O CRIME
março 17, 2025Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
O
CRIME
Não é preciso muito para matar uma pessoa:
basta convencê-la de que ninguém precisa do que ela faz. (Dostoiévski)
Gosto
dos crimes noturnos, especialmente porque, ocorrendo enquanto todos dormem,
eles não incomodam ninguém — exceto a vítima.
Fora do burburinho do mundo, em um silêncio
metafísico, um ser, deixa de ser visto.
O
crime de Raskólnikov, em particular, me provoca...
É
bom saber que a culpa é inteiramente sua. Ao mantê-la sob seu domínio, você
passa a conviver com ela, controlá-la, domá-la, subordinando-a às suas rédeas,
eliminando a necessidade de que um desconhecido – um intruso qualquer, dizendo-se
da lei – apareça para chancelar quem você é. Essa responsabilidade torna-se
exclusivamente sua; é um direito conquistado por você. Em torno dele, você
ergueu cercas e proclamou: “Este crime é meu.” Ninguém tem o direito de
ultrapassar os limites cercados. O crime transformou-se em um bem particular,
uma propriedade privada.
Se
alguém tem a intenção de julgar um crime, que vá cometer o seu; mas esse, em
particular, tem a digital da minha alma, não deixarei ninguém o farejar. Quero
vivenciá-lo em um enfrentamento solitário. Justificá-lo — ou não — dependerá
das ninhas cabriolas morais.
Sou
o meu próprio carcereiro; minhas inquietações transformam-se nas paredes da
minha cela. Longe do olhar do outro, terei que enfrentar, sozinho, as
consequências do meu ato e, antes que o julgamento final lance seu veredito,
não conseguirei silenciar os gritos das motivações que me impulsionaram ao
crime, levando-me a me perder e, às vezes, a me encontrar nas infinitas
possibilidades desse meu labirinto existencial. Nessa tortura de dores, sou
simultaneamente o juiz e o réu. Cometi o crime; cabe a mim, e somente a mim,
julgar-me.
Haverá
juiz mais implacável que este?
“Eu me matei e não a velhota! Ali, aniquilei-me de uma
vez por todas! … A velhota foi morta pelo diabo, e não por mim…”
Sempre
tive medo de sangue, mas o fileto que escorria do canto da boca da vítima,
enquanto seus olhos parados, fixo no teto, se apagavam, me proporcionava um
prazer inexplicável. Fazia-me bem saber que aquele corpo sem vida, abandonado
descuidadamente ao chão, encontrou em minhas mãos a consumação de seu destino.
Nessa
noite o mundo estava dividido entre dois territórios: o da morte e o da
sexualidade. Sem que combinassem comigo, tornei-me vítima desses dois impulsos.
A
noite começava – lá pelas zero horas – e, ao adormecer, iniciou-se o meu tormento.
Nem o sono havia se instalado em mim quando, de repente, me vi matando um
homem.
Não me pergunte o
motivo; simplesmente, matei-o.
Resta-me apenas
uma lembrança difusa: ao meu lado, uma amiga — prestativa e solidária às minhas
carências sexuais — sussurrava-me: "Mate-o. Mate-o."
Obedeci. E matei-o.
Por quê? Não sei.
Foi um ato gratuito – como tantos outros que cometemos quando a razão, essa
renitente sentinela, por um instante, se rende ao cansaço.
Entretanto,
não posso negar que, mesmo sem ter uma causa pessoal ou um desafeto com a
vítima, fui tomado por um sentimento de prazer ao assumir a responsabilidade de
conduzi-la ao êxito letal.
O
que me proporcionava prazer não era tanto o ato de tirar uma vida, mas a
ausência de motivo para fazê-lo: uma morte gratuita, sem causa ou finalidade,
que silenciava um corpo para sempre. A falta de motivações tornava o ato
sublime e leve, como uma pena que, sem resistência, se deixa levar pelo vento.
Encontrar
uma justificativa à qual a culpa possa ser ancorada alivia o peso da cruz do
pecador. Pode-se alegar que o crime não foi cometido por vontade própria, mas
motivado por um impulso, um desejo, razões políticas, vingança, traição,
paixão, pela conquista do poder ou até mesmo por uma insignificante antipatia
pessoal.
Olhava
para todos os lados, inclusive para trás, em busca de uma motivação segura na
qual pudesse albergar minha culpa. Tentativas em vão. Era, de fato, um crime
sem motivo. Um crime gratuito.
Acabara
de matar um piolho humano, descendente de uma lêndea sem identidade, num gesto
tão mecânico quanto descartar o lixo na calçada ou chutar uma pedra que
atrapalha o caminho.
A morte se consumou. Era como uma pedra lançada,
sem volta. De fato, era uma morte sem ressurreição. Agora, já não havia
alternativa: encontrava-me prisioneiro de uma escolha que fiz: acabara de
trazer a morte para dentro de mim. Teria de conviver com ela. O meu ato
tornou-se o meu castigo.
Sem piedade, ela dissecava minha alma e cutucava
minhas feridas, alcançando as camadas mais profundas e silenciosas em busca de
um sentido, de uma justificativa plausível para aquele ato gratuito. Correndo o
risco de me perder, buscava-me. Vivia em um estado de tensão permanente, um
leve sabor de fim me tocava por inteiro. Quanto mais eu olhava para o abismo,
mais o abismo olhava para mim.
Eu estava preso em um inferno sem saída – um
mundo sem retornos, sem arrependimentos. Era o fim. A realidade já havia
alcançado o seu bem último, repousando no gozo de sua consumação.
Já não era mais possível recomeçar sobre novos
alicerces. Era tarde demais: o espetáculo havia chegado ao fim, as cortinas
estavam cerradas. Matou. Acabou. Ninguém "desmata".
Chegara a hora de voltar o olhar para si mesmo, encarando
as próprias culpas. O portal do inferno escancarou-se à minha espera. Acabara
de fazer dele a minha morada. A maldição me alcançou, apossou-se de mim.
O reino de Tebas está em risco: seu governante é
o assassino. “Tu és o assassino daquele cujo assassino procuravas”.
Ao que parece, essa alma conflituosa — repleta
de culpas que o pobre coitado sequer conseguia explicar ou identificar suas
origens — já se formara antes mesmo do crime. Em sua alma virginal, o delito a
ser cometido já estava impresso. Quando Deus distribuiu os dons entre os
homens, presenteou-o com o dom de matar. Sem que soubesse, já chegara a este
mundo com uma missão: matar.
Observando mais de perto, percebe-se que aquele
crime não foi meticulosamente planejado, nem resultado de noites perdidas em
sua configuração. Não, tudo ocorreu de maneira natural, como o fruto que, ao se
ver maduro no pé, quer morrer, ou como o despertar de uma potência adormecida
na alma, ansiosa por se atualizar em sua causa final.
Matar foi apenas um escape, um alívio, uma
espécie de desafogo que ele encontrou para suavizar e distencionar as suas
próprias dores. Para ele, aquele ato assemelhava-se a um domingo no parque,
contemplando o mundo do alto de uma roda-gigante
Roubar
a vida de alguém me fez conviver com a morte. Não mais como algo distante, que
eu apenas observava, no limite dos sentidos, mas sem que a minha alma fosse
tocada. Não, aquilo era diferente. Ao matar aquela coisa que, na ausência de
uma definição melhor, chamavam de homem, deixei que a morte habitasse minha
alma. Ela se entranhou em mim, marcando-me a ferro em brasa.
Lembrei-me
de Raskólniko, que matou gratuitamente uma velha usurária insignificante. O
machado de Raskólnniko era a minha arma? Cometíamos o mesmo crime? O pecado da
vítima dele eu o conhecia; o da minha, me era desconhecido. Perguntei-me: será
que o crime dele não colaborou para que, também eu, assim como ele, me tornasse
um assassino sem eira nem beira?
... Ele desabotoou, então, o capacete, desembaraçou o
machado do laço, mas sem retirá-lo inteiramente. Limitou-se a mantê-lo seguro
com a mãos direita, debaixo da roupa. Uma fraqueza terrível apoderara-se-lhe
das mãos. De instante a instante, sentiu que enrijeeciam mais. Temia deixar o
machado escapulir. Súbito, a cabeça começou a rodar.
-
Mas como ele arrumou
isso? Está tudo embaraçado! – disse a velha, movimentando-se em direção a
Raskólnikov. Não havia um segundo a perder. Tirou o machado de sob o capacete,
levantando-o com as duas mãos e, com um gesto seco, quase mecânico, deixou-o
cair na cabeça da velha. Suas mãos pareciam-lhe não ter mais forças. Entretanto, readquiriu-as assim que vibou o
primeiro golpe.
A velha estava com a cabeça descoberta, como de
hábito. Os cabelos claros, grisalhos e escassos, abundantemente oleados,
formavam uma pequena trança, presa à nuca por um fragmento de pente. Como era
baixa, o golpe-a atingiu-a nas têmporas. Deu um grito fraco e caiu, tendo tido,
no entanto, tempo de levar as mãos à cabeça. Uma delas sustinha inda o penhor. Então
Raskólnikov malhou-a com toda a força,
mas duas vezes. O sangue corria como se jorrasse de um copo caído. O corpo
fraquejou: recuou para deixá-lo cair, depois debruçou-se sobre seu rosto. Já
estava morta, os grande olhos estatelados pareciam querer pular das órbitas. A
testa e o rosto, inteiros, estavam contraídos e desfigurados pelas convulsões
derradeiras. Colocou o machado no chão, junto do cadáver... Estava na plenitude
de sua presença de espírito e não sentia mais nem perturbação, nem vingança,
apenas suas mãos continuavam a tremer. Mais tarde lembrava-se de ter sido
excessivamente cuidadoso, prudente e mesmo capaz de aplicar todos os seus
cuidados para não se sujar...
Iniciava-se
então uma inversão de perspectiva: em vez de buscar descobrir o criminoso
analisando os fatos, na expectativa de que estes revelassem provas
justificadoras, focava-se no próprio criminoso – em suas camadas mais profundas
e silenciosas, nos labirintos psicológicos de sua alma – em busca de um sentido
para um ato sem sentido.
Nem
sequer questionei minha amiga sobre o motivo de matar aquele desconhecido.
Matar alguém conhecido – que feriu nossa alma – é diferente; agora, tirar a
vida de um ser invisível, sem qualquer representação em nossas vivências, era
simplesmente matar por matar. E foi exatamente isso que fiz.
Num
ato puramente mecânico, tirei a arma da cintura — não me lembro bem se era um
revólver ou um machado —, apontei-a para o desafeto — não sei de quem, apenas
sei que não era meu — e disparei: dois tiros... ou talvez duas machadadas.
Tanto faz. O corpo caiu silencioso. Sem nome, sem endereço, sem passado, sem
futuro, sem alma. Sem vida.
Saber
que tive o poder de tirar aquilo que Deus concedeu – a vida – me encheu de um
prazer perturbador, como se eu dissesse: “Você tem o poder de dar, e eu o de
tirar.” Em certa medida, nossos poderes se equivaliam.
Sem
que eu tivesse plena consciência, estava iniciando ali uma disputa com Deus.
Queria feri-Lo, destituindo-O do poder de controlar a vida, de dar e tirar
segundo Sua própria vontade.
Não
demorou para eu saber que o assassino daquele desconhecido já estava preso. Que
bom – assim não seria incomodado. Contudo, uma injustiça se impunha: um homem
inocente cumpria a pena que deveria ser minha.
Cheguei
até a agradecer a Deus, sentindo que Ele cuidava de mim e me protegia. Quem
sabe, sem que eu soubesse, o grande julgador do universo estivesse fazendo a
coisa certa – afinal, li no Livro de Jó que nada acontece por acaso e que tudo
está sob os cuidados de Deus. Quem sabe se, naquela ação além da compreensão
humana, eu não estivesse, sem perceber, cumprindo uma missão divina.
Não
sabia em que hora da noite me encontrava, mas meu corpo sentia a eternidade de
cada momento. As noites de pesadelo são sempre longas, pois o sono é
superficial – ficamos entre a vigília e o adormecer, à espera da chegada da luz
do sol ao nosso dia.
Não
me lembro de quantos anos se passaram, mas por mais de cinco, esse homem
permaneceu preso em meu lugar. Permaneci em silêncio, como se coubesse a Deus
fazer justiça – e, de fato, Ele o fez. Quem sou eu para reclamar?
A
mandante do crime, tão criminosa quanto eu, também se calou. Entre nós,
formou-se um pacto: um cuidava do crime do outro, e simulávamos que jamais nos
lembrávamos do ocorrido. Porém, como se sabe, nenhuma mentira ou transgressão
permanece oculta para sempre. Em pouco tempo, o fio do novelo se desgarrou,
revelando toda a trama. Minha cúmplice informou-me que começavam a suspeitar
que o criminoso preso era inocente, enquanto o verdadeiro culpado continuava
livre – o olhar da lei se voltava para mim.
Estranho:
sentia-me aliviado, pois parecia que eu não estava encarcerado fisicamente, mas
a minha culpa me aprisionava internamente. Encontrava-me preso, sem saber.
A
única forma de me libertar seria ser preso: pagar pelo meu crime e cumprir a
sentença. Na cela, meu corpo estaria confinado, mas a minha alma, livre de
culpa, respiraria.
Não
me sentia culpado pelo assassinato — senti prazer, como já disse. O que me
corroía, porém, era saber que um inocente cumpria a pena que me cabia. Minha
culpa não era do corpo, era do espírito. Ela tolheu meus passos e tornou o
fardo mais pesado a cada dia — tornei-me um trôpego. Sem que eu percebesse, fiz-me
moralista; passei a ser meu próprio juiz — e o pior deles. Buscava a minha
própria prisão. Um imperativo moral impelia-me a libertar aquele que, por minha
causa, estava preso. Matar fora simples; o difícil era despir-me da camisa de força
moral que me vestiram na infância.
Lembro-me:
um dia, roubei um livro – o roubo me deu prazer; noutra ocasião matei um homem
– o crime também me deu prazer. Tornava-me viciado nas transgressões. Como um
dependente, buscava doses maiores: cada delito era um veneno mais forte e com
ele um prazer crescente na medida do perigo. O risco me excitava. Caminhava
sobre a linha invisível que separa o prazer da morte. A cada passo, a incerteza
do que viria — ou do que não viria — inflamava ainda mais meu desejo. Excitava-me
o caminho, não a chegada. Eros e Tânatos, entrelaçados, urdiam minhas ações; eu
não passava de um fantoche em seus dedos. Assim, movido unicamente por um
impulso de prazer, deixei-me levar em direção àquele crime...
Meus
hormônios — dopamina, serotonina, testosterona, endorfinas, ocitocina,
prolactina — deixavam de travar batalhas entre si e conspiravam com uma única
missão: oferecer-me o prazer mais pleno. O crime transformava-se numa festa;
bailava em paz, como se ninguém estivesse me olhando.
Quando o dia mal amanhecia, minha cúmplice
aproximou-se e me aconselhou a me entregar. Todos já sabiam que eu era o
verdadeiro criminoso, enquanto o inocente estava preso em meu lugar. A lei
batia à minha porta. Segundo ela, eu deveria assumir o crime, sem arrastá-la
para o delito e, em troca, ela providenciaria, por meio de advogados –
inclusive seu marido – uma redução da minha pena. Sabia, porém, que ela não
cumpriria sua palavra, pois sua única preocupação era se livrar daquele
infortúnio.
Mesmo assim, a decisão foi minha: eu que puxara o gatilho. A responsabilidade
era exclusivamente minha – eu era o assassino. Sem dar ouvidos às palavras dela
e ciente de que estava sozinho, decidi me entregar. Dirigi-me ao centro da
cidade e fui até o prédio onde se encontrava o homem da lei. Peguei o elevador
e subi até o quinto andar. Após um longo corredor, ladeado por diversas portas,
deparei-me com uma que exibia a placa: “Dr Juiz”.
Entrei e encontrei uma sala pouco iluminada, de
atmosfera sombria. No canto, uma mesa; encostada à parede, uma poltrona de três
lugares. Atrás da mesa, uma secretária de ar burocrático – lembrando uma
funcionária de cartório – me atendeu. Aproximei-me e disse:
— Preciso falar com o Dr. Juiz...
— “Por favor, aguarde, ele encontra-se em atendimento”, respondeu.
É quase uma forma de terapia entreter-se com a
vida dos outros; observar a existência alheia poupa-nos de horas excessivas de
exame próprio. Sempre que podia, evitava esse encontro: visitar o interior do
meu interior era arriscar-me demais. Quando essa possibilidade se insinuava,
lembrava-me de Fogo-Fátuo, de
Drieu La Rochelle, em que o personagem Alain Leroy decide, numa noite, avaliar
a própria vida; ao fim da retrospectiva existencial, ouve-se um estampido — um
tiro. Faltando-me coragem para olhar-me tão de perto, por instinto de preservação,
desviava o olhar em direção a um “não eu” — de preferência, um desconhecido.
Em certa medida, projetamos nesses desconhecidos
o que não queremos ver maculando a nossa alma. Não há muita graça em percorrer
caminhos já trilhados, nem em visitar terras já conquistadas. Como um marinheiro
curioso, buscava desbravar novos mares.
Infelizmente, naquela sala, entre mim e a
secretária, não havia mais ninguém. O silêncio era absoluto — apenas o velho
relógio, no alto da parede, marcava, com seu irritante tique-taque, a lenta
passagem do tempo. O cenário não convidava a permanecer ali por muito tempo. As
paredes manchadas e opacas, pareciam não ver uma demão de tinta há anos. Cortinas, encardidas pendiam das janelas,
imóveis. No chão, um velho tapete desbotado ainda insinuava o desenho de uma
catedral – ou algo próximo disso -, mas o tempo e os passos haviam-lhe apagado suas
formas.
O ar tinha um gosto acre, uma lembraça de fumaça
e tabaco, como se todo o cigarro do mundo tivesse sido fumado naquele lugar – e
seu odor impregnado em cada poro daquelas paredes. Era, de fato, um ambiente
feio e insalubre. Mas, por estranho que pareça, eu não queria sair dali; aquele
lugar me atraía. Sentia-me confortável em sua decadência: tínhamos algo em
comum.
Faltava matéria humana para que eu pudesse
exercer meu hábito. Um certo desespero abateu-me e, sem alternativa, vi-me na
iminência de correr o maior dos riscos: olhar-me.
Ufa! Que alívio. Um barulho vindo de fora quebrou
o silêncio da espera. De repente entraram dois policiais conduzindo um homem de
péssimo aspecto: cambaleante e algemado. Prenderam-lhe as algemas ao braço de
uma cadeira; ali ficou sentado, quase adormecendo. Percebi que balbuciava o
nome de uma mulher, acompanhado pela mesma frase: “Eu te amo.” Quase como um
mantra, repetia-a infinitamente.
Perguntei-me: quem seria essa mulher que aquele
bêbado tanto amava? Que mulher não a invejaria por ser tão amada? Seria ela a
sua esposa, sua mãe, uma amante? Sem
perceber, já começava a exercer o que mais gostava de fazer enquanto esperava:
especular sobre a vida alheia.
Não demorou muito, soube: ele matara uma mulher.
A mulher cujo nome murmurava sem cessar. Não suportara a traição. Amara demais. Matou.
Naquele momento, contra os românticos empedernidos,
constatei: quem ama mata.
Éramos — ele e eu — criminosos. Por veredas
distintas, havíamos arrancado alguém deste mundo e o enviado ao poleiro das
almas. Era apenas isso que nos unia; no mais, a essência de nossos crimes
diferia. Um fora um crime comum, um mero delito; o outro, uma obra de arte.
Em estado de embriaguez, sem pleno domínio de
si, ele matou a mulher que amara por ter sido traído. Dominado pela cólera,
perdeu a razão – um crime passional. Todos os dias acontecem crimes assim: é um
crime comum; um bêbado mata a amada, um crime praticado por um demente. Na
manhã seguinte, quando a bebedeira passasse, sequer lembraria do delito.
Meu crime, ao contrário do dele, era único. Não
houve paixão nem traição: eu não estava embriagado e não nutria por aquele que
mandei para o outro mundo, qualquer afinidade ou admiração — ao contrário,
era-lhe completamente indiferente. Foi um crime gratuito, sem motivações, desvestido
de códigos morais: uma tábua em branco, sem leis, sem deuses, sem Sócrates ou
Cristo a ditarem como o homem deve ser e agir.
Fora um ato para além do bem e do mal. Cometi-o pelo puro prazer de matar:
sabia — e quis — matá-lo. Havia gozo no gesto.
Quando tudo terminou, senti-me leve, livre de
culpa, estranhamente feliz. O corpo aos meus pés parecia um quadro concluido; senti-me
um artista finalizando sua obra. Tal feito exigia celebração. Procurei a
garrafa de Château Angélus, guardada na estante à espera de uma ocasião
especial. Era aquela. Tim, tim - um brindei à minha liberdade.
Pensava que, diante da nobreza e da beleza do
meu ato, não havia crime algum — havia apenas criação. Meu crime não maculava,
sublimava: era a expressão da beleza em sua causa final, a perfeição em forma
de delito. Acabara de compor um quadro renascentista. Nada lhe faltava: era
antropocêntrico — um homem estendido ao chão, num quarto quase escuro, não
fosse a presença de alguns feixes de luz que atravessavam as frestas do
telhado, conferindo ao ambiente um equilíbrio entre luz e sombra. O crime
expressava um realismo intenso: aquele corpo caído ao chão possuía estética. As
partes desnudas desenhavam uma anatomia só vista na arte grega. Olhando mais de
perto, era possível perceber o esboço de um sorriso enigmático nos lábios do
defunto — um leve traço de ironia ou mistério. O meu crime era a minha Mona
Lisa. Em meu ato, pulsavam a sombra e a luz de Caravaggio, a harmonia de
Rafael, a graça de Botticelli.
Não condenava os que me julgavam criminoso: eram
apenas homens, desprovidos de senso estético, incapazes de contemplar uma obra
de arte.
Se a espera se prolongasse, não sei até onde
meus delírios teriam chegado... Certamente, Deus perderia o seu lugar.
Ouvi uma voz –
a secretária:
-
Senhor!
Despertei de meus devaneios e voltei a atenção para
o que dizia.
-
Senhor, pode entrar. O Dr. Juiz o aguarda.
Calmo, seguro na convicção de cumprir um dever
moral, levantei-me. Comtemplei, pela última vez, aquele pobre coitado que, por
amor, cometera um crime comum - como se me despedisse do mundo dos comuns – e segui
em direção à minha liberdade.
Enquanto
caminhava, os primeiros raios de sol despontavam, tingindo o mundo de silêncio
e mistério.
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