FALTAS - MÚSICA/FUTEBOL
fevereiro 08, 2025Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
MÚSICA/FUTEBOL
“Só os loucos andam por
aqui”
Em um domingo qualquer, sem nada para
fazer e sem ânimo para atividades físicas ou intelectuais, começo a zapear a TV
em busca de algo com que eu pudesse gastar meu ócio irresponsável. De repente,
deparo-me com uma reportagem sobre dois jogadores que marcaram época: Raí e
Palhinha. Segundo a matéria, tratava-se de uma dupla espetacular. Sem interesse
pelo assunto, mudei de canal.
Antes dessa reportagem, havia ido ao
ar outra, sobre um jogo da Seleção Brasileira. Apesar do emocionante apelo de
Pelé - “Pelo amor de Deus, o Brasil não pode esquecer das criancinhas” -, ela
tampouco prendeu minha atenção. Irrito-me com minha própria apatia.
Pergunto-me: por que o futebol não desperta em mim nenhuma paixão?
Não tenho uma resposta que se
sustente. Simplesmente, não consigo entregar minha alma a esse esporte. Sou
indiferente aos seus afetos: não me comovem nem para o bem, nem para o mal. Não
me alegram, tampouco me entristecem. Não nutro por ele qualquer forma de
admiração. E, se não o admiro, só me resta ser-lhe indiferente.
Curiosamente, acabei adotando uma
regra: como não torço por nenhum time em particular, acabo torcendo pelo
sucesso do time mais fraco, mesmo que jogando contra a Seleção Brasileira.
Tenho muitos irmãos, quase todos apaixonados por futebol. Vejo a direção para
onde vão seus afetos e vou na direção contrária. Eles torcem pelo Esporte Clube
Vitória, eu finjo que torço pelo Esporte Clube Bahia. E o pior: eles acreditam.
Ao refletir sobre outro prazer da
alma, a música, percebo que também não nutro uma paixão especial por ela. Meu
Deus, como se não bastasse a indiferença pelo esporte, esta pobre alma também
não se deixou encantar pela música! Gosto de música, mas sem entusiasmo ou
grandes conhecimentos. Para essa ausência de fervor, há uma justificativa -
embora eu saiba que, diante de uma falta tão grave, nenhuma explicação me
livraria da punição severa dos deuses da música.
Conheço pessoas que conseguem se
concentrar em suas atividades profissionais mesmo cercadas de barulho. Tenho
amigos que trabalham enquanto ouvem música.
Lembro-me de uma vez, ainda no
mosteiro de São Bento, em Salvador, quando estavam sendo filmadas cenas do
filme - se não me engano - Terra em Transe, de Glauber Rocha. Enquanto
observava as gravações, algo chamou minha atenção: a atriz – provavelmente Norma
Bengell -, sozinha em um canto, memorizava o seu texto, e o que mais me
impressionou foi que, enquanto estudava, ouvia música em alto volume; segundo
ela, a música ajudava na memorização, funcionando quase como uma técnica para
auxiliá-la em seu ofício. Assim como ela, conheci muitos, que não renunciam à
música como companheira de trabalho – que inveja! Este, definitivamente, não é
o meu caso.
Tem razão o dito popular: “cada louco
com sua mania”. É reconfortante encontrar outro louco que compartilhe da mesma
loucura que a nossa; isso alivia a culpa, nos faz parecer menos louco, ameniza
a sensação de excentricidade. Ufa! Não estou sozinho neste vasto mundo - não
sou o único louco nesta terra. Encontrei, mesmo sem procurar, um “louco” que,
com certeza, me entenderia. Ao acaso, ouvir, no YouTub, Chico Buarque –
escritor e compositor consagrado da MPB – dando seu testemunho sobre o ambiente
ideal para trabalhar: “Soa absurdo escrever ouvindo música. Aliás, eu não tenho
música de fundo para nada. Aqui em minha casa eu nem sei onde se encontra o
som. Música de fundo, enquanto trabalho me perturba profundamente. Me atrapalha
a vida”.
No correr do tempo, as circunstâncias
da vida me direcionaram para os estudos em filosofia. Fui conquistado por
Atena, a deusa da sabedoria. Como veremos em breve, tornei-me um estudante de
filosofia, o que mais tarde viria a ser minha profissão. Desde então, tenho
dedicado meus dias ao estudo e à docência. Vivi grande parte da minha vida
entre as bibliotecas. Neste espaço sagrado dedicado aos livros, reina uma regra
simples e universal: o silêncio.
Estudar é um ato solitário. Eu
poderia ter aproveitado essa solidão para conciliar os estudos com a música.
Bastaria recorrer a um fone de ouvido e, assim, mesmo em uma biblioteca,
conseguiria estudar enquanto ouvia música, sem incomodar ninguém. No entanto,
fracassei todas as vezes que tentei adotar esse recurso. Não consigo me
concentrar com nenhum ruído. Ou escuto música, ou estudo - fazer ambos ao mesmo
tempo é impossível. Quando precisei sacrificar uma das opções, foi a música que
perdeu sua primazia em minha alma.
Não tenho dúvida de que essa escolha
lançou sombras sobre o meu espírito. Ela não me tornou um homem melhor. Sem a
música, tenho certeza de que meu mundo se tornou um pouco mais descolorido.
Shakespeare, em O Mercador de Veneza, diz: “Todo homem que em si não
traga música. E a quem não toquem doces sons concordes, é de traições,
pilhagens, armadilhas. Seu espírito vive em noite obscura, Seus afetos são
negros como o Érebo: Não se confie em homem tal.” Sócrates, homem de espírito aberto a todas as
artes, e não apenas à filosofia, enquanto aguardava o cálice da morte,
aproveitou seus últimos minutos de vida para estudar uma ária para flauta. Um
discípulo, observando a cena, perguntou: - Sócrates, eis que o carrasco já
prepara o teu veneno. Vais morrer em poucos minutos e ainda assim te dedicas a
tocar uma flauta? Na calma de quem enfrenta a morte como quem a desafia e
vence, ele respondeu: - Não importa. Sei que vou morrer agora. Mas, antes de
morrer, quero aprender a tocar essa melodia na flauta!” Nunca é tarde para
aprender. A aprendizagem só termina com a morte. Enquanto ela não chega, o
homem deve lutar – e, se possível, vencer – sua ignorância. Sócrates não temeu
a morte; a filosofia o preparou para encontrá-la. Como disse Platão em Fédon:
"[...] os que se dedicam à filosofia são homens que se estão preparando
para morrer." Assim, na companhia da música, o homem que ensinou ao
Ocidente a arte de contemplar o sol despediu-se do mundo das sombras.
Não há como não se entristecer ao
perceber que, ao me manter distante da música, impedi que ela visitasse e
revelasse recantos silenciosos e inesperados do meu espírito.
Sinto-me ainda mais envergonhado,
ampliando as dores da minha falta, quando leio Clarice Lispector, em seu livro A
Hora da Estrela, falar sobre como a música a afetou e a revelou. “[...]
Dedico-me à tempestade de Beethoven. À vibração das cores neutras de Bach. A
Chopin que me amolece os ossos. A Stravinsky que me espantou e com quem voei em
fogo. À “Morte e Transfiguração”, em que Richard Strauss me revela um destino?
Sobretudo dedico-me às vésperas de hoje e a hoje, ao transparente véu de
Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofiev, a Carl Orff, a Schönberg, aos
dodecafônicos, aos gritos rascantes dos eletrônicos – a todos esses que em mim
atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses profetas do presente
e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste instante explodir
em: eu.”
Infelizmente a vida é perversa e, em
certa circunstância, só nos permite escolher um amor. Fiz minha escolha e
carrego as dores — acompanhadas de suas consequências — por tê-la feito.
Sigamos, sem arrependimentos tardios.
“Se és sábio, melhor, se
quiseres ser sábio, deixa-te de fantasia e aplica as tuas forças a fim de
atingires o quanto antes a perfeição espiritual. Se algo te impede de avançar,
liberta-te, corta o mal pela raiz”. (Sêneca – Carta 17)
Ao longo da vida, até este momento,
enquanto escrevo, sempre exigi silêncio absoluto. Adestrei meu espírito para
conviver em harmonia com os gritos do meu próprio silêncio. Esses, sim,
suporto; fazem parte do ofício. Os demais tornam-se um obstáculo aos meus
movimentos na delirante arte de pensar e, quando possível, escrever. Se, para
muitos, o silêncio é um incômodo, para mim é um prazeroso alento. Nele
encontro-me; nele me salvo.
Agindo assim, tornei-me um chato,
quase obsessivo. Talvez seja por isso que não tenha animais em casa: um latido
ou um miado seriam o bastante para me interromper e desviar dos meus objetivos.
“Creio que falei demais
quando me gabei de poder gozar uma tarde de silêncio e um retiro livre de
interrupções: agora mesmo me chega aos ouvidos um enorme clamor vindo do
estádio, o qual, se me não corta o pensamento, pelo menos o desvia...” (Sêneca
– Carta, 80).
Quando algo perturba o silêncio
essencial ao meu trabalho, perco o controle sobre mim mesmo. Consciente disso –
e também do fato de que maltratar animais é crime, conforme previsto na Lei de
Crimes Ambientais –, cerquei-me de todos os cuidados necessários para evitar
qualquer situação que pudesse me levar a passar o resto dos meus dias atrás das
grades. Sou uma pessoa reservada; falta-me vocação para grandes espetáculos
públicos.
Escolher é decidir entre
alternativas, mas também renunciar a infinitas outras possibilidades.
Se tivesse escolhido a
música em vez da filosofia, teria sido mais feliz? Não sei responder, e quem
poderia saber? Talvez a felicidade se encontre sempre onde não estamos, talvez
resida nas escolhas que deixamos de fazer – “se eu casasse com a filha da minha
lavadeira talvez fosse feliz”. (F. Pessoa) -; mas é possível também que não
seja mais do que uma referência orientadora de nossas ações, um farol que
indica a direção na qual o homem deve fazer suas escolhas, sem nenhuma garantia
que assegure o sucesso da decisão, muito menos a chegada ao destino. É
desperdício de vida tentar agarrar a felicidade, ela nos foge a cada amanhecer.
Ovídio advertiu: “Nunca se deve perder de vista o último dia do homem, nem
declarar que alguém é feliz antes de vê-lo morto e reduzido a cinzas.”
Aristóteles, por sua vez, pergunta: “Será que nenhum humano se poderá declarar
feliz enquanto estiver vivo?... a felicidade requer vida completa” (Ética a
Nicômaco, 1100a).
Se eu tivesse disciplinado meu
espírito para conciliar, ao mesmo tempo, essas duas demandas estéticas tão
essenciais à alma, teria encontrado uma saída mais harmoniosa e, portanto, mais
acertada? Fiz a escolha certa? Jamais saberei. Somos seres desejantes, seres em
falta, que, na multiplicação do pronome se, se, se, buscam
saídas justificadoras para os labirintos de sua própria existência, como se
cada hipótese, cada possibilidade, pudesse oferecer uma resposta, dando-lhe
sentido ao que sempre lhes escapa.
“Quem escreverá a
história do que poderia ter sido o irreparável do meu passado; / Este é o
cadáver. / Se a certa altura eu tivesse me voltado para a esquerda, ao invés
que para a direita; / Se em certo momento eu tivesse dito não, ao invés de sim;
/ Se em certas conversas eu tivesse dito as frases que só agora elaboro; /
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro seria insensivelmente levado a
ser outro também” (F. Pessoa).
A vida, porém, se constrói em torno
das escolhas que fazemos. Muitas vezes, sacrificamos uma paixão para abraçar
outra. O amor que escolhemos pode ser ciumento, egoísta e incapaz de se deixar
partilhar. Em certas ocasiões, para que possamos nos dedicar inteiramente a
esse amor, é preciso fechar todas as portas e janelas, impedindo até mesmo que
um único raio de sol perturbe a harmonia dessa convivência.
Naquele momento, a filosofia me
bastava. Nada deveria interpor-se em nossa relação. Seguia os passos de Cícero,
que buscava “nada empreender que pudesse entrar em concorrência com o estudo da
filosofia”
Mais ainda, adotei a postura de
Sêneca, dei-lhe mais que prioridade, dei-lhe exclusividade. “Não é em horas
esparsas que podemos dedicar-nos à filosofia: devemos tudo negligenciar para
entregar-nos a ela. Jamais lhe consagraremos tempo em demasia. Abandoná-la um
momento é abandoná-la completamente. Ela não fica a nos esperar no ponto em que
a deixamos. É-nos necessário resistir a qualquer outra preocupação e, longe de
nós ampliar nosso raio de atividade, afastar de nós o que não é essencial.
(Sêneca - Cartas a Lucílio)
No meu caso, embora reconheça o peso
de ter relegado a música a uma estante distante do meu espírito, não me
arrependo da escolha que fiz. O sacrifício foi feito em nome da filosofia.
Ninguém surge no mundo com as
potências já inscritas na alma, como acreditava Aristóteles. São as nossas
experiências concretas, vividas no mundo real, que vão configurando a nossa
forma de ser e estar no mundo. Não escolhemos gostar de música porque possuímos
uma potência musical inata em nossa alma. Ao contrário, aprendemos a gostar de
música pelo hábito que vamos adquirindo com a convivência que temos com ela.
Os hábitos moldam a alma pela
repetição de ações ou pelo uso frequente de determinados produtos. De maneira
sutil, passam a regular nossas escolhas sem que nos demos conta.
Transformam-se, por assim dizer, em leis. Não os escolhemos; somos escolhidos
por eles. Sua ausência gera uma sensação de desconforto, um alerta de
incompletude em nosso ser. Tornamo-nos um ser em falta, incompletos, até que,
ao reencontrarmos o que nos falta, possamos finalmente sentir-nos reconciliados
no gozo de nossa unidade identitária.
Logo, algo que, a princípio, não
fazia parte de nossa vida, pela repetição do uso, passa a ser essencial, de
forma que já não nos reconhecemos em sua ausência. Esses hábitos assumem uma
identidade com a nossa forma de ser e ver o mundo. Isso vale para a música que
ouvimos, para a regularidade com que nos dedicamos às nossas orações e, até
mesmo, para o sabonete ou o adoçante que usamos com regularidade.
Todos
nós já fomos afetados pela experiência negativa de ir ao mercado e descobrir
que o produto ao qual estamos habituados está em falta. O que fazer diante
dessa situação? Substituí-lo? Não se substitui um hábito sem que o desejante
seja, de alguma forma, sacrificado. Ao desejante, não resta outra alternativa
senão lamber suas feridas, administrar suas faltas e seguir em frente.
Infelizmente,
pelas circunstâncias da vida, fiz as minhas caminhadas à margem da música e do
futebol. Isso não quer dizer que eu seja um completo ignorante dessas duas
demandas. Claro que não. Tenho feito visitas às suas moradas, mas são visitas
sempre breves, irresponsável, superficial, sem maiores envolvimentos afetivos.
Sigo
em frente, carregando nas paredes da memória as músicas da infância ou aquelas
que, ocasionalmente, ouço no rádio do carro. Sei que o prejuízo é grande, mas
já não há mais o que fazer. A filosofia convidou-me ao silêncio. Aceitei o
convite. O hábito do silêncio fez da solidão a minha pátria.
Passei
a conviver com os incômodos silêncios que a filosofia despertava em mim. Na
verdade, não eram silêncios, mas gritos lacerantes que, como flechas,
transpassavam meu corpo e minha alma. Eu navegava por mares simultaneamente
serenos e revoltos, em uma jornada marcada pela inquietação. No silêncio, ouvia os trovões das minhas tempestades.
Era,
de fato, um silêncio apavorante: o silêncio das perguntas e o silêncio das
respostas. Carregado de medos e com uma alma em crise, buscava,
desesperadamente, um pouco de segurança, buscava um ponto fixo como referência,
algo que me ancorasse em meio ao caos no qual me encontrava.
Assim,
amarrei-me ao mastro para ouvir melhor o canto da filosofia, na esperança de
encontrar sentido e direção. No entanto, ao fazer essa escolha de forma
impensada, sem plena consciência das consequências, tornei-me surdo para outros
cantos, inclusive aquele que, do Olímpo, com a sua lira, Apolo espalhava
pelo mundo.
Em
certa medida, o medo do desconhecido conduzia-me à busca de um refúgio seguro e
tranquilo. Minha alma era frágil demais para enfrentar o terreno pantanoso da
loucura; sequer possuía armas para me defender. Buscava na filosofia um porto
seguro, onde pudesse orientar-me na vida e guiar meus passos. Como um estoico,
almejava a serenidade da alma e esperava encontrá-la na filosofia.
“Eis-me, portanto, sozinho na terra,
tendo apenas a mim mesmo como irmão, próximo, amigo, companhia” (Rousseau – Os devaneios de um
caminhante).
Inocente, de alma livre - como a de
uma criança correndo por um campo aberto, enfrentando apenas a leve resistência
da brisa, eu seguia em direção à filosofia — sem perceber, avançava rumo ao
portal do inferno.
Encontrava-me à beira de uma escolha
que marcaria toda a minha vida. Sendo mais preciso: naquela decisão, estava fazendo
uma escolha existencial. Completamente às cegas, avancei e atravessei aquele
portal.
Para meu espanto, uma nova realidade
se abria ao meu espírito: a busca do conhecimento vem acompanhada de sofrimento
e dor.
“A filosofia [...] não é a posse, é a
busca; não é a certeza, é o risco” (Merleau-Ponty – Elogio da filosofia)
Eu estava iniciando uma caminhada
perigosa e ainda não sabia lidar comigo nesses novos caminhos.
Não
há paz na filosofia. Ela é filha da crise, da angústia, do espanto, do thauma;
essa é a sua origem. Sem um pouco de loucura, não é possível ascender ao
território dos conceitos. Mesmo que você não se reconheça como louco, é
exatamente isso que se torna desde o momento em que escolhe trilhar os caminhos
da filosofia. Neste mundo, não há lugar para os normais. Aqui, todos são
loucos.
Alice,
perdida, sem saber qual direção tomar, buscando orientar-se, pergunta ao Gato
de Cheshire:
“Que
tipo de gente mora por aqui? “Nesta direção', disse o Gato, girando a pata
direita, 'mora um Chapeleiro. E nesta direção', apontando com a pata esquerda,
'mora uma Lebre de Março. Visite quem você quiser, ambos são loucos.' – 'Mas eu
não ando com loucos', observou Alice. – 'Oh, você não tem como evitar', disse o
Gato, 'somos todos loucos por aqui. Eu sou louco. Você é louca.' – 'Como é que
você sabe que eu sou louca?', perguntou Alice. – 'Você deve ser', respondeu o
Gato, 'senão não teria vindo para cá.” (Lewis Carroll – Alice no País das
Maravilhas)
Por
conta da pobreza, minha alma não foi catequizada, nem pelo esporte, nem pela
música. Quem é pobre não tem tempo para o lazer, tampouco para os gozos do
espírito.
Na pequena cidade onde nasci e vivi
até os meus doze anos, não havia televisão. Melhor dizendo, havia, mas era um
privilégio de poucos, que, no total, não passavam de cinco.
Ainda
guardo na memória os nomes dos jogadores que fizeram parte daquela conquista
histórica: Ubirajara, Ubaldo, Sapatão, Mário Braga, Marinho, Nico, Jurinha,
Freitas, João Daniel, Quincas e Robertinho. Aquela bela imagem me marcou
profundamente; era a primeira vez que contemplava algo tão impactante. Sem
dúvida, um grande acontecimento.
Uma cidade grande, um time grande,
campeão - não era pouca coisa. Até aquele momento, eu não conhecia outro time,
senão o Cruzeiro, de minha terra natal, dirigido por Asterino, que também
acumulava a função de técnico. Minha cidade natal era simples, mas possuía um
time vencedor. Para nos orgulharmos de nosso chão, bastava uma bela igreja para
frequentar aos domingos e um time vencedor para torcer. E tínhamos ambos: o
Cruzeiro e a Igreja de Santo Antônio.
Depois das duras provações da semana,
o domingo era um dia de alívio e gozo: pela manhã, íamos à missa, pedíamos
perdão pelos pecados cometidos e, ajoelhados, em profunda contrição, jurávamos,
diante do altar, que não mais iríamos pecar. Mas, claro, na semana seguinte, lá
estávamos novamente, pagando as mesmas penitências pelos mesmos pecados.
À tarde, éramos presenteados com o
espetáculo de futebol que o Cruzeiro nos oferecia. Começávamos a segunda-feira
com a alma repleta de vitórias, reconciliados com Deus e embalados pelo
esporte. Ficava fácil enfrentar o peso dos dias vindouros.
Profundamente influenciado por aquela
foto descortinada numa página do jornal, tornei-me torcedor do Fluminense de
Feira. Fui uma ou duas vezes ao estádio. Cheguei a assistir a um grande
confronto entre Fluminense e Atlético de Alagoinhas, times de grande
rivalidade. Antes de acabar o jogo, assustei-me com um conflito entre as
torcidas, com vários torcedores machucados.
Em paralelo a esse fascínio pelo time
estampado em uma página de jornal, algo extraordinário estava para acontecer em
minha vida. Minha chegada à cidade grande coincidiu com o momento em que a
seleção brasileira iniciava sua trajetória em busca da conquista do
tetracampeonato. O Brasil fantasiou-se de verde e amarelo; não se pensava nem
se falava em outra coisa. O país inteiro parou: a seleção brasileira entraria
em campo.
Eu, como todos, estava tomado por uma
espécie de fanatismo religioso. Aquela seleção parecia destinada a nos redimir
de todos os nossos pecados, a nos salvar das dores e dos sofrimentos,
conduzindo-nos à tão sonhada terra da vitória. Naquele momento, eu me sentia o
homem mais rico do mundo; minha pobreza era invisível aos meus olhos.
A conquista do Fluminense de Feira já
havia sido grandiosa, mas isso agora era algo de dimensão mundial. Eu me via
profundamente impressionado. A cada dia, um novo jogo; a cada dia, um
espetáculo à minha disposição.
Mesmo na cidade grande, onde a posse
de televisores já era bem disseminada, em minha casa ainda não tínhamos um.
Para compensar, recorria às casas de vizinhos mais abastados e, em algumas
ocasiões, a espaços públicos.
Nos dias de jogos, um colégio próximo
à minha casa colocava, em uma de suas janelas, uma televisão à disposição do
público. Algo bem democrático. O espetáculo ao alcance dos pobres. Na praça não
tinha portas nem janelas, era de todos: chegue, assista. Pela primeira vez, eu
tinha uma televisão disponível para mim. Mas não era só isso, o mundo em preto
e branco estava de partida, as imagens do novo mundo eram coloridas.
Eu estava lá, aos meus doze anos,
quando, em 21 de junho de 1970, a Seleção Brasileira se consagrou tricampeã
mundial com uma vitória acachapante sobre a Itália por 4 a 1. Tomado por uma
alegria indescritível, comemorei intensamente aquele momento histórico ao lado
da minha gangue infantil.
Naquele dia, sem piedade, nas portas
dos italianos conhecidos, gritávamos, dançávamos, soltávamos fogos e
comemorávamos mais a derrota deles do que, propriamente, a nossa vitória. Não
aceitávamos que eles, mesmo vivendo no Brasil, torcessem contra a nação que os
acolheu. Sempre fomos conquistados; agora, éramos os conquistadores. Aquilo não
era uma simples vitória: era a redenção de uma nação. Exercitávamos os nossos
direitos de vencedores. Ao vencedor, a glória; ao derrotado, a humilhação.
Imitávamos os grandes generais que, depois da vitória, ordenavam a pilhagem.
Novo mundo, novas cores. Algo
impactante e extraordinário estava acontecendo em minha vida. De certa forma,
mesmo sem perceber plenamente, eu estava mudando. Era como trocar de pele,
atravessar minha primeira grande metamorfose. Sim, graças ao futebol, o meu
mundo em preto e branco ficava para trás. Diante de mim, abria-se um novo mundo.
Era um gozo pleno, ninguém era maior
que nós. Tínhamos o melhor time do mundo. Estava compensado: ao deixar minha
terra natal, abandonei o Cruzeiro, campeão daquele mundo. Ao chegar na cidade
grande, fui premiado por dois campeões: o Fluminense de Feira e a Seleção
Brasileira. Ninguém poderia ser mais feliz do que eu. Tornei-me um fanático
torcedor de futebol.
Naquele momento, eu não queria saber
que vivíamos em um regime de exceção, que nossas cadeias estavam apinhadas de
jovens idealistas que lutavam pela conquista de um mundo mais justo. Não me
incomodava saber que os governantes usavam a Seleção Brasileira como cortina de
fumaça, obscurecendo a razão do povo e impedindo-o de enxergar os horrendos
crimes cometidos nas profundezas de seus perversos submundos.
Os militares, responsáveis pelo golpe
que tomou o poder e impôs um regime ditatorial, sabendo que era necessário
desviar a atenção do povo, colocavam cera em seus ouvidos, evitando assim, que
ouvissem os gritos de dor provenientes de seus sombrios porões.
Pelé, que durante toda
a vida demonstrou ser um homem alheio às questões políticas, reconhece, em suas
memórias, como a seleção brasileira foi usada pelo regime militar para enganar
o povo. Por meio do “pão e circo” — panem et circenses —, práticas
recorrentes desde o Império Romano, ou mesmo antes, mantinha-se o povo iludido,
cego diante de sua verdadeira realidade.
O Coliseu – teatro dos
horrores - modernizou-se: já não se lança cristão às feras, hoje, cega-se o
povo alimentando-lhe o espírito com espetáculos diversos – recorrendo, por
exemplo ao futebol, a grandes festivais de música de gosto duvidoso e às
religiões, que tão bem exercem sua função de controlar seu rebanho sob o regime
do medo.
Acompanhado todos esses ópios a distribuição
de alimentos, tornando espírito e o corpo dependentes do que lhe é ofertado.
Dessa forma, distraíam-se os espíritos e alimentavam-se os corpos de homens
que, antes de pensar nas demandas políticas do seu tempo, preocupavam-se mais
em saciar a fome que lhes corroía o estômago, dando pouca ou nenhuma
importância à verdadeira realidade política que os oprimia. Tal política mostra-se
exitosa para os governantes: o escravo era escravizado, mas não se reconhecia
como tal. Sente-se livre e feliz, sob a proteção de alguém que o amparava e o
alimentava. A alma, cega e inconsciente de si, torna-se servil.
do que refletir sobre a real realidade
política que os oprime.
“Na ocasião circularam
comentários críticos sobre a ditadura estar usando o futebol em seu próprio
benefício. Como jogador, não senti nenhuma pressão política por parte do
governo, embora alguns integrantes da comissão técnica fossem militares, como o
capitão reformado do Exército Cláudio Coutinho. A certa altura de nossa
preparação, ele havia dito que era importante vencermos porque isso acalmaria o
povo."
Essa prática tem sido recorrente ao
longo da história. A política do "pão e circo" sempre foi utilizada
por governantes, especialmente por tiranos, independentemente da tonalidade de
sua bandeira ideológica, como estratégia para enganar o povo, entorpecê-lo e
conduzi-lo à servidão.
Vivíamos em uma nação de cegos.
Dopados pela alegria, não enxergávamos as tempestades.
No período daquela Copa, o Brasil
ostentava duas bandeiras: a do orgulho pelo futebol e a da vergonha na
política. Eu tinha apenas 12 anos e não sabia, de fato, o que estava
acontecendo. Mas e se soubesse? Acho que ainda assim continuaria torcendo pela
Seleção Brasileira, como todo o povo brasileiro, que, naqueles dias, envolto em
um ufanismo extremo, era uma nação calçando chuteiras, dançando e cantando a
mesma música:
“Noventa milhões em ação,
pra frente Brasil, no meu coração. [...] De repente é aquela corrente pra
frente parece que todo o Brasil deu a mão. Todos ligados na mesma emoção, tudo
é um só coração. Todos juntos vamos, pra frente Brasil, salve a seleção.”
Sei que, para muitos, a vida sem
futebol ou sem religião perde grande parte de seu sentido. Sem o “circo”, a
realidade torna-se real demais — despojada de seus encantos, árida, quase
insuportável. Sem alternativa, prisioneiro de um mundo que lhe nega o direito
de sonhar, o homem facilmente se deixa seduzir por um universo encantado, onde
imagina encontrar aquilo que a existência concreta lhe recusa: a paz e a
felicidade eterna. Como resistir a um convite tão sedutor!
Eu, como eles, também precisava da
minha dose de ópio. Drogávamo-nos de religião e futebol — e éramos felizes.
Tudo parecia definitivo. Tínhamos o
melhor Deus e o melhor time do mundo. Não precisávamos de mais nada. Vivíamos
em uma nação vencedora. Nada de mal poderia nos alcançar. Encontrávamo-nos
protegidos e alegres. Orgulhosos, cantávamos:
“Eu te amo, meu Brasil,
eu te amo / Meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil / Eu te amo, meu
Brasil, eu te amo / Ninguém segura a juventude do Brasil.”
A sensação de que todas aquelas
conquistas seriam para sempre me envolvia. Ledo engano: não durou muito. O amor
logo se desencantou, as chamas das vitórias começaram a se apagar; era um fogo-fátuo.
O devoto foi se tornando agnóstico e, em seguida, tornou-se um ateu convicto.
Vai saber por quê, uma porta se abriu
em minha vida: a filosofia. Como eu era muito pobre e precisava trabalhar para
sobreviver, o tempo livre que me restava era dedicado exclusivamente aos
estudos. Eu sabia, desde cedo, que, se quisesse ser alguém na vida, teria de
ser meu próprio artifíce. Queria conhecer o mundo, mas antes precisava conhecer
e cuidar de mim mesmo. “Ainda não sou capaz”, confessa Sócrates no Fedro, “de
conhecer a mim mesmo; e realmente parece-me ridículo investigar algo mais antes
de compreender isso.”
Não havia saída, ou me construía ou me
perdia no terrível – e perverso – limbo social. Eu era o único responsável por salvar-me
neste mundo. Estava só. Era tempo de autoconstrução. Precisava cuidar de mim.
Tomei-me em minhas próprias mãos e comecei a lapidar-me. Elegi-me como
prioridade. Lancei-me por inteiro a este projeto: salvar-me.
“Entreguemo-nos
inteiramente à doçura de conversar com minha alma.” (Rousseau
- Os devaneios de um
caminhante...)
Era importante estar em uma
universidade, já era um avanço e tanto, mas não bastava, era preciso fazer
desse lugar o local de viver com dignidade nesta vida. A filosofia era a minha
saída. Diante dessa luta pela sobrevivência, estando em uma encruzilhada,
acabei por sacrificar duas paixões: a música e o futebol. Tornei-me, não por
vontade própria, ainda não eram deliberações regidas pelo discernimento da
razão, mas prisioneiro das circunstâncias, um amante de Sophia. Sem consciência
da escolha, escolhi. Fiz do templo de Atenas, a minha morada.
Triste fico, mas não arrependido. Há momentos
em que você não pode não escolher, tem que fazer uma escolha, mesmo sem saber a
qual caminho ela vai lhe levar. O futuro é terra estrangeira.
“O maior obstáculo à vida
é a expectativa, fica na dependência do amanhã e perde o momento presente. [...]Todo
o futuro está na incerteza: viva imediatamente” (Sêneca Sobre a brevidade da
vida - IX)
Sabemos que o que não
nos falta são faltas. Se muito pedimos à vida, muito ela nos nega. Às vezes - ou quase sempre -, por
parcimônia, pedimos pouco e, ainda assim, a vida nos nega. Como se essa fosse
sua missão: deixar-nos em falta. Comportamo-nos
como mendigo que, diante de sua fome, busca o alimento do dia – recebendo da
vida apenas o desjejum.
Podemos até desejar
tudo, mas o que nos resta, de tudo aquilo que desejamos, são as nossas faltas.
Somos seres desejantes e, como tais, seres em falta - seres que toma
consciência de si no momento em que tomam consciência das suas carências, das
suas faltas. No limite, contemplamos, contemplando-nos em nossa finitude.
A falta nos identifica e, ao mesmo tempo, nos
humaniza, distinguindo-nos dos deuses - seres plenos e completo, onde não há
espaço para nenhuma carência de ser.
Talvez aí resida a
beleza de sermos quem somos: a beleza da condição humana.
Convenhamos: ser deus
— um ser a quem nada falta — deve ser profundamente entediante.
“Grande, no
homem, é ele ser uma ponte e não um objetivo: o que pode ser amado, no homem, é
ser ele uma passagem e um declínio” (Nietzsche - Assim Falou Zaratustra)
Se buscamos, a cada instante, nos
aprimorar, corrigir nossos erros e superar nossas falhas, é porque, no mundo
humano, almejamos ser, amanhã, um pouco melhores do que somos hoje. Se assim é,
sigamos em frente — sempre em frente — evitando, sempre que possível, as
armadilhas que tentam nos aprisionar ao passado. Seguir em frente é o que nos
resta.
Mesmo sem saber onde isso vai dar, é preciso continuar... seguir em frente.
Hoje, depois de uma
longa caminhada, não posso negar a falta que a música faz à minha alma;
assentado na serenidade da idade, percebo que o prejuízo não teria sido tão
grande se eu tivesse conciliado a filosofia com a música. Mas, como já disse,
tornei-me amante da filosofia e, com medo de perdê-la, dediquei-lhe todos os
meus encantos. Esse é um caminho sem volta. Quem cai em suas armadilhas
torna-se seu prisioneiro — e essa é uma prisão em que, por estranho que pareça,
o prisioneiro se sente livre. Está preso a uma prisão que o liberta. Antes, ao
contrário, eu vivia encerrado na sombria cela da ignorância, onde o cativo, sem
reconhecer a própria prisão, acredita ser livre.
À beira da condenação
à morte, Sócrates ouviu de um de seus acusadores a seguinte proposta:
“Deixar-te-emos ir, mas com a condição de abandonares a investigação e a
filosofia; se fores apanhado novamente nessa prática, morrerás.” Sócrates
recusou, afirmando: “Enquanto tiver alento e capacidade, não deixarei de
filosofar.” Preferiu a morte a renunciar à filosofia — e assim são os loucos:
escolhem mundos que poucos ousam habitar.
Se pequei ao calar a música em mim,
ao menos creio, sem querer parecer vaidoso - já sendo -, que não me equivoquei
ao escolher a filosofia. Desde o dia em que a escolhi, nunca mais conheci a
paz; ela se fez a causa dos meus desassossegos. Caminhando por seus caminhos,
descobri que não alcançaria a terra firme sem antes vencer a revolta do mar.
Tomei consciência de que, para conquistar a alegria, precisaria prospectá-la
nas minhas dores. “Minha jornada mais lucrativa
começou no dia em que naufraguei e perdi toda a minha fortuna.” (Zenão)
Não posso negar: em meio ao caos em
que me cercava, encontrei breves instantes de sossego. Nos caminhos da
filosofia, deparei-me com veredas que me conduziram a afetos positivos. Transfigurados
em alegria, esses afetos expandiram meu ser, tornando-me um alegre caçador de
mim. Já não procuro mais; basta-me colher o que plantei. Se é a felicidade
certa o que se busca, talvez a filosofia não seja o lugar mais adequado para
encontrá-la. Antifão, um sofista, diz, dirigindo-se a Sócrates:
“Eu pensava, Sócrates, que os que professam
a filosofia, fossem mais felizes”. (Xenofonte – Memoráveis, I: VI)
Alegre
e sem arrependimentos, vou administrando as dores — e os danos — que a ausência
da música impõe ao meu espírito. Quanto ao futebol, não me faz falta; permaneço
sereno em minha indiferença, enquanto caminho em direção ao dia de hoje.
O que me reserva o amanhã? Não
sei — e tampouco quero saber. Hoje, falta-me tempo para pensar no amanhã. Amanhã,
quando o amanhã chegar — se chegar — pensarei nele. Hoje, livre de
expectativas, só tenho tempo para o hoje. Não me peça que me antecipe a um
amanhã que ainda não chegou. Hoje, só quero caminhar. Deixem-me caminhar —
apenas caminhar... sem amanhãs. Hoje, o hoje basta-me.







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