O DIA EM QUE FIZ A MINHA PRIMEIRA GREVE DE FOME
agosto 02, 2025Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
O DIA EM
QUE EU FIZ A MINHA PRIMEIRA GREVE DE FOME
(CORRIGIDO)
O dia amanheceu
esplendoroso. Uma luz dourada banhava toda a paisagem. Era um convite para sair
de casa. Não era justo ficar na penumbra sombria do escritório, enquanto o dia
convidava para a festa do sol. Não tive dúvida, aceitei o convite de Yemanjá
para ir brincar em suas águas. Nada
melhor do que passar o dia em Itapuã, “ouvindo o mar de Itapuã”.
Águas calmas e mornas. Um sol de dourar a pele. Água de coco. Acarajés
deliciosos. Cervejas bem geladas. Companhia agradável. Tudo perfeito! O dia foi
concluído com uma suculenta mariscada no restaurante Ki-Moqueca. Não houve
excesso. Pelo menos, era o que parecia. É preciso cuidado com a posse do prazer, sempre achamos que o temos na
medida certa, mesmo quando nos excedemos. Ele é um ser ardiloso, encontra-se
sempre a nos enganar, embriagando nosso reto juízo, tornando-nos cegos para os
nossos pecados. “Não ande com gente que bebe demais, nem com quem
come demais. Porque tanto os beberrões como os comilões vivem com sono e acabam
na pobreza, vestindo trapos. (Provérbios 23:20-21). Chegando
em casa: banho, cama e um bom cochilo. Aquele sábado havia sido perfeito. Que
venha segunda-feira! Encontrava-me de espírito renovado para enfrentá-la. No
silêncio do meu gozo, enquanto repousava, uma revolução química se processava
em meu corpo. Ao acordar, senti-me incomodado com uma leve cólica intestinal.
Achei que não tinha cometido excessos. Enganei-me. A mistura de tudo, sem a
segurança sobre a origem de cada uma das iguarias consumidas, produziu uma
reação desfavorável nas entranhas do meu ser. Lembrei-me dos ensinamentos da
igreja durante a minha catequese, nos preparativos para a minha primeira
comunhão, quando o padre insistia em dizer: “A gula se encontra entre os sete
pecados capitais”. Eu acabara de cometê-lo e estava recebendo a justa punição.
Antes de me entregar aos excessos, deveria ter ouvido Sócrates: “Observava
expressarem os atenienses o ato de comer por termo que significa “bem comer”,
acrescentando que o vocábulo “bem” junto a “comer” indica que o alimento não
deve ser nocente ao corpo nem ao espírito, nem de difícil obtenção. Em uma
palavra por “bem comer”, entendia “viver com moderação”. Aristóteles, por sua
vez, reconhecia a virtude como a capacidade do homem de, prudentemente, evitar
as extremidades, em todas as suas ações. “Tanto a deficiência como o excesso de
exercícios destroem a força; da mesma forma, o alimento ou a bebida que
ultrapassem determinados limites, tanto para mais como para menos, destroem a
saúde, ao passo que, sendo tomados nas devidas proporções, a produzem, mantêm e
preservam”. Também não deveria ter desconsiderado as sábias palavras de
Epicuro: “Não são as bebedeiras e as orgias contínuas, os prazeres dos jovens
rapazes e das mulheres, os peixes e outros alimentos que uma mesa luxuosa
oferece, que engendram uma vida feliz, mas a razão vigilante” (Doutrinas e
máximas), que sabe o que deve ser escolhido, ou evitado, para a boa saúde
do corpo e da alma.
Pitágoras, que, além de buscar compreender o universo por meio da
métrica da geometria, também era um homem atento à moderação, evitava os
excessos na alimentação e na bebida. Mais que uma escolha pessoal, recomendava
aos seus adeptos que evitassem o consumo de peixes como o salmonete e o
melanuro; prescrevia a abstinência tanto do coração dos animais quanto das
favas e, segundo Aristóteles, também do rúmen e da cabrinha. Outros autores
afirmam que, por vezes, alimentava-se apenas de mel ou favos e pão, e que, ao
longo do dia, não bebia vinho. Com o pão, comia frequentemente verduras cruas
ou cozidas, e raramente peixe. [...] Nunca o viram comer em excesso,
entregar-se aos prazeres do amor ou embriagar-se. (Diôgenes Laërcio, Vida e
doutrinas, p. 233)
Tenho que reconhecer: naquele dia — e não apenas naquele dia — eu
merecia contemplar mais as estrelas, desapegar-me das coisas do chão, alçar voo
rumo aos conceitos, evitando tornar-me tão facilmente presa dos prazeres do
corpo. Mas não foi o que fiz. Fiz-me de surdo aos bons conselhos dos filósofos.
Achei que aquela cólica seria passageira. Não foi.
Recorri à farmácia e, sob a orientação da farmacêutica, comprei algumas
medicações: Buscopan, Luftal, um laxante etc. Apesar dessa primeira medicação,
a cólica persistia. Mesmo debilitado fisicamente, cumpri as minhas obrigações
da segunda-feira. Ao chegar em casa, lá pelas 20h, percebendo que a cólica
permanecia, evitando ser imprudente pela segunda vez, resolvi procurar uma
emergência, em busca de uma assistência qualificada. Fui em direção ao Hospital
mais próximo de minha casa. Naquele momento, sem ter consciência dos dramas
futuros, estava deixando “o céu por ser escuro e indo ao inferno em busca de
luz”. Não
tinha mais como voltar, havia acabado de dar entrada na Emergência. Lembrei-me
de Dante, na Divina Comédia,
quando, no portal da entrada do inferno, diz: “Ó, vós que entrais, abandonai
toda a esperança”. Tornei-me um prisioneiro do hospital. Às vezes, a Medicina é
pior que a doença.
Eu me conhecia bem e tinha absoluta certeza de que
estava apenas com uma simples infecção intestinal.
Às 20:30, dei entrada na emergência. Atendida a
burocracia protocolar, fui encaminhado à sala de espera. A atendente disse:
“Logo o senhor será chamado. Fique atento à sua senha, ela aparecerá no
painel”.
Naquele dia,
parecia que todos que haviam negligenciado a temperança tiveram a mesma ideia:
buscar aquela emergência. Os dois médicos de plantão não tinham como atender a
tamanha quantidade de almas combalidas. Após uma hora de espera, meu nome
apareceu na tela. Começava ali o meu atendimento.
A médica fez a anamnese. Narrei-lhe minhas peripécias
e os sintomas que estava sentindo. Solicitou um exame de sangue e encaminhou-me
para os primeiros procedimentos medicamentosos. Sentado em uma cadeira, recebi
soro e, em uma veia foi colocado um acesso para administração de futuras
medicações.
Perdi a conta da quantidade e da diversidade de
drogas que foram injetadas em meu corpo por aquele acesso. Aguardei mais duas
horas, até que fui chamado novamente pela médica.
Diagnóstico:
“Sua taxa de (sei lá o quê) encontra-se bastante alterada. É uma indicação de
que o senhor pode estar com uma pancreatite aguda.”
Ao ouvir o sufixo “-ite”, entrei em surto. Sou
hipocondríaco - não muito, mas sou. Não posso entrar em uma farmácia sem
comprar remédios, até para doenças que não tenho, e para as que acredito que um
dia terei. De imediato, imaginei-me portador de todas as doenças derivadas do
sufixo “-ite”. Estava convencido que era portador de uma inflamação
generalizada e que nenhum órgão do meu corpo havia escapada ao ataque das
“ites”.
Agora entendo por que o semblante daquela médica
estava tão triste. Ela, por piedade, não queria me dizer que chegara minha hora
de bater na porta do céu ou do inferno. Via, no fundo dos seus olhos, que era isso que ela queria me dizer: “Senhor,
seja forte, mas tenho que lhe dizer a verdade. O senhor não só tem pancreatite.
Acompanhando essa condição, o senhor também tem: adenite, anexite, apendicite,
arterite, artrite, esofagite, ceratite, gastroenterite...”.
Aquele, muito
provavelmente, seria o meu último dia na Terra. Não vendo alternativa, comecei
a lançar as minhas preces ao alto, pedindo que o Médico dos médicos viesse ao
meu socorro. Preces em vão. Estava convencido de que o milagre não viria.
Primeiro, porque sabia que Deus não atende
pedidos de ateus. Segundo porque, como dizia Hume, milagre não passa de uma
superstição utilizada para difusão do sagrado entre bárbaros e ignorantes, como
mecanismo de afirmação das religiões. Como se não bastasse tudo isso, não fazia
muito tempo, havia escrito um livro no qual defendi a tese de que Deus estava
morto.
Tinha que reconhecer: não
era merecedor do olhar divino. Era chegada a hora da vingança de Deus.
A médica, vendo o meu estado de pavor, tentou
me acalmar: “Senhor, ainda não temos certeza de nada. Não devemos antecipar os
fatos. Vamos continuar a investigação. Entretanto, se o seu quadro clínico
permanecer assim, não teremos outra alternativa senão interná-lo e indicar o
procedimento cirúrgico”.
Aquilo não podia continuar.
Eu precisava tomar uma atitude. Respirei fundo e disse a mim mesmo: “Seja
homem, cabra! Tu és um sertanejo e, conforme Euclides da Cunha, ‘o sertanejo é,
antes de tudo, um forte!’ Reaja! Não deixe essa médica dizer que você se
encontra em estado avançado de decomposição!”
Reagi: “Doutora, eu só
estou com uma infecção intestinal. Foi tudo culpa do azeite de dendê.
Ela retrucou: “Não é o que
os seus exames estão dizendo”. Para justificar que estava certa e eu, errado,
declinou todos os seus conhecimentos sobre aparelho gástrico e os riscos
que eu corria.
Naquele momento, disse para mim mesmo: “Cara, por
que você foi à praia? Não percebe que você nunca habitou bem esse território?
Deveria ter continuado em seu escritório, contemplando o mundo das ideias. Lá,
as praias são perfeitas, os alimentos nunca causam infecções gástricas”.
A punição pela
gula estava sendo pesada. Por que não ouvi Santo Agostinho? “Vós me ensinastes a ingerir os alimentos como se tratasse de remédios”.
Ou mesmo São Gregório? “Quando impera o vício da gula, perdem os homens tudo o
que fizeram de grande e, quando o ventre não é dominado, todas as virtudes são
simultaneamente liquidadas”.
Era tarde demais. Eu tinha dado entrada no inferno,
e o Diabo havia fechado as portas, jogado as chaves fora. Já não me pertencia.
Perdi-me.
Ainda, em uma última tentativa, busquei convencer a
médica a me liberar. Ela, educadamente, disse: “Não o prenderemos aqui. O
senhor é livre para sair. Seu caso pode ser grave. Se quiser correr o risco,
fique à vontade”.
Quem, em sã consciência, assumiria essa
responsabilidade?
Ela continuou: “Vou solicitar uma tomografia
computadorizada. quando sair o resultado, faremos uma reavaliação do seu quadro
clínico.” Mais um longo tempo de espera. Enquanto esperava, socializei-me com o
sofrimento de outros pacientes. Alimentado por um egoísmo perverso, ficava
menos triste ao descobrir que, entre as dores do mundo, a minha não era a
maior. Sempre poderia ser pior.
Uma família de ciganos estava por perto. Acabei
encontrando neles um bom papo para passar o tempo. Por pouco, não comprei um
cavalo do cigano. Ele já estava me convencendo de que faria um grande negócio,
quando fui salvo pelo monitor, chamando o número da minha senha. Que alívio!
Onde iria criar aquele cavalo? Acho que teria problemas com o síndico do meu
prédio.
Já eram quase duas horas da manhã quando, novamente,
fui chamado para a reavaliação. Desta vez, já com o resultado da tomografia:
“Senhor, o resultado do exame não é muito esclarecedor, mas já podemos informar
que o senhor está com uma inflamação acentuada no pâncreas”. Ela continuou: “O
pâncreas é dividido em três partes: a cabeça, o tronco e a cauda. O que
percebemos é que a inflamação se concentra na cabeça do pâncreas. Já podemos
confirmar que o senhor está com uma pancreatite, só ainda não sabemos se é
aguda ou simples.”
Devo lembrar que a primeira médica e todos que
vieram depois dela apalparam toda a região de minha barriga em busca de dor, o
que acusaria a presença de uma inflamação. Pesquisa em vão: nada estava doendo.
Continuando, disse a médica: “Por segurança, pediremos outros exames. Se for
confirmado o que estamos vendo, a orientação é que o senhor seja imediatamente
operado”.
Aí, é claro, bateu o medo. Como assim? Um simples
dia de lazer pode levar a uma cirurgia? Passaria, então, o carnaval imobilizado
em um leito de hospital? Nunca mais quero ouvir “o mar de Itapuã”. Em minha
defesa, já com as forças combalidas, busquei, mais uma vez, convencer a médica
que ela estava errada em sua avaliação, que eu estava me sentindo bem. Disse:
“Doutora, não estou sentindo mais nada. A primeira medicação ministrada já
eliminou os sintomas que estavam me incomodando. Eu poderia retornar à minha
casa e voltar amanhã para dar continuidade aos procedimentos. Pode ser?”
Ela foi
enfática: “Senhor, a recomendação é que o senhor permaneça internado.
Pancreatite – inflamação no pâncreas – pode ser uma coisa simples, mas também
pode ser letal. Melhor investigar a gravidade e a extensão de sua enfermidade”.
Já me sentia
partindo deste mundo. Lembrei que Sócrates, condenado à morte, já tendo tomado
o cálice de cicuta, como um bom moralista, não querendo deixar dívidas, disse
para Crito: “Devo um galo a Esculápio...
Providencie para que a dívida seja paga”. Assim como o pai da Filosofia, eu
também não desejava defuntar, deixando como lembrança a pecha de caloteiro.
Sentindo que o cálice da morte se aproximava dos meus lábios, perguntei-me: “Deixei
tudo organizado? Paguei todas as minhas dívidas? Reservei um determinado valor
para os encargos com o meu funeral? Minhas economias são suficientes para a
minha cremação?”
Sou muito
organizado, não queria deixar dívidas para outros assumirem. Sei que sou amado,
mas, diante de dívidas deixadas, com certeza o amor perderia a sua força, e, em
seu lugar, viriam as pragas e injúrias dos entes queridos.
Não vendo saída, cercado de todos os lados pela
gravidade da doença, acompanhado pela avaliação da autoridade sobre o assunto,
recolhi-me à minha ignorância e, como um bom servo, segui os passos indicados
pelos filhos de Hipócrates. Naquele momento, constatei que a ignorância nos
condena à servidão. Então, perguntei: “Doutora, e agora? O que faremos?” Ela
respondeu: “Vou encaminhar a sua internação e, ao mesmo tempo, solicitar um
exame de ultrassom do aparelho digestivo”.
Como ela era a médica de plantão na Emergência,
informou: “Amanhã, o senhor será acompanhado pela equipe gástrica do hospital.”
Às 3:00 da manhã, chegou uma maca para conduzir o
prisioneiro à sua cela. Apesar de ter um plano de saúde que me dava direito a
um apartamento, o hospital não tinha apartamento disponível. Fui levado à enfermaria,
onde fiquei à espera de vaga. A enfermaria era uma espécie de “estacionamento
de macas”, onde, ao lado de cada maca, havia uma cadeira para o acompanhante.
Ao chegar àquele espaço, reservado, especialmente para mim, encontrei um casal
que dividiria comigo aquele minúsculo ambiente.
O movimento de minha chegada acabou acordando o
casal. A esposa acompanhava o marido internado. Assim como eu, eles também aguardavam
um apartamento. Não posso negar: apesar de tudo, encontrar aquele casal foi a
parte boa da situação. Era um casal simpático. Fomos solidários em nosso
sofrimento, que acabou se tornando motivo de riso. O riso, como se sabe, tem o
poder de amenizar a dor.
Achei que estava sonhando, que nada daquilo estava
acontecendo comigo, que tudo não passava de um pesadelo. De fato, era um
pesadelo, mas real. A realidade me chocava, mas ali estava, lembrando-me de
minha insignificância. O dia amanheceu. Acordei com uma indisposição no corpo e
na alma. Pensei que um bom banho, acompanhado de higiene matinal, aliviaria
minhas dores e traria um pouco de luz àquele mundo sombrio.
Apesar das cobranças, até as 11:00 da manhã, ainda
não tinham providenciado o meu banho, e sequer os dentes eu havia escovado. As
palavras que eu mais ouvia eram: “Paciência, estamos providenciando”. Às onze e
meia, apareceu uma enfermeira com uma toalha e indicou-me um banheiro do
corredor, onde eu deveria tomar banho. Não reclamei. No estado em que me
encontrava, já era uma bênção tomar um banho e escovar os dentes. Voltei para o
“estacionamento de macas”.
Às 13:15, serviram o almoço. Isso é horário para um hospital servir almoço
aos pacientes? Entre os talheres,
faltava a faca, não havia como continuar a refeição. Solicitei a faca. Como
demorou a chegar, improvisei com as mãos. Quando trouxeram a faca, já havia
concluído o almoço.
Às 15h, chegou a maca para me conduzir ao próximo
exame: o ultrassom. Falei: “Estou bem. Posso ir andando? Não preciso de maca”. O
maqueiro respondeu: “Senhor, não pode. O procedimento administrativo determina
que os pacientes só podem se deslocar em macas ou cadeiras de rodas”.
Como já havia renunciado a qualquer autonomia sobre
mim mesmo, tornei-me um fantoche em mãos alheias, com postura de cordeiro.
Sentei-me na cadeira de rodas e fui sendo conduzido pelos corredores do
hospital, acompanhado pelos olhares das pessoas ao redor. Lia em seus olhares:
“Poxa, que pena! Este senhor parece estar nas últimas, já nem se aguenta de pé.”
Eu desviava o olhar, não queria que eles testemunhassem as dores de uma alma enferma
e escravizada.
Fiz o exame. Retornei para o “estacionamento de
macas”.
Aproveitei o tempo livre para dar risadas com os
companheiros de estacionamento. Já na sala do exame, o médico responsável pelo
procedimento, disse: “Não estou encontrando nada; por aqui está tudo em ordem. Acho
que foi algo pontual.” Aquele exame confirmava que eu estava certo. Mas não
podia fazer mais nada. Encontrava-me prisioneiro de uma rede de poder, à qual o
paciente está submetido. Só resta obedecer.
Ao ceder o seu corpo aos cuidados de outra pessoa –
um grupo de desconhecidos -, ele já não lhe pertence. Você deixa de ser um
indivíduo e passa a ser um código de barra em uma pulseira. Ninguém mais fala
com você. Você se tornou invisível. Entram, escaneiam o código, realizam os
procedimentos... e pronto. Serviço concluído. Foi exatamente o que aconteceu.
Por volta das 16h da terça-feira, chegou a médica
do Centro de Gastro. Disse:: “Senhor, recebemos os resultados dos exames. Nada
foi constatado”. Na minha ignorância, mais uma vez, eu tinha razão. Eles
estavam errados.
A médica continuou a sua explanação. Em um bloco, desenhou
didaticamente todos os órgãos que compõem o aparelho gástrico, indicando suas
funções e como se articulavam. Enquanto desenhava, apontava os riscos que eu corria.
Fiquei ali parado, apenas olhando. Ela falava grego. Não entendia quase nada. Ainda
tem gente que diz que Filosofia é difícil. Mais fácil aprender “Japonês em
braile” do que compreender a complexa configuração do aparelho digestivo.
Apesar de os exames não apontarem qualquer
anomalia, a dúvida permanecia: eu tinha ou não uma pancreatite aguda? Quanto
mais os médicos falavam, mas a convicção na tal doença grave se desbotava. Já
não era uma certeza, apenas uma leve suspeita. Para eliminar todas as dúvidas,
foi solicitado uma tomografia computadorizada para o dia seguinte. Disse a
médica: “Para a realização do próximo exame, o senhor deverá permanecer em
jejum”.
Ainda me encontrava residindo no ‘estacionamento
das macas’. Fui convencido por todos os presentes a ter calma e esperar o dia
seguinte. Finalmente, uma boa notícia! Às 20h, chegou uma enfermeira informando
que o meu apartamento estava reservado. Apesar da tristeza de deixar o
simpático casal de amigos que conheci ali, a possibilidade de dormir em um
quarto mais confortável me fez esquecer, por momento, as dores do deserto que
atravessava.
Essa foi uma noite reparadora. O dia amanheceu.
Novas surpresas. O andar onde me encontrava internado estava em obras. Passei o
dia inteiro ouvindo a “agradável sinfonia” de britadeiras e marretas quebrando
paredes. E eu, ingênuo, imaginava que hospital era lugar de silêncio e repouso.
Apesar do barulho, o quarto era infinitamente mais confortável que o
“estacionamento de macas”.
Não demorou, e uma enfermeira veio ao meu quarto,
desculpando-se pelos transtornos. Jurou que às 18:h, ao menos naquele dia, o
silêncio voltaria. Esperei a chegada da maca para o exame até às 11h. Nada.
Aproximava-se do meio-dia e o jejum exigido começava a pesar. Chamei a
enfermeira e perguntei: “Senhora, tenho um exame marcado para esta manhã, e o mesmo
deverá ser realizado com o paciente em jejum. Estamos nos aproximando do
meio-dia. O que devo fazer? Devo almoçar? Vale lembrar que o exame foi marcado
às 15:00 do dia anterior. Ela respondeu: “Vou me informar e volto a lhe
comunicar”. Trinta minutos depois, retornou dizendo: “O senhor pode almoçar, o
exame só será realizado no final da tarde.” Não acreditei. Era óbvio que, com o
exame à tarde, minha alta seria adiada para o dia seguinte. Foi então que
rebelei. Ali mesmo, comecei a minha primeira greve de fome. Durou pouco, mas o
suficiente. O tempo de duração importa pouco, o que importa mesmo é o
resultado. Minha estratégia deu certo, o resultado foi exitoso. Lembrei-me que,
nos tempos da ditadura, os presos políticos, a fim de denunciar os maus tratos
que recebiam, recorriam à greve de fome. Eu também estava exercendo um ato
político: denunciava o estado absurdo em que estava sendo submetido naquele
hospital.
Falei para a enfermeira: “Estou entrando em greve
de fome. Não me alimentarei até que o exame seja realizado”. Para ser mais
radical ainda, completei: “Sequer água tomarei”. Ela, de olhos esbugalhados,
olhou-me assustada, sem saber bem o que fazer. Não vendo alternativa,
retirou-se e foi socializar com suas colegas a informação de que, no quarto
105, de uma ala qualquer, encontrava-se um louco fazendo greve de fome. Em
menos de trinta minutos, a enfermeira retornou e disse: “Senhor, já estão vindo
lhe buscar para a realização do exame”. Senti-me orgulhoso. Pela primeira vez,
naquele hospital, tomei as rédeas de meu destino, resgatei minha dignidade.
Fui ao exame. Sentei-me na sala de espera. Por mais
de quarenta minutos aguardei ser chamado. Enquanto esperava, sem nada melhor
para fazer, tornei-me um observador da vida alheia. Uma senhora baixinha
sentou-se ao meu lado: pernas encurtadas, troncuda, sem pescoço, cabelos mais
negros que as asas da graúna, vestia uma túnica azul, fornecida pelo hospital
aos seus pacientes, parecia ter saído de um dos filmes de Bergman. Com um
rosário nas mãos, contritamente, orava. Observei-a sem incomodá-la. Nunca se
deve importunar alguém que está falando com Deus. Pensei comigo: sou um ateu,
não acredito que Deus exista, mas respeito a crença dos outros. Se essa senhora
acredita, torço para que ele ouça os seus clamores e venha ao seu auxílio. Não
demorou muito, ela foi chamada para realizar o seu exame. Lancei o meu olhar em
outra direção. Um jovem médico, bombado de academia (ou algo mais), chamou a
minha atenção. Já passava das 13h. Ele saiu de uma sala, carregando o seu
almoço. Curioso, concentrei-me no que ele carregava. Perguntei-me: “Que regime
alimentar deve fazer esse jovem para manter esses bíceps tão acentuados e
definidos? Será que só a mudança de hábito alimentar é capaz de produzir esses
milagres?” São perguntas que só os deuses sabem responder. Vi que o jovem
médico carregava uma Tupperware (mais
conhecida como tapoer) transparente. Concentrei-me em seu conteúdo. Obtive
sucesso. Identifiquei a causa originária do milagre de seus bíceps avantajados:
uma porção de banana da terra cozida, acompanhada de quatro ovos. Naquele
momento, uma convicção instalou-se em minha alma: de hoje em diante, a minha
dieta será composta de pencas e mais pencas de bananas da terra, acompanhadas
de dúzias e mais dúzias de ovos. O tempo de espera não foi em vão, acabei
adquirindo conhecimentos para melhorar a performance dos meus flácidos e
raquíticos bíceps. Quando o meu olhar se direcionava em busca de outra
aprendizagem, ouvi uma voz metálica: “Senhor Joceval, por favor, dirija-se ao
corredor três, sala doze”.
O exame, no entanto, foi uma tortura.
Claustrofóbico, fiquei trinta minutos imóvel dentro de uma máquina, em forma de
tubo. Por vários momentos pensei em solicitar que o exame fosse interrompido. Para
suportar a tortura com dignidade, recorri à moral estoica. “Doente e, ainda
assim, feliz; em perigo e, ainda assim, feliz; morrendo e, ainda assim, feliz;
na desgraça e feliz”. Quando, então, ouvi a voz da técnica dizendo: “Pronto,
tudo concluído”. Meu corpo teve espasmos de prazer, melhor que um orgasmo.
Já eram 16h, e ainda estava sem comer. voltei ao
quarto na esperança de encontrar algo para aplacar a minha fome. Nada. Acho que
eu continuava não existindo para eles. Após insistir com a enfermeira,
finalmente recebi um lanche às 17h. Com o exame feito, barriga cheia, deitei-me
e esperei a visita do médico. Às 18h, ele entrou, anunciou a minha alta e disse
que o resultado do último exame sairia em 48 horas. Fingi-me de morto, não
queria que ele me dissesse que eu continuaria internado mais dois dias, até que
o resultado do exame fosse liberado. Ali, no quase silêncio daquele quarto, sem
palavras, estabeleceu-se um pacto entre o médico e o paciente: “Vamos nos livrar um do outro. Eu lhe dou
alta, e você some daqui”. Como ambos concordaram com os termos, foi celebrado o
contrato da partida. Ele me entregou a documentação de alta e, ao final, disse:
“Aqui está uma receita com a medicação que o senhor deve tomar. Boa noite e
muito obrigado!”
Assim que ele saiu, tive a curiosidade de ler a
medicação prescrita para uma doença tão grave, que poderia ter me levado à
morte. Eis as indicações: Novalgina de 1g; Buscopan simples; Vanau flash 8 mg;
Luftal, uso oral. Coincidentemente, essa era a mesma medicação que eu já estava
tomando, prescrita pela farmacêutica do meu bairro, antes de me tornar
prisioneiro daquele hospital.
Sozinho,
pensei: por que a Medicina se
encontra tão desumanizada? Por que aquele hospital
se encontrava nesse caos administrativo?
Não havia tempo para esperar respostas para
perguntas tão metafísicas. Peguei a minha trouxa e saí correndo dali. Fui ao
estacionamento. Peguei o meu carro. Voltei para casa.
Quando saí daquele lugar, senti que estava me
libertando de um mundo Kafkiano, coisificado, desumanizado. De tudo isso, ficou
a saudade da sabedoria da minha mãe, que, ao ver um filho reclamando de “dor de
barriga”, corria ao quintal, colhia folhas de erva-cidreira, fazia um bom chá e
dava ao seu paciente. No dia seguinte, lá estava o seu rebento, sadio, lindo e
faceiro, brincando com a vida e preparado para conquistar o mundo.
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