CAMINHO, CAMINHANDO-ME
abril 25, 2025Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
CAMINHO, CAMINHANDO-ME.
Não sei quantas almas
tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei. (F. Pessoa)
Por volta de
1982, esteve na Bahia, Félix-Guattari, psicanalista e militante revolucionário
francês que, junto com Deleuze, escreveu o livro: O Anti-Édipo: Capitalismo
e Esquizofrenia. Veio ao Brasil com a missão de compartilhar sua
experiência como militante do Partido Socialista Francês - partido que, mais
tarde, chegaria ao poder na França.
No Brasil, a classe operária, especialmente aquela mais politizada, oriunda da região do ABC/Paulista, alimentava a pretensão de fundar um partido político que representasse, de fato, os interesses da classe trabalhadora. Nada mais oportuno, portanto, de conhecer, na prática, como os trabalhadores de outros países se organizavam politicamente.
Na verdade,
o PT já tinha sido fundado, em 1980. Contudo, não passava de um partido
incipiente, restrito à região de suas bases sindicais. Sua ambição era
transformar-se em um partido de alcance nacional, que conquistasse à adesão de
todos os trabalhadores do Brasil.
A palestra de Guattari foi realizada na casa dos padres jesuítas,
situada no bairro da Federação, em São Lázaro, onde, por muito tempo, funcionou
a revista CEAS – Centro de Estudos e Ação Social: um espaço aberto para
que as vozes silenciadas pela repressão da época pudessem se manifestar. Ali, a
esquerda política da Bahia se reunia, inventava suas utopias, escrevia seus
textos e compartilhava suas ideias.
Ao final da palestra, foi distribuída uma lista na qual os presentes deveriam assinar, demonstrando sua concordância com a fundação de um partido político que representasse e defendesse a visão de mundo dos oprimidos — uma visão de mundo da classe trabalhadora.
Eu era um jovem, estava cursando o primeiro ano do
curso de filosofia. Flertava com o movimento estudantil, mas não dispunha de
tempo livre para uma dedicação exclusiva. O trabalho, condição necessária para
minha sobrevivência, impedia-me de ir além do compartilhamento de ideias em
busca de um mundo mais justo e livre para todos.
Ao meu modo, nos limites de minha condição
existencial, eu também era um revolucionário. Queria mudar o mundo. Participei
de algumas passeatas, inalei muito gás lacrimogênio, cercado pela polícia,
invadi prédios em busca de proteção, mas não passei disso, não fui para a
clandestinidade, não me tornei um guerrilheiro de armas em punho. Não...
Sempre fui um revolucionário doméstico - sem armas, apenas um revolucionário no plano das ideias – solidário com os bons e justos ideais políticos. Fiquei encantado com o que aquele intelectual francês falava.
Quando jovem, ele se mostrava solidário aos
movimentos iniciados pelos estudantes, ao lado de Sartre, Camus, Foucault,
Simone de Beauvoir e tantos outros intelectuais, sob a orientação do Partido
Comunista Francês.
Reivindicavam reformas na educação, na ordem social
e no sistema político. A princípio, foi o Quartier Latin; depois, as
ruas de Paris foram tomadas por grandes e históricas manifestações.
Na terra onde a Bastilha caiu, “O livro vermelho”,
de Mao Tse Tung, ganhava popularidade. Até os dias de hoje, cinquenta anos
depois, a França carrega na alma os ecos daqueles clamores. O mundo, por sua
vez, também foi tocado pelas utopias dos jovens estudantes: “É proibido
proibir”, “A imaginação no poder”, “O Estado é cada um de nós”, “Abaixo a
sociedade de consumo!”, “Corram camaradas, o velho mundo está atrás de vocês”,
“Abaixo do calçamento está a praia”...
Essas ideias já embalavam os meus delírios - ainda
sem direção definida. Também eu queria um mundo assim. Liberdade, acima de tudo:
Liberdade. Reconhecia-me naquele projeto político. Finalmente, os excluídos passavam
a se ver representados. O poder parecia, enfim, ao nosso alcance – e queríamos
conquistá-lo. Era o amanhecer do PT.
Ainda sem uma grande convicção política, assinei
aquela lista com a intenção de, mais tarde, filiar-me oficialmente ao PT. Não
demorou muito e, mesmo sem militância ativa, tornei-me filiado do PT. De lá
para cá, entre alegrias e tristezas, votei sempre no PT. Tornei-me um petista,
sem nunca ter frequentado a igreja do partido. Um “militante”, não um devoto.
Longo tempo se passou. Meu último voto no PT, para
prefeito de Salvador, foi em Nelson Peregrino, contra ACM Neto. O tempo passou,
ACM Neto venceu as eleições. Por outro lado, dessa vez com o meu voto, Rui
Costa – indicado por Wagner, que também já havia recebido meu voto – foi eleito
governador da Bahia.
Veio a eleição para a Presidente da República. No primeiro turno, votei em Ciro Gomes; no segundo, em Fernando Haddad, candidato do PT. Bolsonaro venceu. A vitória desse senhor jamais teria a contribuição do meu voto, ainda que os soldados do PT, com sua visão bipolar do mundo, digam o contrário.
Voltemos à Bahia. Na capital, o PT nunca conquistou
a vitória; sempre se aliou a coligações espúrias (uma prática bem conhecida da
direita), mais interessada em conquistar o poder do que em construir um projeto
político sério que beneficiasse verdadeiramente a cidade. Como exemplo, cito a
coligação feita com o pária João Henrique.
Em São
Paulo, sob imposição de Lula, houve a aliança entre Haddad e o representante de
tudo que há – e já houve – de pior na política brasileira: Maluf. Nunca fui
eleitor da oligarquia de Antônio Carlos Magalhães ACM (seja o patriarca ou o
seu neto). Suas ideias sempre estiveram – e ainda estão – distantes da minha
forma de pensar e ver o mundo. No entanto, não posso negar, que, à margem da
política, flertei, e continuo flertando – sim, flerte, nada de fidelidade ou
devoção cega – muito mais com as causas defendidas pela esquerda do que aquelas
que identificam o cenário ideológico da direita.
Sem o meu voto, ACM Neto se tornou Prefeito de
Salvador. Dois governos, o de ACM Neto e o de Rui Costa, um de “direita”, o
outro de “esquerda” (será?) – se empenharam em disputar para ver quem
realizaria a maior quantidade de obras na cidade. Empataram. A população, com
índices de mais de 70% de aprovação, reconhece a boa administração de ambos.
Andando pelas ruas da cidade, não posso deixar de admitir que estou satisfeito
por ter perdido o meu voto. Há derrotas que se transformam em vitórias.
O embate político entre a “direita” e a
“esquerda” na Bahia se traduz em boas obras para a cidade. A Bahia agradece.
Viva a diversidade política.
Com o tempo, aprendi a suspeitar dos profetas,
daqueles que autointitulam “salvadores da cidade”, sejam da “direita” ou da
“esquerda”. São homens perigosos. Depois de eleitos, tratam o Estado como um
bem particular, dividindo-o entre aliados, amigos e, não raramente, familiares.
O Estado deixa de ser um bem público e se transforma em uma propriedade privada.
O Estado sou eu – e, claro, meus aliados. Viva o “Rei Sol”.
Para se manterem no poder, em nome de uma tal
“governabilidade”, esses governantes renunciam aos valores que os fizeram
conquistar o voto e a confiança do povo. Por trinta moedas, vendem a sua alma...
Não importa o que façam, sempre estão certos. E quando erram, encontram
maneiras de justificar. Seus discípulos fazem uso da nefasta técnica da
inversão de valores. O “bem!” se torna “mal”, o “justo” se torna “injusto”, e
tudo dança na tábua de valores, não para atender ao público, mas aos interesses
particulares.
Apesar de ser um erro evidente, essa prática é repete-se
sempre que as paixões, livres das rédeas da razão, comandam nossas ações. Há sempre
uma “boa ação” que serve para encobrir os pecados cometidos: “Rouba, mas faz”.
Todos, independentemente da bandeira partidária, recorrem a essa “ética”
seletiva para justificar e defender suas transgressões morais.
Assim, o pecado nunca está onde eu me encontro – jamais na minha igreja –, mas é sempre uma abominação atribuída àqueles que habitam a outra margem, onde se ergue a igreja da perdição, morada de Mefistófeles. Não erra Montaigne ao afirmar que ‘cada qual aprecia o odor de seu esterco”. "Heródoto atribui judiciosamente, esse acesso da paixão - achar que a bandeira do meu partido ou da minha igreja é o estandarte da verdade -, a uma verdadeira loucura ou a uma desordem cerebral” (Hume - História Natural da Religião).
Quase sempre,
embriagados pela vaidade ou pela ânsia de proteção, vestimos máscaras acreditando que, assim, ninguém nos
verá; habituamo-nos tanto a esse artifício que já não nos reconhecemos: Tornamo-nos
seres mascarados, enxergando-nos não pelo que somos, mas pela máscara que
usamos. Fernando Pessoa, em sua Tabacaria,
dramatiza esse destino: “Fiz de mim o que não soube, / E o que podia fazer de
mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não
era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, estava pegada à
cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, já tinha envelhecido.”
Cegos diante de nós
mesmos — todos nos percebem - menos nós. Não mudamos: fixamo-nos. Perdemos a capacidade
de nos ver e nos tornamos estranho
àquilo que somos. Buscando nos proteger contra o olhar do outro, fingimos
ser o que não somos. Mas viver assim é um desassossego: passa-se a vida em fuga,
fechando portas e janelas, tapando frestas para não ser visto. Trabalho em vão.
Apesar de todas as cortinas erguidas contra o olhar do outro, ele insiste em
nos alcançar, revelando aquilo que lutamos para esconder. Nessa busca por
proteção, acabamos nos perdendo. O olhar do outro nos encontra, nos expõe, nos
devolve a nós mesmos – ainda que contra a nossa vontade. Como já advertia São Jerônimo: “somos sempre os últimos a
conhecer as chagas de nossa casa e, enquanto todos os vizinhos se riem dos
vícios de nossos filhos e de nossas esposas, somente nós os ignoramos.”
Caminhando em procissão, cada um em sua margem,
carregando o seu andor e, sobre ele, o seu mito, seu salvador, tenta conquistar
as ovelhas que pastam na margem oposta, prometendo-lhes terras onde a grama é mais
verde, onde a água nunca falta, onde o governo é probo e todos podem alcançar a
justa e merecida felicidade ... Rumo à terra prometida, a manada de obreiros, guiada
pela “bandeira do divino”, segue sua jornada, “se arrastando feito cobra pelo chão”.
Instalados em suas
superstições, tornam-se prisioneiros delas. Fazem de suas verdades suas
prisões. Já não arriscam, não colocam mais suas certezas sob suspeitas. Ao
contrário, tornam-se soldados de um fanatismo cego, empunham suas armas contra
todos que ousam se aproximar de suas verdades, ousa colocá-las em risco.
Sem sair do lugar, erguem sua morada, cultuam
sua verdade e tornam-se seus devotos.
Fechados ao guia seguro da
razão - lugar do esclarecimento - abrem-se para o obscurantismo. Saltitando
entre superstições, vão inventando mundos fantasmagóricos para habitar. “Se os homens pudessem regrar todos os seus
assuntos seguindo um propósito irrevogável ou, ainda, se a fortuna lhe fosse
sempre favorável, jamais seriam prisioneiros da superstição. Mas reduzidos com
frequência a um extremo tal que não sabem o que resolver, e condenados por seu
desejo desmedido dos bens incertos da
fortuna a flutuar sem trégua entre a esperança e o medo, tem a alma
naturalmente inclinada à mais extrema credulidade; se em dúvida, o mais leve
impulso a faz pender num ou noutro
sentido, e sua mobilidade cresce mais ainda quando suspensa entre o medo e a
esperança, ao passo que nos momentos de segurança ela se enche de vaidade e se
infla de orgulho” (Espinosa – Tratado Teológico-Político (Prefácio)
Quando as conveniências partidárias passam a
justificar a relativização dos valores, é porque “há algo de podre no reino da
Dinamarca”.
Perguntaram a Platão, qual seria o critério para se identificar o Bem mais perfeito – o Bem ideal. Ele não teve dúvida: identificamos o Bem mais perfeito por sua extensão. Quanto maior a sua abrangência, mais próximo do ideal ele se encontra. O bem que visa a cidade, é mais extenso que o bem que visa o cidadão. O bem universal é mais perfeito do que o bem particular...
O fenômeno em si não é “bom” nem “mau”; o seu valor
será determinado conforme nos afeta. Se somos afetados positivamente, os afetos
são amados, desejados e tornam-se causa das nossas alegrias, aumentando nossa
potência de agir – por isso buscamos preservá-los. Os afetos negativos, ao
contrário, diminuem a nossa potência de agir, tornam-se causas de tristeza e,
por isso, os evitamos. O ideal seria sermos afetados pelos afetos que nos
trazem alegrias e ampliam nosso ser. Com bem diz o poeta Vinicius de Moraes: “É
melhor ser alegre do que ser triste / Alegria é a melhor coisa que existe”.
Mas, infelizmente, nem sempre é isso que ocorre.
Quase sempre caminhamos em direção contrária.
O problema surge quando a regência dos nossos
afetos fica sob o comando das nossas paixões, fora do alcance do reto uso da
razão. Nesse momento, embaralhamos as cartas dos afetos, perdemos o controle
sobre eles e, desordenadamente, somos conduzidos ao campo da des-razão, onde
reina nossas crenças, esperanças e superstições – um território fértil para que
o fanatismo, cego e perigoso, se torne a força orientadora de toda a ação
humana.
Renunciando à sua autonomia e ao direito conquistado
no processo civilizatório, o homem aliena a sua alma, tornando-se servil a um
salvador qualquer. “O fanatismo é a única forma de força de vontade acessível
aos fracos (Nietzsche). Sem culpa, porque consciência não temos; sem controle
dos próprios passos, já não sabemos caminhar. Como trôpegos, esperamos que
alguém nos carregue, nos salve, nos conduza à terra prometida.
“Ainda que importe a todos os homens conhecer a verdade, todavia pouquíssimos a conhecem, porque a maioria deles se crê incapaz de procurá-la por si mesmos, ou não quer se dar ao trabalho de fazê-lo. Assim, não admira que o mundo esteja repleto de opiniões vãs e ridículas, nada sendo mais capaz de lhes dar curso do que a ignorância. De fato, é ela a única fonte de falsas ideias que se tem da divindade, da alma, dos espíritos e de quase todos os erros que dela derivam. É um uso que prevaleceu contentar-se com os prejulgamentos que se carregam desde o nascimento, e consultar pessoas pagas para sustentar as opiniões recebidas e, por conseguinte, interessadas a convencer o povo a respeito delas, sejam verdadeiras ou falsas [...] Se o povo pudesse compreender em qual abismo a ignorância o arremessa, sacudiria logo o jugo dessas almas venais, que, para seu interesse particular, o mantêm nessa ignorância”. “[...] O que há de certo é que a reta razão é a única luz que o homem deve seguir, e que o povo não é tão incapaz de usá-la quanto se busca fazê-lo acreditar” (Spinoza - Tratado dos três impostores).
De fato, a reta razão é o único caminho que o
homem deve seguir; só ela pode conduzi-lo a um porto seguro. Nenhum homem deve
achar-se incapaz de usá-la, tampouco julgá-la acima de suas forças, como se uns
já nascessem destinados ao exercício do pensamento e outros condenados ao
obscurantismo. Ao contrário, a razão é um dom comum a todos. O que distingue o
senhor do escravo são as escolhas que cada um faz ao colocá-la em prática. A
razão é um bem democrática: pertence a todos, e todos têm o mesmo direito de exercê-la.
Não é propriedade de nenhum senhor, deste ou de outro mundo, que a distribua
segundo conviniências políticas ou religiosas. “A ninguém, nem aos deuses nem
aos demônios, nem às tiranias da terra nem às tiranias do céu, foi dado o poder
de impedir aos homens o exercício daquele que é o primeiro e o maior de seus
atributos: — o exercício do pensamento” - (Teócrito). O direito que todo homem
tem de conquistar sua maioridade, sua dignidade humana, começa com a conquista
da autonomia de sua razão. Esta deve lhe pertencer por inteiro. Ele é seu dono,
seu senhor absoluto. “Devemos... filosofar sempre, e ser servos da filosofia,
se queremos alcançar a verdadeira liberdade” (Epicuro – Carta a Meneceu).
Renunciar à razão é entregar-se à servidão, renunciar à própria liberdade e
dignidade. Só a razão faz, de fato, um homem, Um homem.
Em pleno século XVII, período em que a razão se
encontrava tutelada, lutando contra tudo e contra todos para se fazer presente
no mundo, Descartes assumiu a sua defesa, indicando seu caráter democrático,
esclarecedor do mundo e libertador do homem. Essa é a primeira frase com a qual
ele começa o seu Discurso do Método, livro com o qual demarca a
transição entre o mundo antigo e o moderno: “O bom senso – a razão - é a coisa
do mundo melhor partilhada”. Entretanto, logo em seguida, ele alerta: “Não é
suficiente ter o espírito bom; o principal é aplicá-lo bem.”
“Guia-me a
só a razão. / Não me deram mais guia. /
Alumia-me em vão? / Só ela me alumia.... / Como olhar, a razão / Deus me deu,
para ver / Para além da visão / — Olhar de conhecer. / Se ver é enganar-me, / Pensar um
descaminho, / Não sei. Deus os quis dar-me / Por verdade e caminho.” (Fernando
Pessoa)
Conhecer os afetos, tê-los
sob posse e domínio – em vez de ser dominado por eles – é indício de que
estamos diante de uma alma que aprendeu a cuidar de si. Uma alma livre e
teimosa que escolheu escolher-se.
“‘Vem
por aqui’ – dizem-me alguns com olhos doces / [...] / Não, não vou por aí! / Só
vou por onde / Me levam meus próprios
passos...” (José M. dos Reis – Cântico negro)
Escolhendo-me, condenei-me a caminhar sozinho. Não lamento; foi uma conquista. Em minhas caminhadas solitária colho os meus maiores – e melhores – prazeres, encontro as minhas consolações. “Eis-me, portanto, sozinho na terra, tendo apenas a mim mesmo como irmão, próximo, amigo, companhia” - (Rousseau). Para onde meus passos me levarão? Não sei; sequer desejo saber. Não me ancorarei em certezas, nem me deixarei seduzir pelos falsos cantos da chegada; quero apenas caminhar, como um andarilho pelas estradas...
Tenho convivido com pessoas plenas de certezas. São seres superiores, tão seguros de suas verdades que chegam a me assustar. Devotos, sustentados pela força e pelo poder da fé, seguem o som do berrante – shofar - tocado por seu Messias, seu Salvador... Evito sentar-me à mesa dessa gente, evito partilhar o seu pão e o seu vinho. “Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?” Eu, que não tenho nenhuma certeza - apenas dúvidas e suspeitas? Dos passos que dei, nada tenho a reclamar: “Vi a planta, a flor, o fruto, agora vejo o fim”. Essa é a ordem natural. O resto, é silêncio ou, quem sabe, um amontoado de superstições.
Sou um caminhante solitário, que escolheu viver sem
Messias e sem deuses. Já não pertenço a ninguém. “Poucos sabem qual é o rio da
minha aldeia, / e para onde ele vai, / e de onde ele vem. / E por isso, porque
pertence a menos gente, / é mais livre e maior o rio da minha aldeia” (F.
Pessoa). Sigo em frente, sozinho e cada vez mais livre. Deixe-me ir, com minhas caminhadas incertas. Caminho,
caminhando-me.
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