O DIA EM QUE EU FIZ A MINHA
PRIMEIRA GREVE DE FOME
Durante
séculos, o hospital foi menos um lugar de cura do que de clausura, onde a
doença se tornava motivo de prisão. (M. Foucault)
O dia amanheceu esplendoroso. Uma luz dourada banhava toda a paisagem.
Era um convite para sair de casa. Não era justo ficar na penumbra sombria do
escritório, enquanto o dia convidava para a festa do sol. Não tive dúvida,
aceitei o convite de Yemanjá para ir brincar em suas águas. Nada melhor do que passar o dia em Itapuã, “ouvindo o mar de Itapuã”.
Águas calmas e mornas. Um sol de dourar a pele. Água de coco. Acarajés
deliciosos. Cervejas bem geladas. Companhia agradável. Tudo perfeito! O dia foi
concluído com uma suculenta mariscada em um restaurante. Não houve excesso.
Pelo menos, era o que parecia. É preciso cuidado com a posse do prazer, sempre achamos que o temos na
medida certa, mesmo quando nos excedemos. Ele é um ser ardiloso, encontra-se
sempre a nos enganar, embriagando nosso reto juízo, tornando-nos cegos para os
nossos pecados. “Não ande
com gente que bebe demais, nem com quem come demais. Porque tanto os beberrões
como os comilões vivem com sono e acabam na pobreza, vestindo trapos. (Provérbios
23:20-21). Chegando
em casa: banho, cama e um bom cochilo. Aquele sábado havia sido perfeito. Que
venha segunda-feira! Encontrava-me de espírito renovado para enfrentá-la.
No
silêncio do meu gozo, enquanto repousava, uma revolução química se processava
em meu corpo. Ao acordar, senti-me incomodado com uma leve cólica intestinal.
Achei que não tinha cometido excessos. Enganei-me. A mistura de tudo, sem a
segurança sobre a origem de cada uma das iguarias consumidas, produziu uma
reação desfavorável nas entranhas do meu ser. Lembrei-me dos ensinamentos da
igreja durante a minha catequese, nos preparativos para a minha primeira
comunhão, quando o padre insistia em dizer: “A gula se encontra entre os sete
pecados capitais”. Eu acabara de cometê-lo e estava recebendo a justa punição.
Antes de me entregar aos excessos, deveria ter ouvido Sócrates: “Observava
expressarem os atenienses o ato de comer por termo que significa “bem comer”,
acrescentando que o vocábulo “bem” junto a “comer” indica que o alimento não
deve ser nocente ao corpo nem ao espírito, nem de difícil obtenção. Em uma
palavra por “bem comer”, entendia “viver com moderação”. Aristóteles, por sua
vez, reconhecia a virtude como a capacidade do homem de, prudentemente, evitar
as extremidades, em todas as suas ações. “Tanto a deficiência como o excesso de
exercícios destroem a força; da mesma forma, o alimento ou a bebida que
ultrapassem determinados limites, tanto para mais como para menos, destroem a
saúde, ao passo que, sendo tomados nas devidas proporções, a produzem, mantêm e
preservam”. Também não deveria ter desconsiderado as sábias palavras de
Epicuro: “Não são as bebedeiras e as orgias contínuas, os prazeres dos jovens
rapazes e das mulheres, os peixes e outros alimentos que uma mesa luxuosa
oferece, que engendram uma vida feliz, mas a razão vigilante” (Doutrinas e
máximas).
Pitágoras, que, além de buscar
compreender o universo por meio da métrica da geometria, também era um homem
atento à moderação, evitava os excessos na alimentação e na bebida. Mais que
uma escolha pessoal, recomendava aos seus adeptos que evitassem o consumo de
peixes como o salmonete e o melanuro; prescrevia a abstinência tanto do coração
dos animais quanto das favas e, segundo Aristóteles, também do rúmen e da
cabrinha. Outros autores afirmam que, por vezes, alimentava-se apenas de mel ou
favos e pão, e que, ao longo do dia, não bebia vinho. Com o pão, comia
frequentemente verduras cruas ou cozidas, e raramente peixe. [...] Nunca o
viram comer em excesso, entregar-se aos prazeres do amor ou embriagar-se.
(Diôgenes Laërcio, Vida e doutrinas)
Tenho que reconhecer: naquele
dia — e não apenas naquele dia — eu merecia contemplar mais as estrelas,
desapegar-me das coisas do chão, alçar voo rumo aos conceitos, evitando
tornar-me tão facilmente presa dos prazeres do corpo. Mas não foi o que fiz. Fiz-me
de surdo aos bons conselhos dos filósofos.
Achei
que aquela cólica seria passageira. Não foi. Recorri à farmácia e, sob a
orientação da farmacêutica, comprei algumas medicações: Buscopan, Luftal, um
laxante etc. Apesar dessa primeira medicação, a cólica persistia. Mesmo
debilitado fisicamente, cumpri as minhas obrigações da segunda-feira. Ao chegar
em casa, lá pelas 20h, percebendo que a cólica permanecia, evitando ser
imprudente pela segunda vez, resolvi procurar uma emergência, em busca de uma
assistência qualificada. Fui em direção ao Hospital mais próximo de minha casa.
Naquele momento, sem ter consciência dos dramas futuros, estava deixando “o céu
por ser escuro e indo ao inferno em busca de luz”. Não tinha mais como voltar, havia acabado de dar entrada na Emergência. Lembrei-me
de Dante, na Divina Comédia, quando, no portal da
entrada do inferno, diz: “Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança”.
Tornei-me um prisioneiro do hospital. Às vezes, a Medicina é pior que a doença.
Eu me
conhecia bem e tinha absoluta certeza de que estava apenas com uma simples
infecção intestinal.
Às
20:30, dei entrada na emergência. Atendida a burocracia protocolar, fui
encaminhado à sala de espera. A atendente disse: “Logo o senhor será chamado.
Fique atento à sua senha, ela aparecerá no painel”.
Naquele dia, parecia que todos que haviam
negligenciado a temperança tiveram a mesma ideia: buscar aquela emergência. Os
dois médicos de plantão não tinham como atender a tamanha quantidade de almas
combalidas. Após uma hora de espera, meu nome apareceu na tela. Começava ali o
meu atendimento.
A médica
fez a anamnese. Narrei-lhe minhas peripécias e os sintomas que estava sentindo.
Solicitou um exame de sangue e encaminhou-me para os primeiros procedimentos
medicamentosos. Sentado em uma cadeira, recebi soro e, em uma veia foi colocado
um acesso para administração de futuras medicações.
Perdi a
conta da quantidade e da diversidade de drogas que foram injetadas em meu corpo
por aquele acesso. Aguardei mais duas horas, até que fui chamado novamente pela
médica.
Diagnóstico: “Sua taxa de (sei lá o quê) encontra-se
bastante alterada. É uma indicação de que o senhor pode estar com uma pancreatite
aguda.”
Ao ouvir
o sufixo “-ite”, entrei em surto. Sou hipocondríaco - não muito, mas sou. Não
posso entrar em uma farmácia sem comprar remédios, até para doenças que não
tenho, e para as que acredito que um dia terei. De imediato, imaginei-me
portador de todas as doenças derivadas do sufixo “-ite”. Estava convencido que
era portador de uma inflamação generalizada e que nenhum órgão do meu corpo
havia escapada ao ataque das “ites”.
Agora
entendo por que o semblante daquela médica estava tão triste. Ela, por piedade,
não queria me dizer que chegara minha hora de bater na porta do céu ou do
inferno. Via, no fundo dos seus olhos, que era isso que ela queria me dizer: “Senhor,
seja forte, mas tenho que lhe dizer a verdade. O senhor não só tem pancreatite.
Acompanhando essa condição, o senhor também tem: adenite, anexite, apendicite,
arterite, artrite, esofagite, ceratite, gastroenterite...”.
Aquele, muito provavelmente, seria o meu último dia na Terra. Não vendo
alternativa, comecei a lançar as minhas preces ao alto, pedindo que o Médico
dos médicos viesse ao meu socorro. Preces em vão. Estava convencido de que o
milagre não viria.
Primeiro, porque sabia que Deus
não atende pedidos de ateus. Segundo porque, como dizia Hume, milagre não passa
de uma superstição utilizada para difusão do sagrado entre bárbaros e
ignorantes, como mecanismo de afirmação das religiões. Como se não bastasse
tudo isso, não fazia muito tempo, havia escrito um livro no qual defendi a tese
de que Deus estava morto.
Tinha que reconhecer: não era merecedor do olhar divino. Era chegada a
hora da vingança de Deus.
A médica, vendo o meu estado de
pavor, tentou me acalmar: “Senhor, ainda não temos certeza de nada. Não devemos
antecipar os fatos. Vamos continuar a investigação. Entretanto, se o seu quadro
clínico permanecer assim, não teremos outra alternativa senão interná-lo e
indicar o procedimento cirúrgico”.
Aquilo não podia continuar. Eu precisava tomar uma atitude. Respirei
fundo e disse a mim mesmo: “Seja homem, cabra! Tu és um sertanejo e, conforme
Euclides da Cunha, ‘o sertanejo é, antes de tudo, um forte!’ Reaja! Não deixe
essa médica dizer que você se encontra em estado avançado de decomposição!”
Reagi: “Doutora, eu só estou com uma infecção intestinal. Foi tudo culpa
do azeite de dendê.
Ela retrucou: “Não é o que os seus exames estão dizendo”. Para
justificar que estava certa e eu, errado, declinou todos os seus conhecimentos sobre
aparelho gástrico e os riscos
que eu corria.
Naquele
momento, disse para mim mesmo: “Cara, por que você foi à praia? Não percebe que
você nunca habitou bem esse território? Deveria ter continuado em seu
escritório, contemplando o mundo das ideias. Lá, as praias são perfeitas, os
alimentos nunca causam infecções gástricas”.
A punição pelo pecado da gula mostrava-se
sendo pesada. Por que não escutei Santo Agostinho, que advertia: “Vós me
ensinastes a ingerir os alimentos como se tratasse de remédios”? Ou São
Gregório, que lembrava: “Quando impera o vício da gula, perdem os homens tudo o
que fizeram de grande e, quando o ventre não é dominado, todas as virtudes são
simultaneamente liquidadas”?
O que não faltam são boas recomendações beatificas a nos ensinar a viver
moderadamente, impedindo que os desejos do corpo maculem a pureza da alma.
Pobre é o homem que, por ignorância, descuido, ou mesmo por pura vaidade, não
cuida da alma e a deixa ser escravizada pelos destemperos das paixões. Os
sentidos, diz são Jerônimo, “é a janela através da qual o pecado acessa a alma”.
Tomemos
como exemplo a gula. Sobre ela, escreve: “E quem não sabe
que a gula é a mãe da avareza e, por assim dizer, acorrenta o coração e o
mantém pressionado sobre a terra? Em prol de uma gratificação temporária do
apetite, a terra e o mar são saqueados, e nós labutamos e suamos nossas vidas,
para que possamos enviar goela abaixo vinho de mel e comida cara”.
Era
tarde demais. Eu tinha dado entrada no inferno, e o Diabo havia fechado as
portas, jogado as chaves fora. Já não me pertencia. Perdi-me.
Ainda,
em uma última tentativa, busquei convencer a médica a me liberar. Ela,
educadamente, disse: “Não o prenderemos aqui. O senhor é livre para sair. Seu
caso pode ser grave. Se quiser correr o risco, fique à vontade”.
Quem, em
sã consciência, assumiria essa responsabilidade?
Ela continuou:
“Vou solicitar uma tomografia computadorizada. quando sair o resultado, faremos
uma reavaliação do seu quadro clínico.”
Mais um longo tempo de espera. Enquanto
esperava, socializei-me com o sofrimento de outros pacientes. Alimentado por um
egoísmo perverso, ficava menos triste ao descobrir que, entre as dores do
mundo, a minha não era a maior. Sempre poderia ser pior.
Uma
família de ciganos estava por perto. Acabei encontrando neles um bom papo para
passar o tempo. Por pouco, não comprei um cavalo do cigano. Ele já estava me
convencendo de que faria um grande negócio, quando fui salvo pelo monitor,
chamando o número da minha senha. Que alívio! Onde iria criar aquele cavalo?
Acho que teria problemas com o síndico do meu prédio.
Já eram
quase duas horas da manhã quando, novamente, fui chamado para a reavaliação.
Desta vez, já com o resultado da tomografia: “Senhor, o resultado do exame não
é muito esclarecedor, mas já podemos informar que o senhor está com uma
inflamação acentuada no pâncreas”. Ela continuou: “O pâncreas é dividido em
três partes: a cabeça, o tronco e a cauda. O que percebemos é que a inflamação
se concentra na cabeça do pâncreas. Já podemos confirmar que o senhor está com
uma pancreatite, só ainda não sabemos se é aguda ou simples.”
Devo
lembrar que a primeira médica e todos que vieram depois dela apalparam toda a
região de minha barriga em busca de dor, o que acusaria a presença de uma
inflamação. Pesquisa em vão: nada estava doendo. Continuando, disse a médica:
“Por segurança, pediremos outros exames. Se for confirmado o que estamos vendo,
a orientação é que o senhor seja imediatamente operado”.
Aí, é
claro, bateu o medo. Como assim? Um simples dia de lazer pode levar a uma
cirurgia? Passaria, então, o carnaval imobilizado em um leito de hospital?
Nunca mais quero ouvir “o mar de Itapuã”. Em minha defesa, já com as forças
combalidas, busquei, mais uma vez, convencer a médica que ela estava errada em
sua avaliação, que eu estava me sentindo bem. Disse: “Doutora, não estou
sentindo mais nada. A primeira medicação ministrada já eliminou os sintomas que
estavam me incomodando. Eu poderia retornar à minha casa e voltar amanhã para
dar continuidade aos procedimentos. Pode ser?”
Ela foi enfática: “Senhor, a recomendação é
que o senhor permaneça internado. Pancreatite – inflamação no pâncreas – pode
ser uma coisa simples, mas também pode ser letal. Melhor investigar a gravidade
e a extensão de sua enfermidade”.
Já me sentia partindo deste mundo. Lembrei que
Sócrates, condenado à morte, já tendo tomado o cálice de cicuta, como um bom
moralista, não querendo deixar dívidas, disse para Crito: “Devo um galo a
Esculápio... Providencie para que a dívida seja paga”. Assim como o pai da
Filosofia, eu também não desejava defuntar, deixando como lembrança a pecha de
caloteiro. Sentindo que o cálice da morte se aproximava dos meus lábios,
perguntei-me: “Deixei
tudo organizado? Paguei todas as minhas dívidas? Reservei um determinado valor
para os encargos com o meu funeral? Minhas economias são suficientes para a
minha cremação?”
Sou muito organizado, não queria deixar
dívidas para outros assumirem. Sei que sou amado, mas, diante de dívidas
deixadas, com certeza o amor perderia a sua força, e, em seu lugar, viriam as
pragas e injúrias dos entes queridos.
Não
vendo saída, cercado de todos os lados pela gravidade da doença, acompanhado
pela avaliação da autoridade sobre o assunto, recolhi-me à minha ignorância e,
como um bom servo, segui os passos indicados pelos filhos de Hipócrates.
Naquele momento, constatei que a ignorância nos condena à servidão. Então,
perguntei: “Doutora, e agora? O que faremos?” Ela respondeu: “Vou encaminhar a
sua internação e, ao mesmo tempo, solicitar um exame de ultrassom do aparelho
digestivo”.
Como ela
era a médica de plantão na Emergência, informou: “Amanhã, o senhor será
acompanhado pela equipe gástrica do hospital.”
Às 3:00
da manhã, chegou uma maca para conduzir o prisioneiro à sua cela. Apesar de ter
um plano de saúde que me dava direito a um apartamento, o hospital não tinha
apartamento disponível. Fui levado à enfermaria, onde fiquei à espera de vaga.
A enfermaria era uma espécie de “estacionamento de macas”, onde, ao lado de
cada maca, havia uma cadeira para o acompanhante. Ao chegar àquele espaço,
reservado, especialmente para mim, encontrei um casal que dividiria comigo
aquele minúsculo ambiente.
O
movimento de minha chegada acabou acordando o casal. A esposa acompanhava o marido
internado. Assim como eu, eles também aguardavam um apartamento. Não posso
negar: apesar de tudo, encontrar aquele casal foi a parte boa da situação. Era
um casal simpático. Fomos solidários em nosso sofrimento, que acabou se
tornando motivo de riso. O riso, como se sabe, tem o poder de amenizar a dor.
Achei
que estava sonhando, que nada daquilo estava acontecendo comigo, que tudo não
passava de um pesadelo. De fato, era um pesadelo, mas real. A realidade me chocava,
mas ali estava, lembrando-me de minha insignificância. O dia amanheceu. Acordei
com uma indisposição no corpo e na alma. Pensei que um bom banho, acompanhado
de higiene matinal, aliviaria minhas dores e traria um pouco de luz àquele
mundo sombrio.
Apesar
das cobranças, até as 11:00 da manhã, ainda não tinham providenciado o meu
banho, e sequer os dentes eu havia escovado. As palavras que eu mais ouvia eram:
“Paciência, estamos providenciando”. Às onze e meia, apareceu uma enfermeira
com uma toalha e indicou-me um banheiro do corredor, onde eu deveria tomar
banho. Não reclamei. No estado em que me encontrava, já era uma bênção tomar um
banho e escovar os dentes. Voltei para o “estacionamento de macas”.
Às
13:15, serviram o almoço. Isso é horário
para um hospital servir almoço aos pacientes?
Entre os talheres, faltava a faca, não havia como continuar a refeição.
Solicitei a faca. Como demorou a chegar, improvisei com as mãos. Quando
trouxeram a faca, já havia concluído o almoço.
Às 15h,
chegou a maca para me conduzir ao próximo exame: o ultrassom. Falei: “Estou
bem. Posso ir andando? Não preciso de maca”. O maqueiro respondeu: “Senhor, não
pode. O procedimento administrativo determina que os pacientes só podem se
deslocar em macas ou cadeiras de rodas”.
Como já
havia renunciado a qualquer autonomia sobre mim mesmo, tornei-me um fantoche em
mãos alheias, com postura de cordeiro. Sentei-me na cadeira de rodas e fui
sendo conduzido pelos corredores do hospital, acompanhado pelos olhares das
pessoas ao redor. Lia em seus olhares: “Poxa, que pena! Este senhor parece
estar nas últimas, já nem se aguenta de pé.” Eu desviava o olhar, não queria
que eles testemunhassem as dores de uma alma enferma e escravizada.
Fiz o
exame. Retornei para o “estacionamento de macas”.
Aproveitei
o tempo livre para dar risadas com os companheiros de estacionamento. Já na
sala do exame, o médico responsável pelo procedimento, disse: “Não estou
encontrando nada; por aqui está tudo em ordem. Acho que foi algo pontual.”
Aquele exame confirmava que eu estava certo. Mas não podia fazer mais nada. Encontrava-me
prisioneiro de uma rede de poder, à qual o paciente está submetido. Só resta
obedecer.
Ao ceder
o seu corpo aos cuidados de outra pessoa – um grupo de desconhecidos -, ele já
não lhe pertence. Você deixa de ser um indivíduo e passa a ser um código de
barra em uma pulseira. Ninguém mais fala com você. Você se tornou invisível.
Entram, escaneiam o código, realizam os procedimentos... e pronto. Serviço
concluído. Foi exatamente o que aconteceu.
Por
volta das 16h da terça-feira, chegou a médica do Centro de Gastro. Disse::
“Senhor, recebemos os resultados dos exames. Nada foi constatado”. Na minha
ignorância, mais uma vez, eu tinha razão. Eles estavam errados.
A médica
continuou a sua explanação. Em um bloco, desenhou didaticamente todos os órgãos
que compõem o aparelho gástrico, indicando suas funções e como se articulavam. Enquanto
desenhava, apontava os riscos que eu corria. Fiquei ali parado, apenas olhando.
Ela falava grego. Não entendia quase nada. Ainda tem gente que diz que
Filosofia é difícil. Mais fácil aprender “Japonês em braile” do que compreender
a complexa configuração do aparelho digestivo.
Apesar
de os exames não apontarem qualquer anomalia, a dúvida permanecia: eu tinha ou
não uma pancreatite aguda? Quanto mais os médicos falavam, mas a convicção na
tal doença grave se desbotava. Já não era uma certeza, apenas uma leve
suspeita. Para eliminar todas as dúvidas, foi solicitado uma tomografia
computadorizada para o dia seguinte. Disse a médica: “Para a realização do
próximo exame, o senhor deverá permanecer em jejum”.
Ainda me
encontrava residindo no ‘estacionamento das macas’. Fui convencido por todos os
presentes a ter calma e esperar o dia seguinte. Finalmente, uma boa notícia! Às
20h, chegou uma enfermeira informando que o meu apartamento estava reservado.
Apesar da tristeza de deixar o simpático casal de amigos que conheci ali, a
possibilidade de dormir em um quarto mais confortável me fez esquecer, por
momento, as dores do deserto que atravessava.
Essa foi
uma noite reparadora. O dia amanheceu. Novas surpresas. O andar onde me
encontrava internado estava em obras. Passei o dia inteiro ouvindo a “agradável
sinfonia” de britadeiras e marretas quebrando paredes. E eu, ingênuo, imaginava
que hospital era lugar de silêncio e repouso. Apesar do barulho, o quarto era
infinitamente mais confortável que o “estacionamento de macas”.
Não
demorou, e uma enfermeira veio ao meu quarto, desculpando-se pelos transtornos.
Jurou que às 18:h, ao menos naquele dia, o silêncio voltaria. Esperei a chegada
da maca para o exame até às 11h. Nada. Aproximava-se do meio-dia e o jejum
exigido começava a pesar. Chamei a enfermeira e perguntei: “Senhora, tenho um
exame marcado para esta manhã, e o mesmo deverá ser realizado com o paciente em
jejum. Estamos nos aproximando do meio-dia. O que devo fazer? Devo almoçar?
Vale lembrar que o exame foi marcado às 15:00 do dia anterior. Ela respondeu: “Vou
me informar e volto a lhe comunicar”. Trinta minutos depois, retornou dizendo:
“O senhor pode almoçar, o exame só será realizado no final da tarde.” Não
acreditei. Era óbvio que, com o exame à tarde, minha alta seria adiada para o
dia seguinte. Foi então que rebelei. Ali mesmo, comecei a minha primeira greve
de fome. Durou pouco, mas o suficiente. O tempo de duração importa pouco, o que
importa mesmo é o resultado. Minha estratégia deu certo, o resultado foi
exitoso. Lembrei-me que, nos tempos da ditadura, os presos políticos, a fim de
denunciar os maus tratos que recebiam, recorriam à greve de fome. Eu também
estava exercendo um ato político: denunciava o estado absurdo em que estava
sendo submetido naquele hospital.
Falei
para a enfermeira: “Estou entrando em greve de fome. Não me alimentarei até que
o exame seja realizado”. Para ser mais radical ainda, completei: “Sequer água
tomarei”. Ela, de olhos esbugalhados, olhou-me assustada, sem saber bem o que
fazer. Não vendo alternativa, retirou-se e foi socializar com suas colegas a
informação de que, no quarto 105, de uma ala qualquer, encontrava-se um louco
fazendo greve de fome. Em menos de trinta minutos, a enfermeira retornou e disse:
“Senhor, já estão vindo lhe buscar para a realização do exame”. Senti-me
orgulhoso. Pela primeira vez, naquele hospital, tomei as rédeas de meu destino,
resgatei minha dignidade.
Fui ao
exame. Sentei-me na sala de espera. Por mais de quarenta minutos aguardei ser
chamado. Enquanto esperava, sem nada melhor para fazer, tornei-me um observador
da vida alheia. Uma senhora baixinha sentou-se ao meu lado: pernas encurtadas,
troncuda, sem pescoço, cabelos mais negros que as asas da graúna, vestia uma
túnica azul, fornecida pelo hospital aos seus pacientes, parecia ter saído de
um dos filmes de Bergman. Com um rosário nas mãos, contritamente, orava.
Observei-a sem incomodá-la. Nunca se deve importunar alguém que está falando
com Deus. Pensei comigo: sou um ateu, não acredito que Deus exista, mas
respeito a crença dos outros. Se essa senhora acredita, torço para que ele ouça
os seus clamores e venha ao seu auxílio. Não demorou muito, ela foi chamada
para realizar o seu exame. Lancei o meu olhar em outra direção. Um jovem
médico, bombado de academia (ou algo mais), chamou a minha atenção. Já passava
das 13h. Ele saiu de uma sala, carregando o seu almoço. Curioso, concentrei-me
no que ele carregava. Perguntei-me: “Que regime alimentar deve fazer esse jovem
para manter esses bíceps tão acentuados e definidos? Será que só a mudança de
hábito alimentar é capaz de produzir esses milagres?” São perguntas que só os
deuses sabem responder. Vi que o jovem médico carregava uma Tupperware (mais conhecida como tapoer)
transparente. Concentrei-me em seu conteúdo. Obtive sucesso. Identifiquei a
causa originária do milagre de seus bíceps avantajados: uma porção de banana da
terra cozida, acompanhada de quatro ovos. Naquele momento, uma convicção
instalou-se em minha alma: de hoje em diante, a minha dieta será composta de
pencas e mais pencas de bananas da terra, acompanhadas de dúzias e mais dúzias
de ovos.
O tempo
de espera não foi em vão, acabei adquirindo conhecimentos para melhorar a
performance dos meus flácidos e raquíticos bíceps. Quando o meu olhar se
direcionava em busca de outra aprendizagem, ouvi uma voz metálica: “Senhor
Joceval, por favor, dirija-se ao corredor três, sala doze”.
O exame,
no entanto, foi uma tortura. Claustrofóbico, fiquei trinta minutos imóvel
dentro de uma máquina, em forma de tubo. Por vários momentos pensei em
solicitar que o exame fosse interrompido. Para suportar a tortura com
dignidade, recorri à moral estoica. “Doente e, ainda assim, feliz; em perigo e,
ainda assim, feliz; morrendo e, ainda assim, feliz; na desgraça e feliz”.
Quando, então, ouvi a voz da técnica dizendo: “Pronto, tudo concluído”. Meu
corpo teve espasmos de prazer, melhor que um orgasmo.
Já eram
16h, e ainda estava sem comer. voltei ao quarto na esperança de encontrar algo
para aplacar a minha fome. Nada. Acho que eu continuava não existindo para
eles. Após insistir com a enfermeira, finalmente recebi um lanche às 17h. Com o
exame feito, barriga cheia, deitei-me e esperei a visita do médico. Às 18h, ele
entrou, anunciou a minha alta e disse que o resultado do último exame sairia em
48 horas. Fingi-me de morto, não queria que ele me dissesse que eu continuaria
internado mais dois dias, até que o resultado do exame fosse liberado. Ali, no
quase silêncio daquele quarto, sem palavras, estabeleceu-se um pacto entre o
médico e o paciente: “Vamos nos livrar
um do outro. Eu lhe dou alta, e você some daqui”. Como ambos concordaram com os
termos, foi celebrado o contrato da partida. Ele me entregou a documentação de
alta e, ao final, disse: “Aqui está uma receita com a medicação que o senhor
deve tomar. Boa noite e muito obrigado!”
Assim
que ele saiu, tive a curiosidade de ler a medicação prescrita para uma doença
tão grave, que poderia ter me levado à morte. Eis as indicações: Novalgina de
1g; Buscopan simples; Vanau flash 8 mg; Luftal, uso oral. Coincidentemente,
essa era a mesma medicação que eu já estava tomando, prescrita pela
farmacêutica do meu bairro, antes de me tornar prisioneiro daquele hospital.
Sozinho, pensei: por que
a Medicina se encontra tão desumanizada? Por que aquele hospital se encontrava nesse caos
administrativo?
Não havia
tempo para esperar respostas para perguntas tão metafísicas. Peguei a minha
trouxa e saí correndo dali. Fui ao estacionamento. Peguei o meu carro. Voltei
para casa.
Quando
saí daquele lugar, senti que estava me libertando de um mundo Kafkiano,
coisificado, desumanizado. De tudo isso, ficou a saudade da sabedoria da minha
mãe, que, ao ver um filho reclamando de “dor de barriga”, corria ao quintal,
colhia folhas de erva-cidreira, fazia um bom chá e dava ao seu paciente. No dia
seguinte, lá estava o seu rebento, sadio, lindo e faceiro, brincando com a vida
e preparado para conquistar o mundo.
CAMINHO, CAMINHANDO-ME.
Não sei quantas almas
tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei. (F. Pessoa)
Por volta de
1982, esteve na Bahia, Félix-Guattari, psicanalista e militante revolucionário
francês que, junto com Deleuze, escreveu o livro: O Anti-Édipo: Capitalismo
e Esquizofrenia. Veio ao Brasil com a missão de compartilhar sua
experiência como militante do Partido Socialista Francês - partido que, mais
tarde, chegaria ao poder na França.
No Brasil, a classe operária, especialmente aquela mais politizada, oriunda da região do ABC/Paulista, alimentava a pretensão de fundar um partido político que representasse, de fato, os interesses da classe trabalhadora. Nada mais oportuno, portanto, de conhecer, na prática, como os trabalhadores de outros países se organizavam politicamente.
Na verdade,
o PT já tinha sido fundado, em 1980. Contudo, não passava de um partido
incipiente, restrito à região de suas bases sindicais. Sua ambição era
transformar-se em um partido de alcance nacional, que conquistasse à adesão de
todos os trabalhadores do Brasil.
A palestra de Guattari foi realizada na casa dos padres jesuítas,
situada no bairro da Federação, em São Lázaro, onde, por muito tempo, funcionou
a revista CEAS – Centro de Estudos e Ação Social: um espaço aberto para
que as vozes silenciadas pela repressão da época pudessem se manifestar. Ali, a
esquerda política da Bahia se reunia, inventava suas utopias, escrevia seus
textos e compartilhava suas ideias.
Ao final da palestra, foi distribuída uma lista na qual os presentes deveriam assinar, demonstrando sua concordância com a fundação de um partido político que representasse e defendesse a visão de mundo dos oprimidos — uma visão de mundo da classe trabalhadora.
Eu era um jovem, estava cursando o primeiro ano do
curso de filosofia. Flertava com o movimento estudantil, mas não dispunha de
tempo livre para uma dedicação exclusiva. O trabalho, condição necessária para
minha sobrevivência, impedia-me de ir além do compartilhamento de ideias em
busca de um mundo mais justo e livre para todos.
Ao meu modo, nos limites de minha condição
existencial, eu também era um revolucionário. Queria mudar o mundo. Participei
de algumas passeatas, inalei muito gás lacrimogênio, cercado pela polícia,
invadi prédios em busca de proteção, mas não passei disso, não fui para a
clandestinidade, não me tornei um guerrilheiro de armas em punho. Não...
Sempre fui um revolucionário doméstico - sem armas, apenas um revolucionário no plano das ideias – solidário com os bons e justos ideais políticos. Fiquei encantado com o que aquele intelectual francês falava.
Quando jovem, ele se mostrava solidário aos
movimentos iniciados pelos estudantes, ao lado de Sartre, Camus, Foucault,
Simone de Beauvoir e tantos outros intelectuais, sob a orientação do Partido
Comunista Francês.
Reivindicavam reformas na educação, na ordem social
e no sistema político. A princípio, foi o Quartier Latin; depois, as
ruas de Paris foram tomadas por grandes e históricas manifestações.
Na terra onde a Bastilha caiu, “O livro vermelho”,
de Mao Tse Tung, ganhava popularidade. Até os dias de hoje, cinquenta anos
depois, a França carrega na alma os ecos daqueles clamores. O mundo, por sua
vez, também foi tocado pelas utopias dos jovens estudantes: “É proibido
proibir”, “A imaginação no poder”, “O Estado é cada um de nós”, “Abaixo a
sociedade de consumo!”, “Corram camaradas, o velho mundo está atrás de vocês”,
“Abaixo do calçamento está a praia”...
Essas ideias já embalavam os meus delírios - ainda
sem direção definida. Também eu queria um mundo assim. Liberdade, acima de tudo:
Liberdade. Reconhecia-me naquele projeto político. Finalmente, os excluídos passavam
a se ver representados. O poder parecia, enfim, ao nosso alcance – e queríamos
conquistá-lo. Era o amanhecer do PT.
Ainda sem uma grande convicção política, assinei
aquela lista com a intenção de, mais tarde, filiar-me oficialmente ao PT. Não
demorou muito e, mesmo sem militância ativa, tornei-me filiado do PT. De lá
para cá, entre alegrias e tristezas, votei sempre no PT. Tornei-me um petista,
sem nunca ter frequentado a igreja do partido. Um “militante”, não um devoto.
Longo tempo se passou. Meu último voto no PT, para
prefeito de Salvador, foi em Nelson Peregrino, contra ACM Neto. O tempo passou,
ACM Neto venceu as eleições. Por outro lado, dessa vez com o meu voto, Rui
Costa – indicado por Wagner, que também já havia recebido meu voto – foi eleito
governador da Bahia.
Veio a eleição para a Presidente da República. No primeiro turno, votei em Ciro Gomes; no segundo, em Fernando Haddad, candidato do PT. Bolsonaro venceu. A vitória desse senhor jamais teria a contribuição do meu voto, ainda que os soldados do PT, com sua visão bipolar do mundo, digam o contrário.
Voltemos à Bahia. Na capital, o PT nunca conquistou
a vitória; sempre se aliou a coligações espúrias (uma prática bem conhecida da
direita), mais interessada em conquistar o poder do que em construir um projeto
político sério que beneficiasse verdadeiramente a cidade. Como exemplo, cito a
coligação feita com o pária João Henrique.
Em São
Paulo, sob imposição de Lula, houve a aliança entre Haddad e o representante de
tudo que há – e já houve – de pior na política brasileira: Maluf. Nunca fui
eleitor da oligarquia de Antônio Carlos Magalhães ACM (seja o patriarca ou o
seu neto). Suas ideias sempre estiveram – e ainda estão – distantes da minha
forma de pensar e ver o mundo. No entanto, não posso negar, que, à margem da
política, flertei, e continuo flertando – sim, flerte, nada de fidelidade ou
devoção cega – muito mais com as causas defendidas pela esquerda do que aquelas
que identificam o cenário ideológico da direita.
Sem o meu voto, ACM Neto se tornou Prefeito de
Salvador. Dois governos, o de ACM Neto e o de Rui Costa, um de “direita”, o
outro de “esquerda” (será?) – se empenharam em disputar para ver quem
realizaria a maior quantidade de obras na cidade. Empataram. A população, com
índices de mais de 70% de aprovação, reconhece a boa administração de ambos.
Andando pelas ruas da cidade, não posso deixar de admitir que estou satisfeito
por ter perdido o meu voto. Há derrotas que se transformam em vitórias.
O embate político entre a “direita” e a
“esquerda” na Bahia se traduz em boas obras para a cidade. A Bahia agradece.
Viva a diversidade política.
Com o tempo, aprendi a suspeitar dos profetas,
daqueles que autointitulam “salvadores da cidade”, sejam da “direita” ou da
“esquerda”. São homens perigosos. Depois de eleitos, tratam o Estado como um
bem particular, dividindo-o entre aliados, amigos e, não raramente, familiares.
O Estado deixa de ser um bem público e se transforma em uma propriedade privada.
O Estado sou eu – e, claro, meus aliados. Viva o “Rei Sol”.
Para se manterem no poder, em nome de uma tal
“governabilidade”, esses governantes renunciam aos valores que os fizeram
conquistar o voto e a confiança do povo. Por trinta moedas, vendem a sua alma...
Não importa o que façam, sempre estão certos. E quando erram, encontram
maneiras de justificar. Seus discípulos fazem uso da nefasta técnica da
inversão de valores. O “bem!” se torna “mal”, o “justo” se torna “injusto”, e
tudo dança na tábua de valores, não para atender ao público, mas aos interesses
particulares.
Apesar de ser um erro evidente, essa prática é repete-se
sempre que as paixões, livres das rédeas da razão, comandam nossas ações. Há sempre
uma “boa ação” que serve para encobrir os pecados cometidos: “Rouba, mas faz”.
Todos, independentemente da bandeira partidária, recorrem a essa “ética”
seletiva para justificar e defender suas transgressões morais.
Assim, o pecado nunca está onde eu me encontro – jamais na minha igreja –, mas é sempre uma abominação atribuída àqueles que habitam a outra margem, onde se ergue a igreja da perdição, morada de Mefistófeles. Não erra Montaigne ao afirmar que ‘cada qual aprecia o odor de seu esterco”. "Heródoto atribui judiciosamente, esse acesso da paixão - achar que a bandeira do meu partido ou da minha igreja é o estandarte da verdade -, a uma verdadeira loucura ou a uma desordem cerebral” (Hume - História Natural da Religião).
Quase sempre,
embriagados pela vaidade ou pela ânsia de proteção, vestimos máscaras acreditando que, assim, ninguém nos
verá; habituamo-nos tanto a esse artifício que já não nos reconhecemos: Tornamo-nos
seres mascarados, enxergando-nos não pelo que somos, mas pela máscara que
usamos. Fernando Pessoa, em sua Tabacaria,
dramatiza esse destino: “Fiz de mim o que não soube, / E o que podia fazer de
mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não
era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, estava pegada à
cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, já tinha envelhecido.”
Cegos diante de nós
mesmos — todos nos percebem - menos nós. Não mudamos: fixamo-nos. Perdemos a capacidade
de nos ver e nos tornamos estranho
àquilo que somos. Buscando nos proteger contra o olhar do outro, fingimos
ser o que não somos. Mas viver assim é um desassossego: passa-se a vida em fuga,
fechando portas e janelas, tapando frestas para não ser visto. Trabalho em vão.
Apesar de todas as cortinas erguidas contra o olhar do outro, ele insiste em
nos alcançar, revelando aquilo que lutamos para esconder. Nessa busca por
proteção, acabamos nos perdendo. O olhar do outro nos encontra, nos expõe, nos
devolve a nós mesmos – ainda que contra a nossa vontade. Como já advertia São Jerônimo: “somos sempre os últimos a
conhecer as chagas de nossa casa e, enquanto todos os vizinhos se riem dos
vícios de nossos filhos e de nossas esposas, somente nós os ignoramos.”
Caminhando em procissão, cada um em sua margem,
carregando o seu andor e, sobre ele, o seu mito, seu salvador, tenta conquistar
as ovelhas que pastam na margem oposta, prometendo-lhes terras onde a grama é mais
verde, onde a água nunca falta, onde o governo é probo e todos podem alcançar a
justa e merecida felicidade ... Rumo à terra prometida, a manada de obreiros, guiada
pela “bandeira do divino”, segue sua jornada, “se arrastando feito cobra pelo chão”.
Instalados em suas
superstições, tornam-se prisioneiros delas. Fazem de suas verdades suas
prisões. Já não arriscam, não colocam mais suas certezas sob suspeitas. Ao
contrário, tornam-se soldados de um fanatismo cego, empunham suas armas contra
todos que ousam se aproximar de suas verdades, ousa colocá-las em risco.
Sem sair do lugar, erguem sua morada, cultuam
sua verdade e tornam-se seus devotos.
Fechados ao guia seguro da
razão - lugar do esclarecimento - abrem-se para o obscurantismo. Saltitando
entre superstições, vão inventando mundos fantasmagóricos para habitar. “Se os homens pudessem regrar todos os seus
assuntos seguindo um propósito irrevogável ou, ainda, se a fortuna lhe fosse
sempre favorável, jamais seriam prisioneiros da superstição. Mas reduzidos com
frequência a um extremo tal que não sabem o que resolver, e condenados por seu
desejo desmedido dos bens incertos da
fortuna a flutuar sem trégua entre a esperança e o medo, tem a alma
naturalmente inclinada à mais extrema credulidade; se em dúvida, o mais leve
impulso a faz pender num ou noutro
sentido, e sua mobilidade cresce mais ainda quando suspensa entre o medo e a
esperança, ao passo que nos momentos de segurança ela se enche de vaidade e se
infla de orgulho” (Espinosa – Tratado Teológico-Político (Prefácio)
Quando as conveniências partidárias passam a
justificar a relativização dos valores, é porque “há algo de podre no reino da
Dinamarca”.
Perguntaram a Platão, qual seria o critério para se identificar o Bem mais perfeito – o Bem ideal. Ele não teve dúvida: identificamos o Bem mais perfeito por sua extensão. Quanto maior a sua abrangência, mais próximo do ideal ele se encontra. O bem que visa a cidade, é mais extenso que o bem que visa o cidadão. O bem universal é mais perfeito do que o bem particular...
O fenômeno em si não é “bom” nem “mau”; o seu valor
será determinado conforme nos afeta. Se somos afetados positivamente, os afetos
são amados, desejados e tornam-se causa das nossas alegrias, aumentando nossa
potência de agir – por isso buscamos preservá-los. Os afetos negativos, ao
contrário, diminuem a nossa potência de agir, tornam-se causas de tristeza e,
por isso, os evitamos. O ideal seria sermos afetados pelos afetos que nos
trazem alegrias e ampliam nosso ser. Com bem diz o poeta Vinicius de Moraes: “É
melhor ser alegre do que ser triste / Alegria é a melhor coisa que existe”.
Mas, infelizmente, nem sempre é isso que ocorre.
Quase sempre caminhamos em direção contrária.
O problema surge quando a regência dos nossos
afetos fica sob o comando das nossas paixões, fora do alcance do reto uso da
razão. Nesse momento, embaralhamos as cartas dos afetos, perdemos o controle
sobre eles e, desordenadamente, somos conduzidos ao campo da des-razão, onde
reina nossas crenças, esperanças e superstições – um território fértil para que
o fanatismo, cego e perigoso, se torne a força orientadora de toda a ação
humana.
Renunciando à sua autonomia e ao direito conquistado
no processo civilizatório, o homem aliena a sua alma, tornando-se servil a um
salvador qualquer. “O fanatismo é a única forma de força de vontade acessível
aos fracos (Nietzsche). Sem culpa, porque consciência não temos; sem controle
dos próprios passos, já não sabemos caminhar. Como trôpegos, esperamos que
alguém nos carregue, nos salve, nos conduza à terra prometida.
“Ainda que importe a todos os homens conhecer a verdade, todavia pouquíssimos a conhecem, porque a maioria deles se crê incapaz de procurá-la por si mesmos, ou não quer se dar ao trabalho de fazê-lo. Assim, não admira que o mundo esteja repleto de opiniões vãs e ridículas, nada sendo mais capaz de lhes dar curso do que a ignorância. De fato, é ela a única fonte de falsas ideias que se tem da divindade, da alma, dos espíritos e de quase todos os erros que dela derivam. É um uso que prevaleceu contentar-se com os prejulgamentos que se carregam desde o nascimento, e consultar pessoas pagas para sustentar as opiniões recebidas e, por conseguinte, interessadas a convencer o povo a respeito delas, sejam verdadeiras ou falsas [...] Se o povo pudesse compreender em qual abismo a ignorância o arremessa, sacudiria logo o jugo dessas almas venais, que, para seu interesse particular, o mantêm nessa ignorância”. “[...] O que há de certo é que a reta razão é a única luz que o homem deve seguir, e que o povo não é tão incapaz de usá-la quanto se busca fazê-lo acreditar” (Spinoza - Tratado dos três impostores).
De fato, a reta razão é o único caminho que o
homem deve seguir; só ela pode conduzi-lo a um porto seguro. Nenhum homem deve
achar-se incapaz de usá-la, tampouco julgá-la acima de suas forças, como se uns
já nascessem destinados ao exercício do pensamento e outros condenados ao
obscurantismo. Ao contrário, a razão é um dom comum a todos. O que distingue o
senhor do escravo são as escolhas que cada um faz ao colocá-la em prática. A
razão é um bem democrática: pertence a todos, e todos têm o mesmo direito de exercê-la.
Não é propriedade de nenhum senhor, deste ou de outro mundo, que a distribua
segundo conviniências políticas ou religiosas. “A ninguém, nem aos deuses nem
aos demônios, nem às tiranias da terra nem às tiranias do céu, foi dado o poder
de impedir aos homens o exercício daquele que é o primeiro e o maior de seus
atributos: — o exercício do pensamento” - (Teócrito). O direito que todo homem
tem de conquistar sua maioridade, sua dignidade humana, começa com a conquista
da autonomia de sua razão. Esta deve lhe pertencer por inteiro. Ele é seu dono,
seu senhor absoluto. “Devemos... filosofar sempre, e ser servos da filosofia,
se queremos alcançar a verdadeira liberdade” (Epicuro – Carta a Meneceu).
Renunciar à razão é entregar-se à servidão, renunciar à própria liberdade e
dignidade. Só a razão faz, de fato, um homem, Um homem.
Em pleno século XVII, período em que a razão se
encontrava tutelada, lutando contra tudo e contra todos para se fazer presente
no mundo, Descartes assumiu a sua defesa, indicando seu caráter democrático,
esclarecedor do mundo e libertador do homem. Essa é a primeira frase com a qual
ele começa o seu Discurso do Método, livro com o qual demarca a
transição entre o mundo antigo e o moderno: “O bom senso – a razão - é a coisa
do mundo melhor partilhada”. Entretanto, logo em seguida, ele alerta: “Não é
suficiente ter o espírito bom; o principal é aplicá-lo bem.”
“Guia-me a
só a razão. / Não me deram mais guia. /
Alumia-me em vão? / Só ela me alumia.... / Como olhar, a razão / Deus me deu,
para ver / Para além da visão / — Olhar de conhecer. / Se ver é enganar-me, / Pensar um
descaminho, / Não sei. Deus os quis dar-me / Por verdade e caminho.” (Fernando
Pessoa)
Conhecer os afetos, tê-los
sob posse e domínio – em vez de ser dominado por eles – é indício de que
estamos diante de uma alma que aprendeu a cuidar de si. Uma alma livre e
teimosa que escolheu escolher-se.
“‘Vem
por aqui’ – dizem-me alguns com olhos doces / [...] / Não, não vou por aí! / Só
vou por onde / Me levam meus próprios
passos...” (José M. dos Reis – Cântico negro)
Escolhendo-me, condenei-me a caminhar sozinho. Não lamento; foi uma conquista. Em minhas caminhadas solitária colho os meus maiores – e melhores – prazeres, encontro as minhas consolações. “Eis-me, portanto, sozinho na terra, tendo apenas a mim mesmo como irmão, próximo, amigo, companhia” - (Rousseau). Para onde meus passos me levarão? Não sei; sequer desejo saber. Não me ancorarei em certezas, nem me deixarei seduzir pelos falsos cantos da chegada; quero apenas caminhar, como um andarilho pelas estradas...
Tenho convivido com pessoas plenas de certezas. São seres superiores, tão seguros de suas verdades que chegam a me assustar. Devotos, sustentados pela força e pelo poder da fé, seguem o som do berrante – shofar - tocado por seu Messias, seu Salvador... Evito sentar-me à mesa dessa gente, evito partilhar o seu pão e o seu vinho. “Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?” Eu, que não tenho nenhuma certeza - apenas dúvidas e suspeitas? Dos passos que dei, nada tenho a reclamar: “Vi a planta, a flor, o fruto, agora vejo o fim”. Essa é a ordem natural. O resto, é silêncio ou, quem sabe, um amontoado de superstições.
Sou um caminhante solitário, que escolheu viver sem
Messias e sem deuses. Já não pertenço a ninguém. “Poucos sabem qual é o rio da
minha aldeia, / e para onde ele vai, / e de onde ele vem. / E por isso, porque
pertence a menos gente, / é mais livre e maior o rio da minha aldeia” (F.
Pessoa). Sigo em frente, sozinho e cada vez mais livre. Deixe-me ir, com minhas caminhadas incertas. Caminho,
caminhando-me.