O COICE DO ASNO

março 25, 2025Prof. Dr. Joceval Bitrencourt

 

 


                                               O COICE DE UM ASNO.



Quem comete uma injustiça é sempre mais infeliz que o injustiçado (Platão)



Um amigo meu — vou chamá-lo de Diógenes —, formado em Filosofia, contou-me um episódio que o deixou profundamente triste. Sempre apreciei ouvir suas histórias; ele é, sem dúvida, o que se pode chamar de um excelente contador de causos. É verdade que, por vezes, exagera um pouco — talvez até invente aqui e ali —, mas acredito que seja apenas um recurso literário ao qual recorre para dar mais dramaticidade às narrativas.

Diógenes participava de uma entidade dedicada à confecção de documentos, resoluções, coisas do gênero. Certo dia, em uma reunião formal da entidade, foi apresentado um documento que, depois de lido, seria submetido à votação da plenária. Lido o documento, foi aprovado por unanimidade. Ele, apesar de ter votado favorável à aprovação do documento, indicou algumas críticas à forma como o tal documento fora elaborado. Diante de sua crítica, achou-se por bem que o documento voltasse em uma próxima sessão para ser reavaliado. A situação criou um certo desconforto, principalmente entre aqueles que desejavam sua aprovação imediata.

Na reunião seguinte, o documento voltou à pauta. Durante a sessão, o jovem relator o reapresentou, precedendo a leitura com algumas observações. Uma delas deixou meu amigo muito triste. Disse o relator: - Hoje, antes de vir a esta sessão, recebi a seguinte recomendação: “Não leve em conta as provocações de Diógenes!”

Meu amigo sentiu o impacto da declaração. Embora perplexo, esforçou-se para não demonstrar seu desconforto aos presentes. Queria saber quem havia aconselhado o relator a lançar contra ele uma flecha tão venenosa, mas, para evitar o mal-estar na reunião, optou pelo silêncio. Para ele, as palavras diziam: “Não ligue para o que ele diz, ignore-o. Apesar das discordâncias, ninguém o levará a sério. No final, todas as mãos se levantarão a nosso favor.”

Uma constatação curiosa: obedecendo ao mesmo comando, todos seguiam na mesma direção. Mas não era aquele um fórum livre e democrático, voltado à reflexão sobre a Educação? Não é por meio da liberdade de pensamento que se constrói a boa Educação? Deveria ser, mas não é – pelo menos naquele fórum.

Trata-se, no fim das contas, de uma mera formalidade protocolar. As decisões já foram previamente tomadas e, durante a sessão solene, os presentes, seguindo a ordem de um senhor todo-poderoso à cabeceira da mesa – o qual, por sua vez, obedece a um outro senhor mais poderoso que ele – erguem suas mãos em unissono, votando quase sempre todos – na mesma direção. É assim que se carimba, com aparência de legitimidade, a validação oficial de um documento. “Há, porém, um espírito no homem, E o assopro do Todo-poderoso dá-lhe entendimento.” (Jó 32: 8)

Por que todos votam da mesma forma? Por que essa unanimidade? Já não houve alguém que disse que “toda unanimidade é burra”? A resposta é simples: são representantes – militantes – de um mesmo partido político, distribuídos entre diversas entidades, como universidades e sindicatos... Ao fim e ao cabo, quando o espetáculo termina e as cortinas se fecham, o espírito de corpo emerge como “o grande vencedor”.

Discordar dessa “feia” liturgia é colocar-se em risco; em pouco tempo, torna-se alvo das flechas que virão em sua direção. Como uma criança, ingênuo como era, meu amigo Diógenes resolveu dizer que o rei estava nu. Caiu em desgraça.

Enquanto Diógenes narrava suas dores naquele enfermo teatro, não pude deixar de me lembrar de uma crônica de Clarice Lispector, na qual ela fala sobre a vantagem de ser bobo: “O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. [...] Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.” Pensei comigo mesmo: esse meu amigo não é nada bobo!
Entre ser esperto e ser bobo, ele escolheu ser bobo.

Não posso negar: contemplando os passos bobos do meu amigo Diógenes, acabei me perdendo, deixando-me levar por seus delírios. Também eu, da minha parte, comecei a delirar por caminhos distantes. É hora de voltar para casa e continuar seguindo os passos do meu amigo em sua via-crúcis.

Vontade não faltou ao meu amigo de reagir à injustiça que estava sofrendo. Ele não tinha a intenção de ofender ninguém, tampouco desqualificar o trabalho do jovem relator; seu único objetivo era garantir que uma determinada camada da sociedade tivesse voz e vez na elaboração daquela resolução que dizia representá-la. Era um idealista. Acreditava que o povo deveria ser ouvido.

Diante do ocorrido, perguntou-se: qual deveria ser seu comportamento ao sofrer uma injustiça? Sempre se fazia essa pergunta: é melhor cometer ou sofrer a injustiça?

Tinha o hábito de recorrer a Platão sempre que enfrentava dificuldades, buscando orientação sobre o melhor caminho a seguir. Dessa vez, não foi diferente. Não demorou muito para que o filósofo viesse ao seu socorro: “É, portanto, justo devolver o mal com o mal, como acredita a maioria, ou injusto? (...) Jamais é correto cometer injustiça ou revidar a injustiça com outra injustiça, ou, quando formos vítimas do mal, nos defendermos revidando com o mal” (Platão, Críton).

Diógenes percebeu, naquele instante, que aquele não era mais o seu lugar. Não o ouviam. Estava sendo apenas tolerado, mas não aceito. Era hora de partir, de levar sua filosofia para outros ares. Ele sabia que, pelas costas, era alvo de chacotas. Resignado, deu de ombros. Afinal, não seria o primeiro, tampouco o último a sofrer zombarias. Sempre foi assim. Diz Sócrates: “Aquele que se põe a filosofar torna-se motivo de escárnio.” Como exemplo, cita o ocorrido com Tales que caiu em um poço enquanto observava os astros. Uma camponesa zombou dele dizendo-lhe: “Você tenta conhecer o céu, mas não enxerga o que está aos seus pés.” Contemplando a chacota sofrida por Tales, comenta Heidegger: “Filosofia é aquele modo de pensar, com o qual, essencialmente, nada se pode começar e acerca do qual as criadas necessariamente se riem.”

Nesta mesma toada, devemos ouvir as recomendações de Epicteto para quem escolheu fazer da filosofia um caminho de vida. Não basta ser filósofo; para sê-lo, é preciso ter um dorso forte capaz de suportar grandes pesos. “Homem! Examina primeiro de que qualidade é a coisa, depois observa a tua própria natureza para saber se a podes suportar. [...] Crês que podes comer do mesmo modo, beber do mesmo modo, ter regras e falta de humor semelhantes? É preciso que faças vigílias, que suportes fadigas, que te afastes da tua família, que sejas desprezado pelos servos, que todos riam de ti, que tenhas a menor parte em tudo: nas honras, nos cargos públicos, nos tribunais, em todo tipo de assunto de pequena monta. Examina essas coisas se queres receber em troca delas a ausência de sofrimento, a liberdade e a tranquilidade. Caso contrário, não te envolvas” (Enquirídio de Epicteto – XXIX)

Assim, ouvindo o meu amigo, compartilhei de sua tristeza. Não gostaria de estar em seu lugar. A história, contada em um bar após a terceira saideira, não me abandonou, sempre voltava a incomodar-me. Uma tarde, enquanto tomava um whisky, já sob o efeito da segunda dose, o assunto voltou a me visitar. Sem nada para fazer naquele momento, deixei-me levar pelo desconforto do acontecido. Que tempos vivemos, em que não há mais espaço para filósofos? Pensar tornou-se um ato subversivo, desprezado pelos “homens de bem”. Ignora-se, sem pudor, o conselho de Descartes: “Os brutos animais que apenas possuem o corpo para conservar ocupam-se continuamente na procura de alimentos; mas os homens, cuja a parte principal é o espírito, deveriam empregar os seus principais cuidados na procura da sabedoria, que é o seu verdadeiro alimento” (Carta prefácio).

Lembrei-me do acontecido com Sócrates. Certa vez, ele encontrava-se no mercado, na cidade de Atenas, acompanhado de alguns discípulos e dedicava-se com muito prazer à arte da filosofia. Falava da importância da democracia e afirmava que ser um bom cidadão significava fazer um bom uso da razão em benefício da cidade. Argumentava que, entre todos os pecados, a ignorância era o pior deles. Orientava os governantes a ouvirem o povo antes de elaborar as leis da cidade. Ensinava aos homens a conhecerem a si mesmos e a tornarem-se seus próprios cuidadores, entre outros temas. Era um moralista, preocupado com o bem da cidade e, consequentemente, com a felicidade do cidadão. Pautou sua vida pela devoção às leis da cidade. Diante da possibilidade de transgredir as normas de Atenas para salvar-se, escolheu tomar o cálice da morte.

Enquanto falava, seus discípulos, sempre por perto, observavam atentamente à medida que outras pessoas se aproximavam. Entre elas, até mesmo figuras da vida pública, curiosas para saber o que aquele "feio" filósofo tagarelava. Não demorou para que as palavras de Sócrates começassem a causar desconforto entre os presentes. Em dado momento, ouviu-se de um deles:

— “Não ouçam esse homem; nós sabemos o que é melhor para a cidade, e não ele.” De outro canto, alguém exclamou:
— “Você não viu por onde ele anda? É motivo de chacota!” Outro ainda completou:
— “Deveria procurar um emprego, em vez de perambular pelas ruas lançando injúrias contra a cidade e os deuses que adoramos.” - “Ele é perigoso, vive corrompendo nossos jovens…”

Logo, as agressões, que inicialmente se deram em palavras, passaram a ser físicas. Um indivíduo, mais exaltado, aproximou-se e deu um tapa na cabeça de Sócrates. Em seguida, outro o empurrou, quase levando ao chãor, e um terceiro, desprovido de pudor, deu-lhe um chute no traseiro. Ao verem a violência aumentar, seus discípulos correram em seu socorro, retirando-o daquele perigoso local.

Já seguro, Sócrates ouviu as recomendações de seus discípulos, revoltados com as agressões sofridas por seu mestre.

— “Sócrates, não é justo que você sofra essas agressões. Você não as merece. Deve levar esses agressores ao tribunal; eles precisam ser punidos pelo crime que cometeram contra você.” Em silêncio, Sócrates ouviu seus discípulos e, depois de refletir, respondeu:

— “Caros amigos, digam-me: se eu recebesse coices de um asno, levaria esse animal ao tribunal?”

Discipulos:
— “Não, claro que não.”

Sócrates prosseguiu:
— “Então, estamos tratando do mesmo caso. Há, por acaso, alguma diferença entre o asno e o conselheiro que acabou de chutar o meu traseiro?”

Ao recordar o ocorrido com Sócrates, minha tristeza pelas dores do amigo Diógenes cedeu lugar à compaixão pelo conselheiro do relator, que o orientara a não levar em conta o que dizia o filósofo.






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