FALTAS - MÚSICA/FUTEBOL
fevereiro 08, 2025Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
FALTAS
MÚSICA/FUTEBOL
“Só os loucos andam por aqui”
Em
um domingo qualquer, sem nada para fazer e sem ânimo para atividades físicas ou
intelectuais, começo a zapear a TV em busca de algo com que eu pudesse gastar
meu ócio irresponsável. De repente, deparo-me com uma reportagem sobre dois
jogadores que marcaram época: Raí e Palhinha. Segundo a matéria, tratava-se de
uma dupla espetacular. Sem interesse pelo assunto, mudei de canal.
Antes dessa reportagem, havia ido ao ar outra, sobre
um jogo da Seleção Brasileira. Apesar do emocionante apelo de Pelé - “Pelo amor
de Deus, o Brasil não pode esquecer das criancinhas” -, ela tampouco prendeu
minha atenção. Irrito-me com minha própria apatia. Pergunto-me: por que o
futebol não desperta em mim nenhuma paixão?
Não tenho uma resposta que se sustente. Simplesmente,
não consigo entregar minha alma a esse esporte. Sou indiferente aos seus
afetos: não me comovem nem para o bem, nem para o mal. Não me alegram, tampouco
me entristecem. Não nutro por ele qualquer forma de admiração. E, se não o
admiro, só me resta ser-lhe indiferente.
Curiosamente,
acabei adotando uma regra: como não torço por nenhum time em particular, acabo
torcendo pelo sucesso do time mais fraco, mesmo que jogando contra a Seleção
Brasileira. Tenho muitos irmãos, quase todos apaixonados por futebol. Vejo a
direção para onde vão seus afetos e vou na direção contrária. Eles torcem pelo Esporte
Clube Vitória, eu finjo que torço pelo Esporte Clube Bahia. E o pior: eles
acreditam.
Ao
refletir sobre outro prazer da alma, a música, percebo que também não nutro uma
paixão especial por ela. Meu Deus, como se não bastasse a indiferença pelo
esporte, esta pobre alma também não se deixou encantar pela música! Gosto de
música, mas sem entusiasmo ou grandes conhecimentos. Para essa ausência de
fervor, há uma justificativa - embora eu saiba que, diante de uma falta tão
grave, nenhuma explicação me livraria da punição severa dos deuses da música.
Conheço pessoas que conseguem se concentrar em suas
atividades profissionais mesmo cercadas de barulho. Tenho amigos que trabalham
enquanto ouvem música.
Lembro-me
de uma vez, ainda no mosteiro de São Bento, em Salvador, estava sendo filmados
cenas do filme, se não me engano, Terra em Transe, de Glauber Rocha.
Enquanto observava as gravações, algo chamou
minha atenção. A atriz, provavelmente Norma Bengell, sozinha em um
canto, memorizava o seu texto. O que mais me impressionou foi que, enquanto
estudava, ouvia música em alto volume. Segundo ela, a música ajudava na
memorização. Era quase uma técnica para auxiliá-la no seu ofício. Assim como
ela, conheci muitos, que não renunciam à música como companheira de trabalho.
Que inveja! Este, definitivamente, não é o meu caso.
No
correr do tempo, as circunstâncias da vida me direcionaram para os estudos em
filosofia. Fui conquistado por Atena, a deusa da sabedoria. Como veremos em
breve, tornei-me um estudante de filosofia, o que mais tarde viria a ser minha
profissão. Desde então, tenho dedicado meus dias ao estudo e à docência. Vivi
grande parte da minha vida entre as bibliotecas. Neste espaço sagrado dedicado
aos livros, reina uma regra simples e universal: o silêncio.
Estudar
é um ato solitário. Eu poderia ter aproveitado essa solidão para conciliar os
estudos com a música. Bastaria recorrer a um fone de ouvido e, assim, mesmo em
uma biblioteca, conseguiria estudar enquanto ouvia música, sem incomodar
ninguém. No entanto, fracassei todas as vezes que tentei adotar esse recurso.
Não consigo me concentrar com nenhum ruído. Ou escuto música, ou estudo - fazer
ambos ao mesmo tempo é impossível. Quando precisei sacrificar uma das opções,
foi a música que perdeu sua primazia em minha alma.
Não
tenho dúvida de que essa escolha lançou sombras sobre o meu espírito. Ela não
me tornou um homem melhor. Sem a música, tenho certeza de que meu mundo se
tornou um pouco mais descolorido. Shakespeare, em O Mercador de Veneza,
diz: “Todo homem que em
si não traga música. E a quem não toquem doces sons concordes, é de traições,
pilhagens, armadilhas. Seu espírito vive em noite obscura, Seus afetos são
negros como o Érebo: Não se confie em homem tal.” Sócrates, homem de espírito aberto a todas as
artes, e não apenas à filosofia, enquanto aguardava o cálice da morte,
aproveitou seus últimos minutos de vida para estudar uma ária para flauta. Um
discípulo, observando a cena, perguntou: - Sócrates, eis que o carrasco já
prepara o teu veneno. Vais morrer em poucos minutos e ainda assim te dedicas a
tocar uma flauta? Na calma de quem enfrenta a morte como quem a desafia e
vence, ele respondeu: - Não importa. Sei que vou morrer agora. Mas, antes de
morrer, quero aprender a tocar essa melodia na flauta!” Nunca
é tarde para aprender. A aprendizagem só termina com a morte. Enquanto ela não
chega, o homem deve lutar – e, se possível, vencer – sua ignorância. Sócrates não temeu a morte; a filosofia o preparou
para encontrá-la. Como disse Platão em Fédon: "[...] os que se
dedicam à filosofia são homens que se estão preparando para morrer."
Assim, na companhia da música, o homem que ensinou ao Ocidente a arte de
contemplar o sol despediu-se do mundo das sombras.
Não há como não se entristecer ao perceber que, ao me
manter distante da música, impedi que ela visitasse e revelasse recantos
silenciosos e inesperados do meu espírito.
Sinto-me
ainda mais envergonhado, ampliando as dores da minha falta, quando leio Clarice
Lispector, em seu livro A Hora da Estrela, falar sobre como a música a
afetou e a revelou. “[...] Dedico-me à tempestade de Beethoven. À vibração das
cores neutras de Bach. A Chopin que me amolece os ossos. A Stravinsky que me
espantou e com quem voei em fogo. À “Morte e Transfiguração”, em que Richard
Strauss me revela um destino? Sobretudo dedico-me às vésperas de hoje e a hoje,
ao transparente véu de Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofiev, a Carl Orff, a
Schönberg, aos dodecafônicos, aos gritos rascantes dos eletrônicos – a todos
esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses
profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste
instante explodir em: eu.”
Infelizmente
a vida é perversa e, em certa circunstância, só nos permite escolher um amor.
Fiz minha escolha e carrego as dores — acompanhadas de suas consequências — por
tê-la feito. Sigamos, sem arrependimentos tardios.
“Se és sábio, melhor, se quiseres ser sábio, deixa-te
de fantasia e aplica as tuas forças a fim de atingires o quanto antes a
perfeição espiritual. Se algo te impede de avançar, liberta-te, corta o mal
pela raiz”. (Sêneca – Carta 17)
Ao longo da vida, até este momento, enquanto escrevo,
sempre exigi silêncio absoluto. Adestrei meu espírito
para conviver em harmonia com os gritos do meu próprio silêncio. Esses, sim, suporto; fazem parte do ofício. Os demais
tornam-se um obstáculo aos meus movimentos na delirante arte de pensar e,
quando possível, escrever. Se, para muitos, o silêncio é um incômodo, para mim
é um prazeroso alento. Nele encontro-me; nele me salvo.
Agindo
assim, tornei-me um chato, quase obsessivo. Talvez seja por isso que não tenha
animais em casa: um latido ou um miado seriam o bastante para me interromper e
desviar dos meus objetivos.
“Creio que falei demais quando
me gabei de poder gozar uma tarde de silêncio e um retiro livre de
interrupções: agora mesmo me chega aos ouvidos um enorme clamor vindo do
estádio, o qual, se me não corta o pensamento, pelo menos o desvia...” (Sêneca
– Carta, 80).
Quando algo perturba o silêncio essencial ao meu
trabalho, perco o controle sobre mim mesmo. Consciente disso – e também do fato
de que maltratar animais é crime, conforme previsto na Lei de Crimes Ambientais
–, cerquei-me de todos os cuidados necessários para evitar qualquer situação
que pudesse me levar a passar o resto dos meus dias atrás das grades. Sou uma
pessoa reservada; falta-me vocação para grandes espetáculos públicos.
Escolher é decidir entre alternativas, mas também
renunciar a infinitas outras possibilidades.
Se tivesse escolhido a música em vez da filosofia,
teria sido mais feliz? Não sei responder, e quem poderia saber? Talvez a
felicidade se encontre sempre onde não estamos, talvez resida nas escolhas que
deixamos de fazer – “se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse
feliz”. (F. Pessoa) -; mas é possível também que não seja mais do que uma
referência orientadora de nossas ações, um farol que indica a direção na qual o
homem deve fazer suas escolhas, sem nenhuma garantia que assegure o sucesso da
decisão, muito menos a chegada ao destino. É
desperdício de vida tentar agarrar a felicidade, ela nos foge a cada amanhecer. Ovídio advertiu: “Nunca se deve perder de vista o último dia do homem,
nem declarar que alguém é feliz antes de vê-lo morto e reduzido a cinzas.”
Aristóteles, por sua vez, pergunta: “Será que nenhum humano se poderá declarar
feliz enquanto estiver vivo?... a felicidade requer vida completa” (Ética a
Nicômaco, 1100a).
Se
eu tivesse disciplinado meu espírito para conciliar, ao mesmo tempo, essas duas
demandas estéticas tão essenciais à alma, teria encontrado uma saída mais
harmoniosa e, portanto, mais acertada? Fiz a escolha certa? Jamais saberei.
Somos seres desejantes, seres em falta, que, na multiplicação do pronome se,
se, se, buscam saídas justificadoras para os labirintos de sua
própria existência, como se cada hipótese, cada possibilidade, pudesse oferecer
uma resposta, dando-lhe sentido ao que sempre lhes escapa.
“Quem escreverá a história do que poderia ter sido o
irreparável do meu passado; / Este é o cadáver. / Se a certa altura eu tivesse
me voltado para a esquerda, ao invés que para a direita; / Se em certo momento
eu tivesse dito não, ao invés de sim; / Se em certas conversas eu tivesse dito
as frases que só agora elaboro; / Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
seria insensivelmente levado a ser outro também” (F. Pessoa).
A vida, porém, se constrói em torno das escolhas que
fazemos. Muitas vezes, sacrificamos uma paixão para abraçar outra. O amor que
escolhemos pode ser ciumento, egoísta e incapaz de se deixar partilhar. Em
certas ocasiões, para que possamos nos dedicar inteiramente a esse amor, é
preciso fechar todas as portas e janelas, impedindo até mesmo que um único raio
de sol perturbe a harmonia dessa convivência.
Naquele momento, a filosofia me bastava. Nada deveria
se interpor em nossa relação. Seguindo os passos de Sêneca, dei-lhe mais que
prioridade, dei-lhe exclusividade. “Não é em horas esparsas que podemos
dedicar-nos à filosofia: devemos tudo negligenciar para entregar-nos a ela.
Jamais lhe consagraremos tempo em demasia. Abandoná-la um momento é abandoná-la
completamente. Ela não fica a nos esperar no ponto em que a deixamos. É-nos
necessário resistir a qualquer outra preocupação e, longe de nós ampliar nosso
raio de atividade, afastar de nós o que não é essencial. (Sêneca - Cartas a
Lucílio)
No
meu caso, embora reconheça o peso de ter relegado a música a uma estante
distante do meu espírito, não me arrependo da escolha que fiz. O sacrifício foi
feito em nome da filosofia.
Ninguém
surge no mundo com as potências já inscritas na alma, como acreditava
Aristóteles. São as nossas experiências concretas, vividas no mundo real, que
vão configurando a nossa forma de ser e estar no mundo. Não escolhemos gostar de música porque possuímos uma
potência musical inata em nossa alma. Ao contrário, aprendemos a gostar de
música pelo hábito que vamos adquirindo com a convivência que temos com ela.
Os hábitos moldam a alma pela repetição de ações ou
pelo uso frequente de determinados produtos. De maneira sutil, passam a regular
nossas escolhas sem que nos demos conta. Transformam-se, por assim dizer, em
leis. Não os escolhemos; somos escolhidos por eles. Sua ausência gera uma
sensação de desconforto, um alerta de incompletude em nosso ser. Tornamo-nos um
ser em falta, incompletos, até que, ao reencontrarmos o que nos falta, possamos
finalmente sentir-nos reconciliados no gozo de nossa unidade identitária.
Logo, algo que, a princípio, não fazia parte de nossa
vida, pela repetição do uso, passa a ser essencial, de forma que já não nos
reconhecemos em sua ausência. Esses hábitos assumem uma identidade com a nossa
forma de ser e ver o mundo. Isso vale para a música que ouvimos, para a
regularidade com que nos dedicamos às nossas orações e, até mesmo, para o
sabonete ou o adoçante que usamos com regularidade.
Todos
nós já fomos afetados pela experiência negativa de ir ao mercado e descobrir
que o produto ao qual estamos habituados está em falta. O que fazer diante
dessa situação? Substituí-lo? Não se substitui um hábito sem que o desejante
seja, de alguma forma, sacrificado. Ao desejante, não resta
outra alternativa senão lamber suas feridas, administrar suas faltas e seguir
em frente.
Infelizmente, pelas
circunstâncias da vida, fiz as minhas caminhadas à margem da música e do
futebol. Isso não quer dizer que eu seja um completo ignorante dessas duas
demandas. Claro que não. Tenho feito visitas às suas moradas, mas são visitas
sempre breves, irresponsável, superficial, sem maiores envolvimentos afetivos.
Sigo em frente,
carregando nas paredes da memória as músicas da infância ou aquelas que,
ocasionalmente, ouço no rádio do carro. Sei que o prejuízo é grande, mas já não
há mais o que fazer. A filosofia convidou-me ao silêncio. Aceitei o convite. O
hábito do silêncio fez da solidão a minha pátria.
Passei a conviver com os
incômodos silêncios que a filosofia despertava em mim. Na verdade, não eram
silêncios, mas gritos lacerantes que, como flechas, transpassavam meu corpo e
minha alma. Eu navegava por mares simultaneamente serenos e revoltos, em uma
jornada marcada pela inquietação. No silêncio, ouvia os
trovões das minhas tempestades.
Era,
de fato, um silêncio apavorante: o silêncio das perguntas e o silêncio das
respostas. Carregado de medos e com uma alma em crise, buscava,
desesperadamente, um pouco de segurança, buscava um ponto fixo como referência,
algo que me ancorasse em meio ao caos no qual me encontrava.
Assim,
amarrei-me ao mastro para ouvir melhor o canto da filosofia, na esperança de
encontrar sentido e direção. No entanto, ao fazer essa escolha de forma
impensada, sem plena consciência das consequências, tornei-me surdo para outros
cantos, inclusive aquele que, do Olímpo, com a sua lira, Apolo espalhava
pelo mundo.
Em certa medida, o medo
do desconhecido conduzia-me à busca de um refúgio seguro e tranquilo. Minha
alma era frágil demais para enfrentar o terreno pantanoso da loucura; sequer
possuía armas para me defender. Buscava na filosofia um porto seguro, onde pudesse
orientar-me na vida e guiar meus passos. Como um estoico, almejava a serenidade
da alma e esperava encontrá-la na filosofia.
“Eis-me,
portanto, sozinho na terra, tendo apenas a mim mesmo como irmão, próximo,
amigo, companhia” (Rousseau – Os
devaneios de um caminhante).
Inocente,
com a alma livre como uma criança correndo por um campo aberto, tendo como
única resistência a leve brisa, eu seguia em direção à filosofia — sem saber
que avançava rumo ao portal do inferno.
Sem
saber, sem qualquer certeza, encontrava-me à beira de uma escolha que marcaria
toda a minha vida. Sendo mais assertivo: naquela decisão, estava escolhendo a
minha vida, era uma escolha existencial. Completamente às cegas, avancei e
atravessei aquele portal.
Para
meu espanto, uma nova realidade se abria ao meu espírito: a busca do
conhecimento vem acompanhada de sofrimento e dor.
Minha
vida estava em risco. O que fazer?
Não há paz na filosofia.
Ela é filha da crise, da angústia, do espanto, do thauma; essa é a sua
origem. Sem um pouco de loucura, não é possível ascender ao território dos
conceitos. Mesmo que você não se reconheça como louco, é exatamente isso que
você é, desde o momento em que escolheu trilhar os caminhos da filosofia. Neste
mundo, não há lugar para os normais. Aqui, todos são loucos.
Alice, perdida, sem saber
qual direção tomar, buscando orientar-se, pergunta ao Gato de Cheshire:
“Que tipo de gente mora por aqui? “Nesta direção', disse o
Gato, girando a pata direita, 'mora um Chapeleiro. E nesta direção', apontando
com a pata esquerda, 'mora uma Lebre de Março. Visite quem você quiser, ambos
são loucos.' – 'Mas eu não ando com loucos', observou Alice. – 'Oh, você não
tem como evitar', disse o Gato, 'somos todos loucos por aqui. Eu sou louco.
Você é louca.' – 'Como é que você sabe que eu sou louca?', perguntou Alice. –
'Você deve ser', respondeu o Gato, 'senão não teria vindo para cá.” (Lewis
Carroll – Alice no País das Maravilhas)
Por conta da pobreza,
minha alma não foi catequizada, nem pelo esporte, nem pela música. Quem é pobre
não tem tempo para o lazer, tampouco para os gozos do espírito.
Na
pequena cidade onde nasci e vivi até os meus doze anos, não havia televisão.
Melhor dizendo, havia, mas era um privilégio de poucos, que, no total, não
passavam de cinco.
Ainda
guardo na memória os nomes dos jogadores que fizeram parte daquela conquista
histórica: Ubirajara, Ubaldo, Sapatão, Mário Braga, Marinho, Nico, Jurinha,
Freitas, João Daniel, Quincas e Robertinho. Aquela bela imagem me marcou
profundamente; era a primeira vez que contemplava algo tão impactante. Sem
dúvida, um grande acontecimento.
Uma
cidade grande, um time grande, campeão - não era pouca coisa. Até aquele
momento, eu não conhecia outro time, senão o Cruzeiro, de minha terra natal,
dirigido por Asterino, que também acumulava a função de técnico. Minha cidade
natal era simples, mas possuía um time vencedor. Para nos orgulharmos de nosso
chão, bastava uma bela igreja para frequentar aos domingos e um time vencedor
para torcer. E tínhamos ambos: o Cruzeiro e a Igreja de Santo Antônio.
Depois das duras provações da semana, o domingo era um
dia de alívio e gozo: pela manhã, íamos à missa, pedíamos perdão pelos pecados
cometidos e, ajoelhados, em profunda contrição, jurávamos, diante do altar, que
não mais iríamos pecar. Mas, claro, na semana seguinte, lá estávamos novamente,
pagando as mesmas penitências pelos mesmos pecados.
À tarde, éramos presenteados com o espetáculo de
futebol que o Cruzeiro nos oferecia. Começávamos a segunda-feira com a alma
repleta de vitórias, reconciliados com Deus e embalados pelo esporte. Ficava
fácil enfrentar o peso dos dias vindouros.
Profundamente influenciado por aquela foto
descortinada numa página do jornal, tornei-me torcedor do Fluminense de Feira.
Fui uma ou duas vezes ao estádio. Cheguei a assistir a um grande confronto
entre Fluminense e Atlético de Alagoinhas, times de grande rivalidade. Antes de
acabar o jogo, assustei-me com um conflito entre as torcidas, com vários
torcedores machucados.
Em paralelo a esse fascínio pelo time estampado em uma
página de jornal, algo extraordinário estava para acontecer em minha vida.
Minha chegada à cidade grande coincidiu com o momento em que a seleção
brasileira iniciava sua trajetória em busca da conquista do tetracampeonato. O
Brasil fantasiou-se de verde e amarelo; não se pensava nem se falava em outra
coisa. O país inteiro parou: a seleção brasileira entraria em campo.
Eu, como todos, estava tomado por uma espécie de
fanatismo religioso. Aquela seleção parecia destinada a nos redimir de todos os
nossos pecados, a nos salvar das dores e dos sofrimentos, conduzindo-nos à tão
sonhada terra da vitória. Naquele momento, eu me sentia o homem mais rico do
mundo; minha pobreza era invisível aos meus olhos.
A conquista do Fluminense de Feira já havia sido
grandiosa, mas isso agora era algo de dimensão mundial. Eu me via profundamente
impressionado. A cada dia, um novo jogo; a cada dia, um espetáculo à minha
disposição.
Mesmo na cidade grande, onde a posse de televisores já
era bem disseminada, em minha casa ainda não tínhamos um. Para compensar,
recorria às casas de vizinhos mais abastados e, em algumas ocasiões, a espaços
públicos.
Nos dias de jogos, um colégio próximo à minha casa
colocava, em uma de suas janelas, uma televisão à disposição do público. Algo
bem democrático. O espetáculo ao alcance dos pobres. Na praça não tinha portas
nem janelas, era de todos: chegue, assista. Pela primeira vez, eu tinha uma
televisão disponível para mim. Mas não era só isso, o mundo em preto e branco
estava de partida, as imagens do novo mundo eram coloridas.
Eu
estava lá, aos meus doze anos, quando, em 21 de junho de 1970, a Seleção
Brasileira se consagrou tricampeã mundial com uma vitória acachapante sobre a
Itália por 4 a 1. Tomado por uma alegria indescritível, comemorei intensamente
aquele momento histórico ao lado da minha gangue infantil.
Naquele
dia, sem piedade, nas portas dos italianos conhecidos, gritávamos, dançávamos,
soltávamos fogos e comemorávamos mais a derrota deles do que, propriamente, a
nossa vitória. Não aceitávamos que eles, mesmo vivendo no Brasil, torcessem
contra a nação que os acolheu. Sempre
fomos conquistados; agora, éramos os conquistadores. Aquilo não era uma simples
vitória: era a redenção de uma nação. Exercitávamos os nossos direitos de
vencedores. Ao vencedor, a glória; ao derrotado, a humilhação. Imitávamos os grandes
generais que, depois da vitória, ordenavam a pilhagem.
Novo mundo, novas cores. Algo impactante e
extraordinário estava acontecendo em minha vida. De certa forma, mesmo sem
perceber plenamente, eu estava mudando. Era como trocar de pele, atravessar
minha primeira grande metamorfose. Sim, graças ao futebol, o meu mundo em preto
e branco ficava para trás. Diante de mim, abria-se um novo mundo.
Era um gozo pleno, ninguém era maior que nós. Tínhamos
o melhor time do mundo. Estava compensado: ao deixar minha terra natal,
abandonei o Cruzeiro, campeão daquele mundo. Ao chegar na cidade grande, fui
premiado por dois campeões: o Fluminense de Feira e a Seleção Brasileira.
Ninguém poderia ser mais feliz do que eu. Tornei-me um fanático torcedor de
futebol.
Naquele
momento, eu não queria saber que vivíamos em um regime de exceção, que nossas
cadeias estavam apinhadas de jovens idealistas que lutavam pela conquista de um
mundo mais justo. Não me incomodava saber que os governantes usavam a Seleção
Brasileira como cortina de fumaça, obscurecendo a razão do povo e impedindo-o
de enxergar os horrendos crimes cometidos nas profundezas de seus perversos
submundos.
Os
militares, responsáveis pelo golpe que tomou o poder e impôs um regime
ditatorial, sabendo que era necessário desviar a atenção do povo, colocavam
cera em seus ouvidos, evitando assim, que ouvissem os gritos de dor
provenientes de seus sombrios porões.
Pelé, que durante toda a vida demonstrou ser um homem
alienado das questões políticas, reconhece em suas memórias como a seleção
brasileira foi usada pelo regime militar para ludibriar o povo. Através do riso
e do circo, o povo tornou-se cego para sua verdadeira realidade. “Na ocasião
circularam comentários críticos sobre a ditadura estar usando o futebol em seu
próprio benefício. Como jogador, não senti nenhuma pressão política por parte
do governo, embora alguns integrantes da comissão técnica fossem militares,
como o capitão reformado do Exército Cláudio Coutinho. A certa altura de nossa
preparação, ele havia dito que era importante vencermos porque isso acalmaria o
povo."
Essa
prática tem sido recorrente ao longo da história. A política do "pão e
circo" sempre foi utilizada por governantes, especialmente por tiranos,
independentemente da tonalidade de sua bandeira ideológica, como estratégia
para enganar o povo, entorpecê-lo e conduzi-lo à servidão.
Vivíamos
em uma nação de cegos. Dopados pela alegria, não enxergávamos as tempestades.
No
período daquela Copa, o Brasil ostentava duas bandeiras: a do orgulho pelo
futebol e a da vergonha na política. Eu tinha apenas 12 anos e não sabia, de
fato, o que estava acontecendo. Mas e se soubesse? Acho que ainda assim
continuaria torcendo pela Seleção Brasileira, como todo o povo brasileiro, que,
naqueles dias, envolto em um ufanismo extremo, era uma nação calçando
chuteiras, dançando e cantando a mesma música:
“Noventa milhões em ação, pra frente Brasil, no meu
coração. [...] De repente é aquela corrente pra frente parece que todo o Brasil
deu a mão. Todos ligados na mesma emoção, tudo é um só coração. Todos juntos
vamos, pra frente Brasil, salve a seleção.”
Sei
que, para muitos, a vida sem futebol e sem religião perde grande parte de seu
sentido. Sem o 'circo', a realidade se torna real demais, perde seus encantos e
fecha-se para um outro mundo, no qual, por meio de fantasias e delírios, o
homem encontra o sossego que o mundo real insiste em lhe negar.
Eu,
assim como eles, também precisava da minha dose de ópio. Drogávamo-nos com
religião e futebol — e éramos felizes.
Tudo
parecia definitivo. Tínhamos o melhor Deus e o melhor time do mundo. Não
precisávamos de mais nada. Vivíamos em uma nação vencedora. Nada de mal poderia
nos alcançar. Encontrávamo-nos protegidos e alegres. Orgulhosos, cantávamos:
“Eu te amo, meu Brasil, eu te amo / Meu coração é
verde, amarelo, branco, azul-anil / Eu te amo, meu Brasil, eu te amo / Ninguém
segura a juventude do Brasil.”
A
sensação de que todas aquelas conquistas seriam para sempre me envolvia. Ledo
engano: não durou muito. O amor logo se desencantou, as chamas das vitórias
começaram a se apagar; era um fogo-fátuo. O devoto foi se tornando
agnóstico e, em seguida, tornou-se um ateu convicto.
Vai saber por quê, uma porta se abriu em minha vida: a
filosofia. Como eu era muito pobre e precisava trabalhar para sobreviver, o
tempo livre que me restava era dedicado exclusivamente aos estudos. Eu sabia,
desde cedo, que, se quisesse ser alguém na vida, teria de ser meu próprio artifíce.
Queria conhecer o mundo, mas antes precisava conhecer e cuidar de mim mesmo. “Ainda
não sou capaz”, confessa Sócrates no Fedro, “de conhecer a mim mesmo; e
realmente parece-me ridículo investigar algo mais antes de compreender isso.”
(Platão. Fedro).
Não havia saída, ou me construía ou me perdia no terrível
– e perverso – limbo social. Eu era o único responsável por salvar-me neste
mundo. Estava só. Era tempo de autoconstrução. Precisava cuidar de mim.
Tomei-me em minhas próprias mãos e comecei a lapidar-me. Elegi-me como
prioridade. Lancei-me por inteiro a este projeto: salvar-me.
“Entreguemo-nos
inteiramente à doçura de conversar com minha alma.” (Rousseau - Os devaneios de um caminhante...)
O primeiro
movimento foi em direção aos livros. Como um náufrago, ancorei-me em suas
páginas em busca de salvação. Tracei o
meu destino: estudar. Uma decisão que me veio tardiamente. Eu precisava correr atrás
do prejuízo — muitas páginas a serem lidas para compensar as que deixei de ler
no passado. Prestei vestibular e fui aprovado no curso de Filosofia. Começava
ali a minha caminhada pelo vasto universo das ideias.
Era importante estar em uma universidade, já era um
avanço e tanto, mas não bastava, era preciso fazer desse lugar o local de viver
com dignidade nesta vida. A filosofia era a minha saída. Diante dessa luta pela
sobrevivência, estando em uma encruzilhada, acabei por sacrificar duas paixões:
a música e o futebol. Tornei-me, não por vontade própria, ainda não eram
deliberações regidas pelo discernimento da razão, mas prisioneiro das
circunstâncias, um amante de Sophia. Sem consciência da escolha, escolhi. Fiz
do templo de Atenas, a minha morada.
Triste fico,
mas não arrependido. Há momentos em que você não pode não escolher, tem que
fazer uma escolha, mesmo sem saber a qual caminho ela vai lhe levar. O futuro é
terra estrangeira.
“O maior obstáculo à vida é a
expectativa, fica na dependência do amanhã e perde o momento presente. [...]Todo
o futuro está na incerteza: viva imediatamente” (Sêneca Sobre a brevidade da
vida - IX)
Sabemos que o que não nos falta são faltas. Se muito
pedimos à vida, muito ela nos nega. Às vezes - ou
quase sempre -, por parcimônia, pedimos pouco e, ainda assim, a vida nos nega.
Como se essa fosse sua missão: deixar-nos
em falta. Comportamo-nos como mendigo que, diante de sua fome, busca o alimento
do dia – recebendo da vida apenas o desjejum.
Podemos até desejar tudo, mas o que nos resta, de tudo
aquilo que desejamos, são as nossas faltas. Somos seres desejantes e, como
tais, seres em falta - seres que toma consciência de si no momento em que tomam
consciência das suas carências, das suas faltas. No limite, contemplamos,
contemplando-nos em nossa finitude.
A falta nos
identifica e, ao mesmo tempo, nos humaniza, distinguindo-nos dos deuses - seres
plenos e completo, onde não há espaço para nenhuma carência de ser.
Talvez aí resida a beleza de sermos quem somos: a
beleza da condição humana.
Convenhamos: ser deus — um ser a quem nada falta —
deve ser profundamente entediante.
“Grande,
no homem, é ele ser uma ponte e não um objetivo: o que pode ser amado, no
homem, é ser ele uma passagem e um declínio” (Nietzsche - Assim Falou
Zaratustra)
Se buscamos, a cada instante, nos aprimorar, corrigir
nossos erros e superar nossas falhas, é porque, no mundo humano, almejamos ser,
amanhã, um pouco melhores do que somos hoje. Se assim é, sigamos em frente —
sempre em frente — evitando, sempre que possível, as armadilhas que tentam nos
aprisionar ao passado. Seguir em frente é o que nos resta.
Mesmo sem saber onde isso vai dar, é preciso continuar... seguir em frente.
Hoje, depois de uma longa caminhada, não posso negar a
falta que a música faz à minha alma; assentado na serenidade da idade, percebo
que o prejuízo não teria sido tão grande se eu tivesse conciliado a filosofia
com a música. Mas, como já disse, tornei-me amante da filosofia e, com medo de
perdê-la, dediquei-lhe todos os meus encantos. Esse é um caminho sem volta.
Quem cai em suas armadilhas torna-se seu prisioneiro — e essa é uma prisão em
que, por estranho que pareça, o prisioneiro se sente livre. Está preso a uma
prisão que o liberta. Antes, ao
contrário, eu vivia encerrado na sombria cela da ignorância, onde o cativo, sem
reconhecer a própria prisão, acredita ser livre.
À beira da condenação à morte, Sócrates ouviu de um de
seus acusadores a seguinte proposta: “Deixar-te-emos ir, mas com a condição de
abandonares a investigação e a filosofia; se fores apanhado novamente nessa
prática, morrerás.” Sócrates recusou, afirmando: “Enquanto tiver alento e
capacidade, não deixarei de filosofar.” Preferiu a morte a renunciar à
filosofia — e assim são os loucos: escolhem mundos que poucos ousam habitar.
Se pequei ao calar a música em mim, ao menos creio,
sem querer parecer vaidoso - já sendo -, que não me equivoquei ao escolher a
filosofia. Desde o dia em que a escolhi, nunca mais conheci a paz; ela se fez a
causa dos meus desassossegos. Caminhando por seus
caminhos, descobri que não alcançaria a terra firme sem antes vencer a revolta
do mar. Tomei consciência de que, para conquistar a alegria, precisaria
prospectá-la nas minhas dores. “O espírito só
conquista a sua verdade, quando encontra a si próprio na dilaceração absoluta”
(Hegel – Fenomenologia do Espírito). Ou, como disse
Zenão: “Minha jornada mais lucrativa começou no dia em que naufraguei e perdi
toda a minha fortuna.”
Não
posso negar: em meio ao caos em que me cercava, encontrei breves instantes de
sossego. Nos caminhos da filosofia, deparei-me com veredas que me conduziram a
afetos positivos. Transfigurados em alegria, esses afetos expandiram meu ser,
tornando-me um alegre caçador de mim. Já não procuro mais; basta-me colher o
que plantei. Se é a felicidade certa o que se busca, talvez a filosofia não seja
o lugar mais adequado para encontrá-la. Antifão, um sofista, diz, dirigindo-se
a Sócrates:
“Eu pensava,
Sócrates, que os que professam a filosofia, fossem mais felizes”.
(Xenofonte – Memoráveis, I: VI)
Alegre
e sem arrependimentos, vou administrando as dores — e os danos — que a ausência
da música impõe ao meu espírito. Quanto ao futebol, não me faz falta; permaneço
sereno em minha indiferença, enquanto caminho em direção ao dia de hoje.
O que me reserva o amanhã? Não sei — e tampouco
quero saber. Hoje, falta-me tempo para pensar no amanhã. Amanhã, quando o
amanhã chegar — se chegar — pensarei nele. Hoje, livre de expectativas, só
tenho tempo para o hoje. Não me peça que me antecipe a um amanhã que ainda não
chegou. Hoje, só quero caminhar. Deixem-me caminhar — apenas caminhar... sem
amanhãs. Hoje, o hoje basta-me.
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