, livre e navegando por mares exclusivamente humanos, o espírito ancorou-se em terra firme, trazendo para si a responsabilidade de inventar um novo mundo, no qual ele é o senhor. Animado com as boas novas, despertei, arrumei minhas malas e fui visitar aquele efervescente canto do mundo.

Ao longo da vida, fixei morada nessa nova cidade. É claro que, no que se refere ao conhecimento, você pode deixar a Grécia, mas ela nunca deixa você. É a primeira morada, a morada que fica para sempre. Mesmo que por foça das circunstâncias, você venha a visitar outras terras, mesmo que seja por um bom tempo, como foi o que aconteceu comigo, pouco importa, essa nova terra é uma segunda ou terceira terra, a primeira, a sua terra originária é Atenas, aquela que lhe acolheu e orientou, aquela que pela primeira vez tornou-se a sua morada, alicerces sobre os quais todas as futuras moradas serão erguidas. Todo esse percurso, apesar de longo, quase uma vida, encontrou-se no mundo dos livros, no território das ideias.

A Atenas que conhecia, conheci-a através da cartografia que me foi apresentada por Homero, Tales, Sócrates, Platão, Aristóteles, Péricles... A Florença que conhecia, me foi apresentada por Galileu, Maquiavel, Dante, Michelangelo... Enquanto habitei esses dois mundos, não tenho o que reclamar, fui feliz. Apesar de serem mundos puramente ideais, sobre os quais, da realidade dos fatos, só tomei conhecimento pelo que ouvia contar. Contentava-me com os modelos ideais, com eles construía os meus castelos. Habitava a região superior que Platão me ensinou. Lugar onde, superando a transitoriedade das imperfeiçoes do real, se alcança, no puro exercício da razão, as essências, fundamento único de todas as verdades. Contentei-me em contemplar o mundo das ideias. Deveria ter permanecido nessa confortável região superior. Se tudo estava bem, se eu acreditava nas minhas fantasias, se, através delas, coloquei ordem em meu mundo particular, por que buscar compará-lo com o mundo real? Não seria correr um grande risco? Ainda poderia não ter a resposta para a minha pergunta, mas ela desinstalou-me de uma certeza e instalou-me uma dúvida, uma provocação: não estava na hora de conhecer esses dois mundos, que tanta importância teve em sua vida? Se quer viver em paz, não deixe a suspeita fazer morada em sua alma. Não tomei o devido cuidado, acabei deixando-me levar pela dúvida. Fui em busca de uma resposta. Como bem diz o cancioneiro popular: “abandonei o céu por ser escuro e fui ao inferno em busca de luz”.

Estava em Florença. Já não era o lugar do humanismo, do renascimento do século XVII, que lançou as suas luzes por todo o mundo. Ao contrário, o que eu encontrei foi uma cidade preparada para, explorando o seu passado, deixar os turistas partirem, se possível, sem um vintém no bolso. Uma verdadeira armadilha preparada para explorar os incultos turistas que, prisioneiros do passado, tornam-se presas fáceis para os exploradores dos tempos modernos. Excetuando uma ou outra obra preservada, a cidade, é um grande shopping center aberto. Tudo visa seduzir os turistas para as compras. Quase não é possível tirar uma boa foto. Primeiro, porque a cidade é apinhada de turistas, o que torna impossível capturar uma imagem sem o “enxame” de pessoas ao fundo. Segundo, é inviável fotografar uma rua, um beco ou qualquer conjunto arquitetônico sem que, inevitavelmente, os letreiros das marcas famosas roubem a cena: Loewe, Prada, Lacoste, Versace, Miu Miu, Bottega Veneta, Valentino, Saint Laurent, Moncler, Gucci, Dior, Louis Vuitton, Versace, Dolce & Gabbana...  e a lista continua. Tudo se tornou feio, o pouco de beleza que resta, apaga-se diante do incômodo, quase assédio, pela prioridade do comércio em detrimento da cultura.

A Florença dos meus sonhos, eu não mais a encontrei. É claro que os tempos são outros: a Florença que eu encontrei não é a mesma dos Médici, de Maquiavel, De Savonarola, Soderine, de Lorenço de Medici, de Rafael, de Leonardo da Vinci, de Dante Alighieri, de Boccaccio... Esse mundo já não existe; repousa, para sempre, no universo das ideias.

Lá, no mundo das ideias, por muitos anos, convivi com Maquiavel. Estando em sua terra natal, não poderia deixar de buscar conhecer, in loco, um pouco mais de sua história e trazer para o mundo da realidade aquilo que eu só tive acesso através das narrativas livrescas. Alimentava a esperança de encontrar um belo museu, bem organizado, que contasse um pouco mais de sua trajetória neste mundo. Depois de muito procurar, localizei, em uma rua qualquer, uma casa comum, ocupada por um comércio sem relevância, nada que justificasse a visita. Não fosse uma solitária placa, fixada no alto de uma das suas paredes, onde se lia:  “Casa ove visse Niccolo Macchiavelli e ivi mori il 22 giugno di 1527, di anni 58, mesi 8 e giorni 10”; jamais alguém poderia identificar que naquela casa um dia habitou um tão ilustre morador.

Entristecido com o que vi, continuei minha pesquisa, na expectativa de encontrar outro local mais digno para homenagear o homem que mudou a forma de se pensar e fazer política no mundo ocidental.

Sabia que, com a queda do governo de Soderine e a reconquista da República de Florença pelos Médici, nosso grande pensador político caiu em desgraça. Foi destituído do cargo que ocupava e, após passar um breve período na prisão, exilou-se “voluntariamente” em San Casciano, nos arredores de Florença. Foi nesse recanto rural que nasceu sua obra-prima: O Príncipe.

Era o momento de ir em busca do humilde sítio no qual Maquiavel foi condenado a viver contra a sua vontade, entre lenhadores e jogadores de cartas. “De manhã, eu acordo com o sol e vou para o bosque  fazer lenha; ali permaneço por duas horas verificando o trabalho do dia anterior e ocupo o meu tempo com os lenhadores, que sempre tem desavenças, seja entre si, seja com os vizinhos... [...]Enquanto isso, aproxima-se a hora do almoço e com os meus, como aquilo que me permitem meu pobre sítio e meu pequeno patrimônio...  Após o almoço, retorno ao albergue: lá estão habitualmente o estalajadeiro, um lenhador, um moleiro e dois fabricantes de cal. Por todo o resto do dia, fico misturado com a canalha, jogando cartas ou gamão, jogo dos quais nascem mil polêmicas e inúmeras disputas marcadas por injúrias. [...] É assim, envolvido com essas mesquinharias, que desentorpeço o meu cérebro e deixo extravasar a maldade da sorte, aceitando que ela me espezinhe dessa forma para ver se não acabará por envergonhar-se disso”. (Maquiavel – Carta a F. Vettori)

Menos de uma hora depois, estávamos diante da casa de Maquiavel. Finalmente, um lugar mais digno e preservado. Naquele dia, sem nenhum movimento, fomos autorizados a visitar a casa sem a companhia de um cicerone.  Que alegria, nenhum olhar a nos olhar. A casa de Maquiavel encontrava-se ao alcance de nossa curiosidade. Percorremos cada canto daquela casa, biblioteca, cozinha, escritório... Tiramos fotos de tudo. Enfim, estávamos concluindo a visita a um lugar mais digno de Maquiavel, ainda que ele, durante toda a sua vida, jamais tenha se sentido confortável ali, condenado a viver em um lugar indigno da sua grandeza.

Na dedicatória de O Príncipe, dirigida a Lorenço de Médici, ele implora para ser resgatado daquele mundo de “infortúnio”: “Receba, pois, este pequeno presente com o intuito que me inspira ao enviá-lo; se ele for lido e considerado com diligência, Vossa Magnificência descobrirá meu enorme desejo de que lhe advenha a grandeza que prometem a fortuna e suas qualidades. E, se Vossa Magnificência, do ápice de sua grandeza, por vezes voltar os olhos para regiões mais baixas, notará quão imerecidamente suporto um grande e contínuo infortúnio.”

Após a visita, com a alma agradecida, era hora de retornarmos a Florença. Ao final do dia, já nos encontrávamos no grande mercado a céu aberto em que a terra do Renascimento se transformou.

Bem, apesar da tristeza, de ter testemunhado a transformação de Florença num grande shopping center, uma coisa não pode se negar, os produtos vendidos são de qualidade, ainda, pelo menos por enquanto, não transformou o seu comércio em um mercado de produtos de segunda categoria, produzido na China, como o que de fato aconteceu, com a próxima cidade a ser visitada: Atenas.

A expectativa era grande, mais de quarenta anos esperando esse momento. Era chegado a hora de conhecer a terra de Parmênides, Heráclito, Sócrates, Platão, Aristóteles. Através dos livros, conheci e convivi com cada canto desse mundo. Chegou a hora de comparar o mundo das ideias, com o mundo da realidade propriamente dita. O avião acaba de pousar. O coração bate forte. O hotel reservado no centro da cidade. Pego o metrô em direção à estação Syntagma. O percurso é longo. Vou contemplando a cidade que, aos poucos, vai se desnudando aos meus olhos. No entanto, como o metrô, que ora margeia a cidade, ora se esconde por suas entranhas, não é possível ver muitas coisas. Finalmente chego à estação. Sigo à direita, subo três lances de escadas, abrem-se as cortinas, Atenas me dá as boas-vindas. Um misto de alegria e tristeza começou a tomar conta do meu coração. Alegria, por estar chegando à cidade que alimentou o meu imaginário por toda a vida; tristeza, porque, já no primeiro momento, a cidade que se descortinava diante dos meus olhos não era a cidade com a qual  eu convivera no mundo das ideias. Deparei-me com um centro feio, mal cuidado, abandonado, com prédios completamente pichada. Qualidade não apenas do centro, nunca vi uma cidade tão pichada como Atenas. Se houvesse um campeonato entre as cidades, para se saber qual a cidade mais pichada, com certeza, Atenas seria uma forte candidata ao primeiro lugar. A impressão que se tem é que, naquela cidade, foi gasto a totalidade do spray produzido no mundo. A transgressão, típica da estética do grafite, contribui, e muito, para dar à Atenas um aspecto de cidade descuidada e feia. Claro que tem lá os seus sítios históricos, que, por milagre, ainda não foram alcançados pelos “artistas” urbanos. Bem, não demorou muito, seis passos do hotel, deparo-me com a Rua Sócrates. Esperava encontrar uma rua coberta de diamantes em homenagem ao pai da Filosofia, nada, ao contrário, para minha tristeza, o que eu encontro é mais uma rua abandonada, suja, morta, ocupada por moradores de rua que passam o dia fazendo uso de drogas. Sócrates merecia melhor cuidado. Com certeza, a mesma injustiça não teria sido cometida com Platão. Não, este que tanto contribuiu para a formação do homem ocidental, mereceu, por parte dos governantes, mais cuidado do que tiveram com o seu mestre. Ledo engano. Em nada a Rua de Platão se diferencia da Rua de Sócrates. Às vezes, fica a impressão de que os gregos modernos se esqueceram dos gregos antigos. Se são cultuados pelo mundo, por aquelas bandas parecem esquecidos.

Já que estou falando de Platão, passarei um pouco mais de tempo em sua companhia. A história da Filosofia nos lembra que, quando Platão desejou construir uma academia para nela ministrar a sua filosofia, recebeu a ajuda de Academo, que, morando em uma bela casa, no subúrbio de Atenas, cedeu-lhe parte de seu jardim para ali erguer o seu canto onde passaria a ensinar aos homens de espíritos curiosos a arte de fabricar conceitos. Estando em Atenas, como um bom turista e muito interessado na filosofia, claro que a visita à esta academia se encontrava em minha lista de prioridades. Não foi fácil chegar até lá, realmente, fica um pouco distante do centro de Atenas, mas nada longe demais que o percurso não possa ser feito por um turista curioso. Com a ajuda do google mapas, depois de algumas paradas para a devida, e merecida, hidratação, finalmente vislumbramos a Escola que Aristóteles estudou, tendo Platão como o seu mestre. O que vimos? Nada. No primeiro momento, achamos que tínhamos errado o lugar, não poderia ser aquele o lugar que um dia foi a primeira academia, lugar onde foram fabricados os primeiros conceitos com os quais tramou-se a configuração da razão Ocidental. Não, não estávamos errados. Para a nossa tristeza, estávamos, de fato, no jardim de Academo. O que vimos: no meio de um jardim público, que um dia fora um bosque sagrado dedicado a Atena, deusa da sabedoria, havia muitas árvores, incluindo oliveiras com aparência de serem milenares. Em um canto desse jardim, havia um espaço coberto por uma grama rala, onde algumas pedras estavam distribuídas aleatoriamente. Aqui e ali, podia-se ver um pequeno pedaço de alicerce, com não mais de vinte centímetros acima do chão, sugerindo que, em algum momento no passado, paredes foram erguidas naquele local. Ou seja, só com um grande, e generoso, esforço de imaginação, poder-se-ia supor que aquelas pobres pedras, largadas ao chão, um dia foi uma fábrica de conceitos, um lugar de episteme. Bem, como não tinha mesmo nada para ser visto, a visita foi rápida, não passou de vinte minutos.

Tristes com o que encontramos, perguntamos a um nativo que repousava à sombra de uma oliveira se, por ali, existia mais alguma coisa referente a Platão. Para nossa surpresa e alegria, ele nos respondeu: “Sim, logo ali, fica o museu de Platão”. Fomos arrebatados por uma profunda alegria. Finalmente poderíamos visitar Platão mais de perto. Nem tudo estava perdido. Seguindo a orientação do velho grego, fomos em busca do Museu de Platão. Que bom, Atenas não abandonou seu filho, como chegamos a pensar. Estávamos próximos a acessar o lugar escolhido para preservar a sua memória. Seguindo uma seta orientadora, estávamos de frente ao museu de Platão. Mais uma triste surpresa. Não acreditamos no que estávamos vendo. Então foi isso que construíram para preservar a memória do pensador mais importante do mundo ocidental? Triste tempo que não é capaz de cuidar do seu passado, desapegando-se de tal forma dele que, facilmente o esquecemos. O que chamam de Museu Digital da Academia de Platão, não passa de dois contêineres, sim, isso mesmo, dois contêineres, desses usados nos portos para transportar mercadorias, um ao lado do outro, com uma porta de entrada. A princípio, recusei-me a entrar naquela sombria prisão. Acabei me convencendo a entrar, quem sabe, não encontraria, entre as sombras, um pouco de luz. Novamente me arrependi. Melhor teria sido se tivesse usado o meu tempo num bar qualquer tomando uma cerveja, assim, pelo menos amenizaria o calor que, naquela época do ano, estava de fritar os miolos. Não tinha mais como recusar a entrar, já tinha assinado o livro dos visitantes. O que vimos? Nada. Nas paredes, havia algumas fotos da Grécia Antiga. Em um canto, uma estante exibia traduções das obras de Platão. Em duas salas escuras, eram exibidos desenhos animados sobre as obras de Platão, como O Mito da Caverna ou algum diálogo socrático. Coisas que, aliás, você facilmente encontra no YouTube com qualidade muito superior. Em dez minutos concluímos nossa visita. Aquele lugar não tinha nada para ser mostrado. Atenas não pareceu cuidar bem das memórias do seu filho mais ilustre. Assim fomos visitando outros cantos, sofrendo outros desencantos. Apesar da grande multidão de turistas ávidos por conhecer Atenas, pouco se encontra, no mundo real, daquilo que foi ensinado nos livros de história.

Atenas tem pouco a mostrar; sua história encontra-se preservada nos livros, não nas praças, museus ou sítios históricos. Seus museus, seus oráculos... de tudo isso, pouco resta. O que sobreviveu ao longo de uma história marcada por conflitos e invasões – como as Guerras Médicas, a Guerra do Peloponeso, a Conquista Macedônica, a Invasão Romana, as Invasões Bárbaras e a Ocupação Otomana (esta última perdurando até o século XIX, quando os gregos conquistaram sua independência do Império Otomano) – é muito pouco para a grandiosidade de sua história.

O que resta, por onde se anda, é nada por inteiro, apenas alguns fragmentos de pedra espalhados pelo chão, com uma placa indicando que ali um dia funcionou a Biblioteca de Adriano, um cemitério, o tempo da Deusa Atena, que sequer se encontra em Atenas, mas em Delfos. Mesmo lugar onde encontramos o Templo de Apolo, um local sagrado onde os deuses revelavam os destinos dos homens. Era conhecida a famosa frase escrita no portal de sua entrada: “Conhece a ti mesmo”. Foi nesse canto sagrado que, respondendo a um questionamento de Querefonte, teria o Oráculo revelado ser Sócrates o homem mais sábio da Grécia. “Conheceis Querefonte, decerto. Sabeis o temperamento de Querefonte, quão tenaz em seus empreendimentos. Ora, certa vez, indo a Delfos, arriscou esta consulta, [...] ele perguntou se havia alguém mais sábio que eu; respondeu a Pítia, que não havia ninguém mais sábio...” (Platão – Defesa de Sócrates). Depois de séculos soterrados, tendo uma pobre vila construída em seu lugar, para a sorte do Mundo, o belo templo, melhor, o pouco que sobrou dele, algumas colunas e outras pedras jogadas ao chão, voltou a se mostrar aos olhos dos mortais.

Vamos voltar a Atenas, ainda não visitamos Acrópole, lugar de refúgio dos gregos, em tempos incertos. Localizada no lugar mais alto da cidade, ergue-se majestosamente um patrimônio da humanidade. Tornar-se um patrimônio da humanidade ajudou a preservar, o que foi possível ser preservado, até os nossos dias. O mundo olha com carinho para aquele sítio histórico. É possível dizer que o mundo ajuda, inclusive financeiramente, para que aquele belo espetáculo da arte humana se encontre, senão totalmente preservado, preservado uma boa parte das suas obras, capazes de encantar quem o contempla. De tudo o que vimos, a Acrópole é o que vimos de mais preservada. Claro que ficamos felizes em contemplar tamanha beleza, mas para a importância de Atenas, pelas suas conquistas, por tudo que ela construiu, em todos os sentidos, a Acrópole é muito pouco. 

Um querido amigo, italiano raiz e conhecedor do mundo antigo, lendo este texto antes de vir a público, lembrou-me das minhas faltas, indicando lugares importantes que deixei de contemplar em Atenas. Entre eles: Olimpeu, um templo dedicado a Zeus – ou ao que restou dele -, o deus dos deuses. Segundo a história, entre todos os templos da Grécia Antiga, esse era considerado um dos mais belos; O Estádio Panatenaico, um dos estádios mais antigos do mundo, restaurado para sediar os primeiros Jogos Olípicos modernos; O Monte Pnyx, onde o povo se reunia para, por meio do voto, traçar os rumos do governo da cidade - o berço da democracia; A Plataforma de Bema, cujos degraus históricos testemunharam grandes discursos de figuras como Aristides, Péricles e Demóstenes...

Temos que admitir: faltas imperdoáveis. No entanto, atribuímos esse deslize à pressa de um turista que, descuidadamente, atravessa a cidade sem explorar todas as suas ruas, becos e segredos, ocultos à primeira vista.

Comprometo-me a corrigir esse erro o mais breve possível. Voltarei a Atenas, desta vez por mais tempo, observando com mais cuidado e pesquisando com mais paciência. Assim, quem sabe, cometerei menos omissões e não deixarei passar despercebidos os detalhes que um viajante apressado ignora. E então, talvez, não expiaremos completamente nossas faltas, mas, com esforço, traremos mais serenidade ao espírito, na certeza de termos pecado menos.

Para compreender melhor, devemos olhar para Atenas, não com o olhar físico. Este, de fato, pode alcançar pouco; é preciso olhar com o olhar do espírito, ver com o que não vemos, mas sentimos, como o ar que respiramos. Não podemos vê-lo, tocá-lo, mas o sentimos. A certeza de sua existência é a constatação de que estamos vivos. Assim é a herança cultural de Atenas: saiu do mundo físico, alçou voo, alcançou a cultura ocidental, espalhou-se por todos os cantos e criou morada no espírito da humanidade.

Sim, somos, quer queiramos ou não, filhos de Atenas. Nossa alma for forjada em suas ruas, em seus mercados, em seus templos, em sua ágora. Em suas praças, aprendemos a fabricar conceito, aprendemos a pensar a res pública, aprendemos a fazer ciência, aprendemos matemática, medicina, arquitetura, aprendemos a pensar a arte... e, finalmente, aprendemos a filosofar. Segundo Péricles, Atenas é a escola da Grécia. Vamos mais longe: Atenas é a escola do Ocidente.

Partimos de Atenas com a certeza de que, ao longo de toda a nossa caminhada, os nossos passos mais significativos foram dados em suas ruas. A você, Atenas, fica o nosso reconhecimento e nosso eterno agradecimento. Obrigado, Atenas.

 

 

 

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